Armas e munições foram desviadas do Exército em Juiz de Fora por pelo menos dois anos, entre 2010 e 2012. A conclusão está na denúncia oferecida pelo Ministério Público Militar (MPM), que se baseou em um inquérito policial militar de oito volumes ao qual a Tribuna teve acesso com exclusividade. O desvio ocorria de dentro do 4º Depósito de Suprimentos do Exército, que fica no Bairro Barbosa Lage, Zona Norte, e, de lá, os materiais voltavam para as ruas. Apesar de não se poder falar em derrame de armas, a peça acusatória aponta que ” ficou claro que os denunciados acessaram o pelotão de armamento e conseguiram subtrair um enorme número de armas e munições” (ver fac-símile 1). Conforme o documento, havia dias em que duas mil armas chegavam ao quartel, único do estado que recebia os armamentos para destruição. Ainda segundo a denúncia, os materiais deixavam a unidade para serem destruídos sem que fossem reconferidos. No caminho, os militares seguiam em caminhões sozinhos nas carrocerias com grande quantidade de armas sem serem vigiados diretamente por oficiais, que permaneciam na cabine.
A fraude, que agora é revelada, veio à tona após investigações do Núcleo de Ações Operacionais de Polícia Civil de Juiz de Fora e de levantamentos feitos pelo Exército e mostra que soldados burlavam inclusive o sistema de filmagem para furtar os armamentos e guardar em mochilas, de onde saíam sem ser revistados (ver fac-símile 2). Até o momento, quatro soldados que serviam na unidade militar e um civil, apontado como o elo entre os militares e os compradores de armamentos, foram acusados pela Justiça Militar. Os ex-militares foram denunciados pelo crime de furto, e o civil, por receptação. Outro soldado, também de 23 anos, é mencionado no caso e deve responder por receptação.
De acordo com o Ministério Público Militar, ele não participava da subtração, mas teria vendido três revólveres calibre 38, a R$ 600 cada um, a pedido de um dos envolvidos. Ele teria recebido R$ 200 pelo negócio. O colega teria proposto a ele a venda de outros armamentos, mas o jovem teria se negado.
Modus operandi
Segundo o que foi apurado, dois soldados, de 22 e 23 anos, entravam no pelotão de armamento, geralmente durante a noite, retiravam as armas de forma aleatória e as guardavam em mochilas. Enquanto faziam a subtração, outro militar, 23, esperava a dupla em um carro do lado de fora do quartel. Os suspeitos deixavam o local pela porta da frente e, possivelmente, não eram submetidos a revista. “Nós entendemos que eles não tiveram acesso ao galpão por causa da função que exerciam. Faziam isto, em alguns momentos, de maneira clandestina, usando a cópia de uma chave do local. Em outros, que acreditamos ser a maioria, eles podem ter se valido do momento da destruição”, esclareceu o procurador do caso, Ulysses Costa.
Uma das testemunhas que ajudou a revelar o modus operandi do crime é a ex-namorada de um dos militares. Segundo seu depoimento, o quarto do namorado era cheio de armas, e ela teria visto inclusive uma pistola Glock, repassada a um traficante. A testemunha também revelou que o jovem “enchia a mochila de armas, ele não tinha tempo de escolher, pegava o que dava. As armas que tinham problema eram vendidas juntos com as boas por um preço menor” (fac-símile 3). A mulher contou que o ex-namorado falava que as mochilas eram pesadas, “que chegava até a entortar as costas”.
O caso foi denunciado pela Tribuna em março do ano passado. Desde que a fraude foi descoberta pelo Exército, em outubro de 2012, a instituição afirma que adotou um controle rígido na destruição dos armamentos, que chegam à cidade vindos de todo o estado. Os quatro militares envolvidos no crime foram desligados em abril de 2013 (ver quadro).
No Rio, clientes fixos, em JF, venda para ‘qualquer um’
A declaração da ex-namorada de um dos militares aponta que o civil denunciado comprava as armas por R$ 300 e as revendia por R$ 800. Conforme o documento, no Rio de Janeiro, havia clientes fixos e, em Juiz de Fora, “eles vendiam para qualquer um”. Outra testemunha, um homem que tinha ligação com o grupo, disse em depoimento que apenas um dos militares conseguiu desviar mais de 500 armas. Eram pontos de entrega e venda dos materiais furtados duas residências nos Bairros Três Moinhos, na Zona Leste, e Santa Cruz, na Zona Norte. “Não há nenhum elemento concreto que confirma este número de 500 armas. Acredito que 17 armas, que foram as encontradas até agora, é pouco, inclusive já surgiram outras. O descontrole era muito grande, mas não é possível precisar quantas armas saíram”, disse o procurador do caso, Ulysses Costa.
O esquema criminoso também ficou comprovado por interceptações telefônicas feitas em 2012. Nas 262 ligações interceptadas e mensagens entre os integrantes do grupo criminoso, foi possível flagrar encomenda de armas e munições. Em muitos casos, os produtos seriam levados até o Rio de Janeiro. Em apenas uma das mensagens, o soldado afirma estar de posse de 104 munições calibre 40, 121 de calibre 45, dez de 9 mm e outras dez de calibre 38 e 22 de 44. Além disso, ele teria em mãos 21 munições especiais de calibre 38 e 51 cartuchos de calibre 12. Segundo a peça acusatória, assinada pelo procurador Ulysses Costa e o promotor Ataliba Chaves de Souza Neto, “tal arranjo se mostrou lucrativo”, já que os dois soldados que vendiam as armas e munições compraram carros à vista (naquela época) nos valores de R$ 10 mil e R$ 11 mil, além de “costumeiramente exorbitar nos gastos em boates de Juiz de Fora”.
Falta de conferência facilitou crime
Na peça acusatória, o Ministério Público Militar (MPM) afirma que, no recebimento dos armamentos, era feita conferência minuciosa, porém, o mesmo não ocorria no ato da destruição. O carregamento e o transporte até a queima das armas eram feitos “sem nenhum controle sobre o número e a qualidade deste material, uma vez que se adotava apenas uma estimativa visual de um número mínimo para a destruição”. Conforme o MPM, houve casos de uma comissão responsável pelo processo de destruição assinar termo de material destruído por outra e até membro que sequer assinou termo de destruição do qual participou. Havia episódios ainda nos quais os integrantes da comissão assinavam sem conferência e muito tempo depois da data da queima nos altos fornos.
Por este motivo, para o MPM, as datas das supostas destruições não servem de parâmetro para delimitar o momento em que ocorreram as ações criminosas. Das 17 armas que deveriam ter sido destruídas e foram apreendidas novamente nas ruas, há revólveres entregues entre os anos de 2007 e 2012 (ver quadro e fac-símile 4). Dois dos militares denunciados pelos furtos ingressaram em 2010 no 4º Depósito de Suprimento do Exército (4º DSup). “É impossível, pelo modo como crime foi praticado, precisarmos quanto tempo durou, já que todos os termos de destruição eram falsos. Para basearmos a denúncia, levamos em consideração o momento em que arma chegou ao quartel e a data em que os militares ingressaram”, afirmou o procurador do caso, Ulysses Costa.
A Justiça Militar recebeu a denúncia em partes. Em sua decisão de acusar os quatro ex-militares e o civil, a juíza da 4ª Circunscrição Judiciária Militar, Maria do Socorro Leal, levou em conta a data em que as armas supostamente teriam sido destruídas. Por este motivo, ela pede que os militares só respondam pelo furto das armas destruídas depois de sua entrada na unidade, ou seja, a partir de 2010. O MPM recorreu da decisão.