Em junho deste ano, um perfil de redes sociais se dedicou a fazer denúncias de alunos da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) que seriam suspeitos de cometer fraude nas vagas destinadas a pretos e pardos. Quando esse mesmo tipo de denúncia ocorreu pela primeira vez, em 2018, os casos suspeitos começaram a chamar a atenção da comunidade acadêmica e do público externo. Na época, além da exposição de supostos fraudadores, uma série de denúncias foram formalizadas por meio da Ouvidoria Geral da UFJF e da Ouvidoria Especializada em Ações Afirmativas. Em 2020 não foi diferente, a UFJF confirmou o recebimento de 132 denúncias. Diante desses novos casos, movimentos sociais e instituições da sociedade civil organizada oficializaram uma série de questionamentos sobre os processos para a universidade.
A Frente Preta da UFJF, que reúne Coletivos, diante da nova onda de denúncias, entendeu que era necessário aprofundar as discussões sobre as ações afirmativas e sobre as fraudes. Eles se organizaram e tomaram a iniciativa de fazer postagens para trazer conhecimentos relacionados às políticas públicas para as redes sociais. Em um dos vídeos publicados por eles, nomeado de “UFJF, vamos conversar?”, são enumerados questionamentos que vão desde a forma de composição das comissões de sindicâncias que apuram os casos, como os critérios adotados pela banca de heteroidentificação, que avaliam os candidatos a partir do ingresso deles na instituição.
Além do vídeo, a Frente Preta da UFJF encaminhou um abaixo-assinado com mais de 1.100 assinaturas cobrando uma resposta da universidade para a sociedade sobre o assunto. De acordo com a estudante da Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF, Milena Regina de Paula, que é uma das integrantes da Frente Preta da UFJF, um dos motivos que gerou as ações é que os movimentos sociais e a sociedade civil organizadas não foram chamadas para participar das composições sobre as Comissões de Sindicância e das Bancas de Heteroidentificação.
“São diferentes representações e é importante que possamos compor essas bancas. Entendemos que o prejuízo é grande. Quanto mais pessoas, principalmente as que têm um acúmulo teórico sobre as questões raciais, que estudam sobre isso, de diferentes setores, com diferentes perspectivas e de diferentes origem sociais, melhor será a apuração e averiguação dessas denúncias”, explica Milena. Ainda que UFJF promova cursos de capacitação para os membros das bancas, ela reforça que faz diferença ter pessoas que têm sua trajetória marcada por essas discussões contribuindo e, por isso, é importante reivindicar esses lugares.
Outras cobranças também são levantadas pelo grupo. Entre elas, maior transparência na divulgação de informações sobre os resultados de sindicâncias e de heteroidentificação, com maior detalhamento dos dados e preservando a identidade dos suspeitos e dos denunciantes; o cumprimento do prazo de 15 dias para prestar informações sobre o andamento das queixas; a publicação de relatórios públicos regulares com o máximo de informações possível e a adoção do fenótipo – que são características observáveis- como critério único da Comissão de Sindicância, que hoje também pede um relato sobre as vivências do candidato e a comprovação de ascendência direta. “Esperamos uma resposta pública, porque não é uma luta apenas nossa, mas de toda a sociedade juiz-forana”, salienta Milena.
UFJF obedece normas institucionais
Em manifestação por meio de nota enviada à Tribuna, a Pró-Reitora de Graduação da UFJF, Maria Carmem Simões, pontuou que, em relação a composição das comissões, elas obedecem às normativas institucionais com resoluções aprovadas pelo Conselho Superior da UFJF e não é de conhecimento da Prograd nenhuma previsão de alteração e que, se for o caso, esta deverá passar pela análise das diversas instâncias institucionais. “Temos contado com o forte arcabouço teórico de pesquisadores da área e de normativas legais orientadoras dos processos para ampliar, aprofundar e aprimorar as capacitações e procedimentos.”
A pró-reitora destacou que, desde 2017, o órgão atua nas análises de matrículas. Não só a das cotas PPI (preto, pardo e índio), mas também nas que destinam vagas de acordo com a renda e para pessoas com deficiência também. Estas comissões são formadas por servidores da Prograd e da comunidade acadêmica, docentes e estudantes de pós-graduação estudiosos das áreas de necessidades especiais de aprendizagem, das questões étnico-raciais, médicos especialistas, pedagogos, assistentes sociais, entre outros, como reforça Maria Carmem.
Ela explica que para o ingressos por PPIs, são formadas as comissões de heteroidentificação com membros da comunidade acadêmica docentes, técnico-administrativos em educação e estudantes de pós-graduação estudiosos da temática, que, após passarem por capacitação, atuam na entrevista aos candidatos. Estas são gravadas e ficam arquivadas, o estudante assina a autodeclaração de PPI e a comissão analisa aspectos fenotípicos por meio de critérios previstos nas normativas legais.
Ela ainda acrescenta que, no caso de indeferimento, o candidato tem prazo para recurso e pode apresentar elementos que permitam a indicação de sua ascendência direta (pai e mãe). Somente após o deferimento de todas as condições exigidas para o grupo é que o estudante terá sua matrícula homologada na instituição. Maria Carmem ainda diz que os procedimentos são demorados, demandam e envolvem um grande número de ações e pessoas, há diversos prazos recursais e direitos de ampla defesa e contraditório.
Pleito por participação
Dez representantes da sociedade civil encaminharam outro documento à UFJF, no qual também solicitam respostas sobre as bancas de heteroidentificação e sobre as comissões de sindicância. De acordo com Marselha Evangelista, advogada e membro da Comissão de Promoção da Igualdade Racial da OAB, que é uma das pessoas que assina o documento com as reivindicações, as cotas PPI representam um direito que a todo tempo precisa ser reafirmado.
“Hoje, na UFJF, só temos a participação de pessoas ligadas à instituição. Ou seja, do corpo docente, TAEs e discentes. Não temos representantes dos movimentos sociais.” Para Marselha, além do pleito da representatividade na banca e em mecanismos de transparência dos trabalhos, seria necessário adotar critérios mais rigorosos de pesquisa e investigação de candidatos suspeitos de fraude. “Para que ele não burle o sistema e acabe não só enfraquecendo esse direito conquistado, mas também impedindo o acesso de pessoas negras à Universidade.”
Necessidade de conversar com as famílias
Quando fez mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF, Lucas Loureiro Leite, que agora é doutorando em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e membro do Laboratório de Sociologia Digital (LSD) vinculado ao PPGS/UFF, ficou sabendo do caso de uma pessoa que apresentou 40 denúncias de supostas fraudes em cotas PPI, em 2018. Ele conta que ficou interessado em entender as denúncias como um fenômeno social e solicitou dados específicos sobre a quantidade de denúncias realizadas por denunciantes diferentes no conjunto de casos suspeitos.
A falta de dados mais detalhados sobre as denúncias, resguardando a identidade dos envolvidos é uma das principais barreiras. Para Lucas, é necessário ter o máximo de transparência possível, com a divulgação semestral ou anual de relatórios, para que se possa refletir sobre o fenômeno como algo que está afetando a instituição e a execução da política pública.
Para o pesquisador, há particularidades que são importantes para que se possa refletir sobre o que acontece na universidade, partindo de dois pontos de vista: das pessoas que estão acessando a política pública de forma fraudulenta e equivocada e o das pessoas que estão sendo prejudicadas, ou seja, os sujeitos de direito das políticas públicas.
Ele teve acesso a algumas informações sobre as denúncias de 2018 e 2019. No levantamento que conseguiu fazer, alguns elementos chamaram a atenção. Loureiro pontua que só o número total de denúncias recebidas e apuradas são insuficientes para que se tenha uma ideia mais ampla sobre o quadro. É preciso entender como o “perfil” de denúncia se caracteriza durante os anos e como essas informações auxiliam gestores e movimentos sociais a refletirem sobre a fraude.
Isso faz com que Loureiro ressalte a importância de valorizar as denúncias. Ainda que exista uma série de mecanismos sociais para impedir que essas denúncias aconteçam – como a pessoa pensar que, ao denunciar, pode enfrentar problemas na turma ou sofrer algum tipo de retaliação -, é essencial que elas continuem sendo oficializadas. “A força das denúncias é muito importante, porque a universidade precisa dar uma resposta a elas.”
Cada caso pode receber mais de uma denúncia, de modo que um suspeito pode chamar mais a atenção do que os outros. Na UFJF, nos em 2018 e 2019, em mais da metade dos casos, só havia uma ou duas denúncias contra cada suspeito. Ou seja, se esse denunciante não tivesse tido a coragem em realizar a denúncia, o fenômeno não teria a visibilidade que possui hoje. Poucos são os casos em que mais de três pessoas realizam denúncias, e uma parcela muito pequena chama atenção de mais de dez denunciantes.
Segundos os dados que possui, em 2018, um caso recebeu 17 denúncias, e, em 2019, outro único caso recebeu 13. Em termos percentuais, as denúncias individuais representaram 50% dos casos em 2018 e 65% dos casos de 2019. Para aqueles que receberam duas denúncias feitas por denunciantes diferentes, existia uma proporção de 35% do total em 2018 e 17% do total em 2019.
“Estamos falando de relações raciais também. Sobre pessoas brancas que vão ser privilegiadas por não serem consideradas suspeitas ou estranhas no ensino superior. Mas com o não enegrecimento das salas, alguns passaram a perceber que as turmas que deviam ser ocupadas por cinco, dez ou 14 negros, tinham menos ou nenhum (negro). (…) Em certos casos, quando os estudantes negros eram perguntados sobre qual grupo de cotas tinham utilizado, haviam entrado por cotas sem critério da autodeclaração racial ou a ampla concorrência. Então, as pessoas passaram a ver o problema da fraude.”
Debate racial ainda é muito silenciado
Loureiro ainda pontua que a natureza dessa situação mostra que o debate racial ainda é muito silenciado e precisa ser feito, principalmente, pelas famílias. “Ainda que não seja possível generalizar, muitas famílias não falam sobre raça com seus filhos ou não se sentem na obrigação de fazer isso. Pode ser porque eles sejam mais claros ou brancos. Sendo visto como brancos, eles são racializados, não deixam de ser, mas não são questionados, apontados e nem colocados em nenhum lugar negativo, estereotipado ou “exótico” por quem está em volta em diversas situações na vida. O branco é o ‘padrão racial hegemônico’ em espaços de poder. Mesmo neste fenômeno, a branquitude – o grupo racial branco – ainda consegue manter seus privilégios e, principalmente, a “invisibilidade” de sua raça em contextos de conflito”.
Desse modo, conforme o pesquisador, é possível dizer que pessoas brancas que foram denunciadas depois de anos do seu ingresso nunca foram consideradas suspeitas. Ele destaca que, no conjunto de denúncias recebidas no ano de 2019, existiam 19 casos de ingressos em 2014, 2015 e 2016. Em 2020, esses suspeitos poderiam já estar formados. Isso é um exemplo do privilégio branco.
“O debate sobre fraude demonstra a necessidade da discussão sobre raça nas famílias, não se trata exclusivamente sobre um indivíduo que simplesmente fez algo por má-fé”. Ele orienta que sejam incorporadas ações voltadas para a educação, conscientização e reflexão sobre o tema, como rotina na instituição, mas, especialmente, voltar as atenções para as pessoas que pretendem ingressar na universidade. Ele reforça que é importante que todos saibam o que é o racismo estrutural e como ele afeta as famílias brancas, pretas, pardas e indígenas.
Cuidados com as apurações
Segundo a pró-reitora de Graduação, Maria Carmem Simões, na visão institucional, o que se pretende com as ações tomadas pela UFJF é informar, formar e divulgar intervenções positivas, com a criação e fortalecimento dos direitos das pessoas e a redução de desigualdades. Diz ainda que a UFJF apura cuidadosamente todas as denúncias e faz as análises na banca de heteroidentificação. “Salientamos que as ações até são passíveis de penalidades, mas o caráter punitivo não é e nem deve ser o mote principal. O foco deve ser mesmo o educativo.”
Ela chama a atenção também para casos de denúncias infundadas, que geram constrangimento para pessoas que têm direito à política. Assim como há pessoas que se equivocam por desconhecimento, há quem tenta, de fato, burlar o sistema. “Deste modo, os procedimentos são demorados, demandam e envolvem um grande número de ações e de pessoas, há diversos prazos recursais e os direitos de ampla defesa e contraditório.”
A pró-reitora ainda pontua que há penalidades previstas para estudantes que tentam burlar o sistema, que vão da perda da vaga até o processo judicial. “Lembrando que o estudante tem o direito de defesa e pode trazer novos elementos para a comprovação da utilização do grupo de reserva de vagas. Tratamos o assunto com muita seriedade e sabemos que, por vezes, apenas as características visuais não são o suficiente.”