Para quem espera por uma cirurgia de urgência, a demora no atendimento representa angústia, apreensão e medo. Esses sentimentos se desenham nas queixas que chegam à Ouvidoria Municipal de Saúde, relativas à demora na realização dos procedimentos, que podem salvar vidas. De janeiro a junho desse ano, a ouvidoria recebeu 583 reclamações relacionadas a pedidos de transferências, tanto a partir de Juiz de Fora como de pacientes que precisam de atendimento na cidade. E a grande maioria destas solicitações, estimada em 80% pela ouvidoria, refere-se a necessidade de procedimentos cirúrgicos. De acordo com o órgão, as demandas são oriundas de vários lugares, inclusive, de pacientes de fora da nossa região de saúde, o que gera uma grande demanda reprimida. Por outro lado, ao mesmo tempo em que o número de pedidos cresce, os recursos financeiros, humanos e tecnológicos seguem o caminho inverso. Enquanto isso, os pacientes que continuam na fila sofrem com o agravamento dos seus quadros de saúde, podendo chegar a óbito sem receber a intervenção.
Foi o que aconteceu com Jorge Luna de Oliveira, de 65 anos. O idoso faleceu na última sexta-feira (18), depois de esperar mais de 40 dias por uma cirurgia no fêmur. A sobrinha de Jorge, Ana Paula de Oliveira, conta que o tio estava em Mercês, a cerca de cem quilômetros de Juiz de Fora, quando quebrou o fêmur. De lá, ele foi encaminhado para Ubá, cidade onde passou por cirurgia. Duas semanas depois, quando estava em Juiz de Fora, o idoso voltou a ter problema no local onde foi feito o procedimento. “O Samu veio atender e o encaminhou para o HPS. A saga começa aí, no dia 3 de setembro, porque ele estava com infecção. Ela precisava ser tratada antes que ele fosse encaminhado novamente para cirurgia. Após curar a infecção, começamos a lutar para conseguir uma vaga em um hospital que pudesse fazer outra cirurgia”.
O irmão do paciente precisou entrar na justiça no dia 26 de setembro, com um laudo que atestava o risco para a vida de Jorge, em função de uma série de fatores, entre eles, um histórico de doenças. “Foi emitido mandado judicial para que ele fosse atendido com urgência, mas a ordem não foi cumprida. Fomos então à Ouvidoria, que emitiu uma carta reforçando o risco de vida e tudo o que estava acontecendo. O mandado expirou, entramos com outro pedido, mas esse também não foi cumprido. Também acionamos a Secretaria de Estado de Saúde e publicamos a situação nas redes sociais, buscando alguma saída”, narra Ana Paula.
‘Luta muito grande’
No dia 1º de outubro, o paciente recebeu a liberação de transferência para Ubá, sem ainda ter passado pela cirurgia. “Ficamos aguardando por mais de 40 dias. É uma luta muito grande, ninguém dava previsão ou um posicionamento sobre uma vaga. É um momento muito delicado. A todo mundo que pedimos informações a respeito, a resposta era a mesma, que tínhamos que aguardar. Mas essa incerteza é muito cruel”. Durante o tempo em que Jorge ficou internado, seu organismo foi se enfraquecendo. Após a transferência para Ubá, ele continuou sem o acesso à cirurgia. Neste período ele teve pneumonia e anemia, e como estava muito debilitado, não pode passar por operação.
“Os médicos passaram remédios para que ele pudesse melhorar para fazer a cirurgia. Ele foi para o Centro de Tratamento Intensivo (CTI) para que pudesse se alimentar por sonda, porque o estômago já não estava aceitando a comida. No dia que meu irmão foi novamente tentar conversar com os médicos sobre a situação dele, meu tio não resistiu e faleceu. Ficamos de pés e mãos atadas”, conta Ana Paula.
Na visão da ouvidora de saúde, Samantha Borchear, diante de todas as faltas existentes, não há alternativa senão a espera. “Onde há o binômio fila/falta de financiamento, as pessoas terão que esperar, pois temos que considerar a existência da fila de espera, e quem avalia as prioridades, urgências e outros critérios são os médicos reguladores.” Samantha reforça que a população precisa fortalecer o trabalho de cobrança aos órgãos públicos, visando a intervenção e a melhoria dos fluxos, explorando a rede existente e propondo saídas técnicas e legais. “É lamentável esta situação a que chegamos. Mas deixamos claro que a ouvidoria não tem poder de executar nenhuma política de saúde. Temos a missão importante de sensibilizar a gestão e os prestadores, com os nossos dados, que são bases para a tomadas de decisões. E nós brigamos, reivindicamos, como se o cidadão fosse um ente querido nosso, mas isso não é suficiente, neste cenário de ínfimos recursos que temos passado”, lamenta.
Áreas vascular e ortopédica lideram demanda
Segundo a Ouvidoria Municipal de Saúde, as especialidades mais demandadas na cidade são cirurgia vascular e na área de ortopedia, que ocupam leitos de longa internação, inclusive. Diferente das cirurgias eletivas, nas quais o próprio paciente dá entrada nos pedidos, no caso das urgentes, quem busca a solução do problema é a família. “A ouvidoria recebe a solicitação e inicia as cobranças junto aos hospitais prestadores e à Central de Vagas. Nem sempre com êxito, pois a demanda está maior que a oferta. Também atuamos internamente, com a gestão, levando e discutindo possíveis soluções, credenciamentos, mutirões, cessão de médicos, entre outros”, explica a ouvidora Samantha Borchear.
As subespecialidades que acumulam maior concentração de casos, como cirurgias de mão, joelho e quadril, possuem fila extensa tanto no eletivo, quanto na urgência. É o caso de um paciente que preferiu não ser identificado e que aguarda por uma cirurgia na mão. Ele está internado e conta que sofreu um acidente na semana passada. “Tive fraturas expostas. Fui medicado e uma das minhas mãos foi operada. Mas preciso que o tendão da outra mão passe por cirurgia com um especialista em mãos. Eu aguardo um laudo médico desde a segunda-feira (21), para que possa dar entrada no pedido judicial”, conta.
O homem recorreu a várias pessoas para tentar a transferência para algum hospital que tenha cirurgião de mãos, mas ainda não conseguiu resposta. Ele luta contra o tempo para que consiga recuperar os movimentos. “Tenho um prazo de apenas uma semana para operar, se não, posso perder os movimentos da mão. Eu realmente dependo disso, porque trabalho para sustentar minha família e preciso das mãos funcionando.”
Segundo Samantha, há pouco profissionais na cidade, tanto na rede pública, quanto na privada, que atuem diretamente sobre essas áreas, o que gera muita dificuldade na realização dos procedimentos. O problema passa pela escassez de recursos, à medida que os prestadores de serviço têm atuado no limite de suas capacidades físicas e operacionais. “Em algumas demandas, (os prestadores) até propõem aumento de leitos, equipes e mutirões, mas não há financiamento.” Nesse ponto, ela salienta que esses recursos deveriam ser empregados por todos os entes, em especial, Estado e União.
Chegar ao atendimento
O cabeleireiro Ronaldo Francisco de Oliveira, 53 anos, esperou 74 dias por uma cirurgia após ter um infarto. O caso dele está entre as cirurgias com maior demanda na cidade. No dia em que aconteceu o problema, ele foi levado a uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA) no Rio de Janeiro. “Precisei entrar na justiça para conseguir ser atendido. Entrei com o processo e ganhei. Depois, fui transferido”, relata. Lá, ele passou por cateterismo e ficou aguardando a operação por 30 dias. Como a intervenção não aconteceu, ele veio para Juiz de Fora, onde ficou internado por mais 54 dias, até que tivesse acesso ao procedimento no Hospital João Felício. “Fiquei com medo de demorar mais, já estava desassossegado com o tempo que fiquei internado. Estava louco para sair de lá.”
Contudo, apesar da demora, Ronaldo elogia o atendimento feito pelos profissionais. “Lá eu recebia os remédios de controle. Sei que se estivesse fora do hospital, teria infartado de novo, com certeza. Eles monitoraram tudo e o atendimento foi muito bom. Há dois meses consegui passar pela cirurgia e estou me recuperando. Acho que a demora foi em função do tamanho da fila de gente esperando. O que eu sei é que demorou muito”, avalia.
‘Todo problema complexo precisa de uma solução complexa’
Olhar para as cirurgias de urgência implica ver uma rede complexa de causas e efeitos, que deve ser levada em consideração, conforme aponta o subsecretário de Regulação, Rômulo de Castro Martins. Ele frisa que há muitos elementos que precisam ser contados nessa equação, a começar pelo número de cirurgias de urgência realizados mensalmente. A média mensal chega a 3 mil procedimentos, o que, em valores monetários, ultrapassa a marca do R$ 6 milhões por mês. O Município custeia este gasto com recursos vindos da União, do Estado e até mesmo do tesouro da cidade. Além do aporte financeiro, que, segundo ele, não é suficiente para fechar as contas, há outros aspectos que impactam diretamente o atendimento. Hoje, a área de referência de Juiz de Fora recebe também pacientes de 94 municípios da região, que abrangem uma população de cerca de 1,1 milhão de habitantes. Há ainda pacientes de outras localidades. Rômulo diz que há pessoas de regiões como o Vale do Jequitinhonha, no Norte do Estado, que passam por atendimento na cidade.
“Para conseguirmos equalizar essa situação, precisamos de um maior aporte de recursos. Na ortopedia, temos três prestadores habilitados para realizar procedimentos de alta complexidade, que são mais difíceis e específicos. Hoje, o Município já extrapola muito o que recebe para fazer esse atendimento com esses prestadores. O recurso que vem do Estado e da União são insuficientes. Existem colegiados próprios para avaliar essas situações. Temos comissões inter-gestores, em que as demandas e o déficit de recursos são apresentados. Cobramos o Estado o ressarcimento desses valores”, destaca Rômulo.
Conforme o subsecretário, a demora para o atendimento vem de uma série de contextos, que passam pela crise do governo do Estado, que tem uma dívida com o Município. “Todo problema complexo, precisa de uma solução complexa. Além disso, há movimentos sociais, então são muitas variáveis. Não dá para afirmar uma única causa e nem fazer uma análise simplista sobre o tema. Até porque há uma dinâmica própria. Hoje pode ter quatro pessoas aguardando uma vaga de CTI, no dia seguinte são 15, mas pode ser que depois, não tenha ninguém.” Para Rômulo, também é preciso contabilizar as situações sazonais. No inverno, há mais ocorrências de problemas respiratórios, enquanto no verão, há mais acidentes traumáticos.
O subsecretário ainda acrescenta que a judicialização não é o melhor caminho para essas demandas, porque ela vai interferir no processo de regulamentação dos demais casos. “A partir do momento que ela entra, o caso que é prioritário sai da frente, conturbando a ordem. O paciente tem a ouvidoria como caminho, que faz a notificação ao Município.”
(Correção: Originalmente, a Tribuna publicou que os quase 600 registros na Ouvidoria de Saúde estavam relacionados a procedimentos cirúrgicos. Na verdade, trata-se de pedidos de transferências, tanto de pacientes de Juiz de Fora, que precisam de atendimento em outra cidade, como de pessoas de outros municípios que necessitam da rede pública de saúde local. Segundo a ouvidoria, as cirurgias são os motivos para cerca de 80% destes pedidos de transferências, mas não representam a totalidade das reclamações.)