As sequelas que a Covid-19 deixou em juiz-foranos que se recuperam da doença têm se tornado um desafio para a saúde pública na cidade. A recuperação total da infecção pelo coronavírus passa pelo tratamento de complicações diversas – das mais simples, como perda de paladar e olfato, até as mais graves, como as sequelas respiratórias e motoras -, que exigem acompanhamento médico multidisciplinar. Entretanto, o município de Juiz de Fora não tem serviço específico para acompanhar as pessoas que sofrem com sequelas do coronavírus, e há pacientes com dificuldades para conseguir este tipo de tratamento pelo SUS. Em algumas unidades de saúde, a procura por atendimentos relacionados ao pós-Covid-19 aumentou até 50%, como é o caso da Agência de Cooperação Intermunicipal em Saúde Pé da Serra (Acispes).
A necessidade de acompanhamento médico no pós-Covid-19 persiste mesmo no cenário epidemiológico atual, com menos casos graves e mortes. Conforme especialistas, muitas pessoas que necessitaram de internações mais longas por conta da doença passaram a demandar tratamento multidisciplinar para se recuperarem totalmente, aumentando a demanda por consultas com fisioterapeutas, cardiologistas, pneumologistas e fonoaudiólogos e exames de imagem, por exemplo. Com um sistema sobrecarregado, já que muitos dos serviços considerados eletivos também ficaram parados durante os momentos mais críticos da pandemia e foram retomados aos poucos, a preocupação é que o Sistema Único de Saúde (SUS) não consiga absorver a demanda.
Em Juiz de Fora, segundo a Ouvidoria de Saúde do município, foram registrados alguns casos de pacientes com dificuldades para conseguir tratamento de recuperação via SUS. Conforme a ouvidora Samantha Borchear, o órgão tem, dentro da capacidade assistencial da rede, encaminhado esses pedidos para atendimento. “Tal situação já foi objeto de pauta em reunião do nosso Conselho Municipal de Saúde em maio de 2021, e apresentei nossas preocupações e demanda à secretária de saúde, que se mostrou solidária, e nos foi relatado que a gestão tem articulado com prestadores da rede para viabilização de centro de atendimento para este público”, informou à Tribuna, por e-mail.
Procurada pelo jornal, a Secretaria de Saúde da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) não informou o percentual de aumento da demanda por serviços do SUS por conta da pandemia, mas afirmou, no entanto, que vem trabalhando para garantir assistência a pacientes em reabilitação e que trabalha para criar um ambulatório pós-Covid na cidade.
Família gasta mais de R$ 2 mil com tratamento por mês
Um dos casos apurados pela Tribuna em que o paciente não conseguiu atendimento via SUS é o do aposentado Gilberto Vieira, de 61 anos. Com hipertensão, diabetes e obesidade, ele foi diagnosticado com a Covid-19 no dia 17 de março deste ano. Oito dias depois, em 25 de março, uma tomografia apontou que seu pulmão estava 50% comprometido. No mesmo dia, como conta a filha de Gilberto, Anielle Guelber, ele precisou ser internado e intubado. “O período de internação na UTI foi muito delicado, pela situação que meu pai se encontrava e pela suas comorbidades. Foram dias de luta pela vida. No dia 8 de maio, finalmente, veio a tão sonhada e esperada alta para enfermaria, mas ali nós sabíamos que estávamos começando uma outra luta, que é a fase da reabilitação que requer muita paciência, sabedoria e muito amor”.
Dois meses depois da internação, Gilberto teve alta hospitalar. Porém, ele voltou para casa ainda debilitado: sem andar, usando fraldas e com algumas feridas no corpo, decorrentes do longo período de internação. Segundo Anielle, antes da alta, uma equipe do Departamento de Internação Domiciliar, que é um serviço do SUS que oferece suporte médico em casa, fez uma avaliação do caso. Porém, Gilberto não se encaixou. “Na hora eu fiquei sem entender, pois o caso dele ainda inspirava muitos cuidados. Então não tivemos escolha, o SUS não deu nenhuma assistência. Alugamos cadeira de banho e de rodas, cama hospitalar. Hoje, todo o tratamento dele é feito particular, incluindo os remédios”, disse Anielle.
Atualmente, Gilberto está ainda sem os movimentos, devido a escaras que adquiriu no sacro por ficar tanto tempo deitado. O aposentado começou a tomar medicamentos para trombose, problema que não tinha antes do coronavírus, e também para taquicardia, que desenvolveu no hospital. “Os acompanhamentos estão sendo feitos com fisioterapeuta, enfermeiro especializado em úlcera de pressão, nutricionista e infectologista. Temos um gasto de R$ 2.300, sem contar alimentação e outras coisas”, afirma a filha de Gilberto.
O aposentado também conversou com a Tribuna e, apesar de ainda lidar com as sequelas da infecção pelo coronavírus, deixou uma mensagem de esperança: “Eu fiquei 61 dias internado, e a recuperação é lenta. Eu sei que vai demorar um tempo, mas eu estou com muita esperança. Agora estou em casa, com sequelas, mas faço tratamento e fisioterapia. Graças a Deus, consegui vencer a Covid-19”, comemora Gilberto.
Idosa precisou ser reinternada devido a tromboembolismo pulmonar
Joana de Almeida, de 89 anos, foi infectada pelo coronavírus em meados de dezembro de 2020. Segundo a neta Juliana de Almeida Santos, que é enfermeira, os sintomas da avó foram leves, a princípio. Entretanto, a idosa precisou ser levada até o pronto atendimento de Covid-19. “Naquele momento ela estava visivelmente mais debilitada. Foi internada na enfermaria Covid, por cerca de 17 dias, sob oxigenoterapia. Foi um processo doloroso e incerto. Ela, que é lúcida e totalmente dona de si, ficou debilitada e dependente”. Segundo ela, apesar de a avó ter comorbidades como hipertensão, diabetes e dislipidemia, a família acreditava na sua recuperação, já que a avó, mesmo com idade avançada, superou recentemente um câncer de mama.
Após a alta, Joana ficou dependente de uso de oxigênio em domicílio e apresentou sequelas como falhas de memória recorrentes e dificuldade de locomoção. Durante sua recuperação, conforme conta a enfermeira, a avó precisou ser novamente encaminhada ao pronto atendimento. “Na madrugada de 7 de janeiro ela evoluiu com quadro de falta de ar intensa e súbita e demais sinais sugestivos de tromboembolismo pulmonar. Novamente nos deslocamos imediatamente para o pronto atendimento. Apesar de a fase de transmissão da Covid ter passado, ela entrou no fluxo do atendimento da Covid por apresentar sintoma respiratório. A angústia dessa vez tomou conta da família, pois devido à gravidade da doença (confirmada por exame específico), dessa vez, ela ficou aos cuidados da equipe de terapia intensiva. Mas ela, forte como sempre, superou outra internação e teve alta no dia 16 de janeiro”, narra.
A recuperação de Joana tem caminhado desde então. Segundo a neta, após a segunda internação, a avó também precisou manter cuidados domiciliares e uso de oxigênio. Conforme a enfermeira, ela recebe atendimento pelo Departamento de Internação Domiciliar (DID) da PJF, e foi, inclusive, imunizada pelo setor, mas algumas consultas precisam ser realizadas pelo plano de saúde particular. “O tratamento pós-Covid é bastante detalhado e necessita de olhares multidisciplinares, porque o vírus acomete o organismo de maneira multissistêmica. Após a alta, as demandas que ela apresentou foram em relação à memória, lesão pulmonar, alopecia, perda de massa magra, lesão renal e anemia. Mas hoje ela se recupera gradativamente, resgatando sua autonomia e autoestima.”
‘SUS sobrecarregado’
Atuando no CTI Covid de um hospital público na cidade, Juliana observa que são comuns casos de tromboses, arritmias e isquemias após a doença. No entanto, na avaliação da enfermeira, é notório como o processo de vacinação tem sido fator decisivo para casos grave de Covid. “À medida em que a população é vacinada, a característica dos pacientes internados vêm se modificando a ponto de amenizar sinais e sintomas e minimizar o sofrimento do paciente”, constata a enfermeira. “No entanto, apesar de ser o sistema ideal, o SUS é sobrecarregado, pois, além da pandemia, existem as outras demandas que podem estar reprimidas. Sendo assim, é importante mantermos o uso de máscara, distanciamento social e imunização com as duas doses da vacina”, complementa.
Falta de assistência causa reinternação e sobrecarrega sistema
O médico infectologista Marcos Moura atende vários juiz-foranos que estão com sequelas graves decorrentes do coronavírus, como é o caso do aposentado Gilberto Vieira. Eles fazem todo o tratamento na rede privada, apesar de, para o especialista, esse tipo de acompanhamento ser essencial para esses pacientes, que nem sempre têm condições de pagar por ele.
De acordo com Marcos, o acompanhamento com especialistas é fundamental principalmente para aqueles que já tinha alguma comorbidade, já que o coronavírus pode agravar doenças pré-existentes. “De forma geral, os pacientes que tiveram um quadro grave vão precisar de uma equipe multidisciplinar, que vai além dos médicos especialistas, e se soma a fonoaudiólogos, fisioterapeutas e psicólogos, por exemplo, para voltar mais rápido à sua rotina. No serviço público é muito complicado, pois já há uma carência de especialistas na rede antes da pandemia, e esse paciente acaba ficando desassistido e retornando precocemente a uma emergência, o que é muito comum. Isso é ruim, já que o paciente acaba tendo que ser reinternado e, muitas vezes, contrai a doença de novo. Piora o sistema de saúde”, destacou.
Para o médico, seria necessária uma preparação do sistema de saúde na atenção secundária, nas especialidades. “O ideal seria formar ambulatórios, como tem sido feito em alguns municípios, valorizando este acompanhamento dos pacientes. Na pandemia houve uma valorização somente do setor emergencial. Os médicos estão com agendas lotadas, às vezes atendendo cem pacientes por mês e sem reforçar a atenção secundária”, finalizou.
PJF diz que trabalha para a criação de ambulatório pós-Covid-19
Apesar de não confirmar se houve aumento de demanda por conta das sequelas da Covid-19, a Secretaria de Saúde de Juiz de Fora corrobora com a ideia de que o tratamento continuado no pós-Covid-19 é essencial para os pacientes. Conforme a pasta, a partir da necessidade de oferecer uma assistência diferenciada e proporcionar maior segurança aos pacientes após a doença, a secretaria está trabalhando na criação de um ambulatório pós-Covid-19. “O Município espera que este ambulatório possa integrar as redes assistenciais e promover a reabilitação dos usuários que após infecção pelo SARS-CoV-2 apresentem sequelas funcionais e necessitem da continuidade dos cuidados, ampliando, desta forma, nossa rede de atendimento a este público”, respondeu após ser procurada pela Tribuna, em nota.
Ainda conforme a pasta municipal, a síndrome pós-Covid engloba uma ampla gama de problemas de saúde, recorrentes ou contínuos, levando à necessidade de tratamentos e reabilitação. “Dados do Ministério da Saúde mostram que mesmo após a cura da Covid-19, cerca de 40% dos contaminados continuam com algum tipo de sintoma ou desenvolvem novos problemas ligados à doença após deixarem as UTIs ou enfermarias”, informa o texto.
A secretaria destaca, ainda, que o tempo de reabilitação dos pacientes depende da gravidade das sequelas, da idade e da presença de outras comorbidades. “Por isso, é importante o trabalho de identificação realizado pelas equipes da atenção primária à saúde dos pacientes que já tiveram a Covid-19 e que apresentam qualquer agravo, principalmente os que passaram pela Unidade de Terapia Intensiva, para que o acompanhamento paciente seja realizado.”
Tratamento em Pneumologia
O Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (HU-UFJF/Ebserh), que também atende pacientes do SUS, já criou um departamento específico para casos de sequelas pneumológicas. À Tribuna, o HU afirmou que “recentemente foram abertas vagas para um ambulatório específico de atendimento a pacientes pós-Covid em estado grave no serviço de pneumologia.” Conforme o HU, os agendamentos são realizados via sistema de regulação pela Secretaria de Saúde da Prefeitura de Juiz de Fora.
A unidade pode contribuir para o acompanhamento multidisciplinar dos pacientes que se recuperam das sequelas da Covid-19. “Neste ambulatório, os pacientes com necessidades de exames e atendimento multiprofissional recebem os encaminhamentos e são direcionados para cuidado integral no próprio Hospital Universitário.”
A Tribuna também procurou o Hospital Regional João Penido, gerido pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig) e referência na região para tratamento da Covid-19. Entretanto, o hospital não tem atendimento para reabilitação pós-Covid. O hospital funciona na modalidade porta fechada, ou seja, não recebe pacientes com demanda espontânea, atendendo somente aqueles que são encaminhados pela central de regulação.
Acispes vê procura aumentar, mas tem conseguido absorver demandas
Garantir o atendimento aos pacientes de 27 municípios que enfrentam sequelas da Covid-19 também é uma preocupação na Agência de Cooperação Intermunicipal em Saúde Pé da Serra (Acispes). Na unidade de saúde, a demanda por exames de imagem aumentou 50%, e a busca por determinadas especialidades para acompanhamento pós-Covid-19 também subiu cerca de 30% durante a pandemia.
Apesar do aumento deste tipo de serviço, a diretora executiva da Acispes, Pollyana Chagas, afirmou que a agência, que atende exclusivamente pacientes do SUS, tem conseguido absorver as demandas dos municípios consorciados. De acordo com ela, a instituição, inclusive, conta com uma equipe multidisciplinar para cuidados de pacientes no pós-Covid-19. “O impacto da doença para a Acispes foi bem relevante. Identificamos um aumento na procura de exame e consultas, principalmente na parte cardiológica. Muitos pacientes desenvolveram outras condições que demandam acompanhamento”, analisa Pollyana.
Conforme Pollyana, exames como ecocardiograma, raio-X e tomografia de tórax, além de ultrassom para identificação de fenômenos tromboembólicos (sequelas comuns após a doença), têm sido os mais buscados por pacientes. Em relação às especialidades médicas, houve aumento de cerca de 30% nos atendimentos da cardiologia, angiologia, pneumologia e neurologia. “As condições e sequelas pós-Covid-19, se não tratadas, podem se tornar crônicas. Como a doença afeta diferentes parte do corpo, é preciso um tratamento multidisciplinar. Por isso os municípios têm que olhar com atenção, fortalecer a atenção primária e cuidar do pós-Covid, que pode até ser até fatal”.
O enfermeiro responsável técnico da Acispes, Guilherme Reis, também destaca a importância do cuidado multidisciplinar para a recuperação funcional e psicológica do paciente. “As sequelas deixadas pela Covid-19 não são só físicas, também são psicossociais. E cada paciente é único, tem um tipo de limitação, que precisa ser trabalhada de forma individual. A Acispes tenta orientar medidas para minimizar essas sequelas. Atualmente temos um tratamento continuado e multidisciplinar, com médico, enfermeiro, nutricionista, assistente social, fisioterapeuta, farmacêutico e psicólogo para orientação destes pacientes”, afirma.