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‘Tortura é a própria prisão’, diz escritor Samuel Lourenço Filho

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Foi na prisão no Rio de Janeiro que o gestor e escritor Samuel Lourenço Filho, 36 anos, conseguiu completar o ensino médio e se formar em Gestão Pública para o Desenvolvimento Econômico e Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na contramão do jovem de 20 anos que matou uma mulher em 2007, Samuel insistiu na vida e persiste, superando as marcas do tempo em que esteve encarcerado. Foram seis anos em regime fechado e mais três no semiaberto, durante o qual evoluiu das saídas para a faculdade à maratona das 6h à meia-noite para trabalhar e estudar. Ainda viveu mais três anos em liberdade condicional, completando a pena de 12 anos, reduzida da inicial de 15 anos.

Autor dos livros Além das grades (2018), Gangrena (2020) e Ressocializado na cidade do caos (2022), Samuel estará em Juiz de Fora nesta segunda-feira (26) para palestra promovida pela 4ª Subseção da OAB. Em pleno Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura, o “ex-presidiário”, como ele próprio se denomina, fala de “Direitos Humanos e Cidadania x Unidades Prisionais”. O evento acontece à noite no Auditório da Escola Superior de Advocacia (ESA), na Rua Marechal Deodoro, no Centro, mediante inscrição.

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Em entrevista concedida à Tribuna, Samuel fala de tortura psicológica, da importância da ressocialização e do quanto o sistema ainda precisa evoluir. “A prisão é um marco recorrente e te marca para sempre. Provoca no sujeito o medo de ele ser preso de novo, mas não o faz refletir sobre o crime.”

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Samuel estará em Juiz de Fora nesta segunda-feira (26) para palestra promovida pela 4ª Subseção da OAB (Foto: Arquivo Pessoal)

Tribuna de Minas – Como é falar de Direitos Humanos e Cidadania a partir da sua visão como egresso do sistema prisional?

Samuel Lourenço Filho – É um desafio, porque envolve sempre questões, às vezes de cunho pessoal, das próprias dores, de tudo o que enfrentei. E isso pode soar muito mais como uma reclamação do que uma reflexão pública sobre o quanto ainda é necessário falar sobre os direitos humanos. Primeiro, é o desafio do próprio tema considerando a experiência pessoal, porque é anunciar coisas que dizem respeito à sua dor. Mas não é uma dor isolada, é a dor de mais de 800 mil pessoas espalhadas pelo país. Além de desafiador, também é uma questão de esperança. Vivemos um período de entendimento de que a prisão é um ambiente que tem que ser desprovido de direitos e, consequentemente, de dignidade. Então vamos num fluxo contrário, em que o tema cidadania e direitos humanos, no contexto prisional, ainda é um sinal de esperança de que as pessoas insistem em tocar nesse assunto. Mas se torna um problema, porque ainda precisamos falar sobre isso dia após dia. (…) Depois de décadas da Declaração dos Direitos Humanos, temos um contexto democrático razoável, que já transpôs gerações para compreendermos o quanto é imprescindível e fundamental falar de cidadania e direitos humanos no âmbito do sistema prisional. Como egresso, é reivindicar uma condição própria. Por mais pessimista que seja a percepção social sobre esse retorno à sociedade, o egresso é um cidadão, com aspectos mínimos que lhe dão condições de ser alguém na vida, digno de viver em sociedade sem ser importunado ou desconsiderado enquanto sujeito a partir do seu histórico penal, às vezes já superado.

Acredita que a tortura faça parte da rotina de presidiários no país? De que forma ela acontece?

A tortura faz parte da rotina de presidiários no momento em que a pessoa ingressa na prisão. Não dá para dissociar o equipamento prisional do termo tortura, por mais digno que ele possa parecer, por mais ‘apaquiano’, ainda assim, é um ambiente de tortura. Se todos os espaços prisionais cumprissem rigorosamente a Lei de Execuções Penais, que traz muita dignidade para o contexto prisional, ainda assim seria um ambiente de tortura. O próprio Foucault (Michel) fala que a gente tem a prisão não para tocar no corpo, mas na mente do sujeito. Ou seja, aquelas torturas físicas não vão precisar ser realizadas, porque as torturas psicológicas também vão acontecer. (…) A prisão não é o fato de ficar cerceado do direito de ir e vir, de ter sua comunicação restringida, com horários para comer e para visita. Não é sobre rotinas disciplinares. Estamos falando sobretudo da coerção do corpo, do atravessamento bárbaro do sujeito a partir da prisão. É um ambiente de tortura por si só, seja pelos muros altos, pelos cadeados e grades, pela ostensividade das armas de fogo, dos uniformes policiais, do tratamento. (…) A própria convivência prisional é um problema: o guarda quebra o biscoito para o cara comer o biscoito quebrado, porque ele não tem o direito de comê-lo inteiro. Se isso não for tortura, se não for desumanidade, isso é o quê? A dinâmica da prisão é torturante nessa perspectiva de que quanto mais sofrer, melhor há de se tornar. (…) São práticas que acontecem no cotidiano, sejam de agressão ou de suspensão de coisas. (…) Não está só na violência física, mas no entendimento de que o preso não é gente, de que pode esperar o tempo da justiça, de que o atendimento jurídico pode ser por ordem alfabética porque a Defensoria não dá conta. Então são formas de privar o sujeito, consequentemente fustigá-lo, tanto no corpo, quanto na mente, a experimentar a dor.

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E como o Estado poderia mudar esse quadro?

A melhor maneira de mudar a realidade da prisão é diminuindo os muros. Quando todo mundo passar a ver o que acontece na prisão, talvez as coisas melhorem. Máquina fotográfica na cadeia é uma ameaça, gravador e público também. O que está em jogo não é a descoberta do sistema de segurança para um eventual ataque criminoso, mas esse cerceamento da percepção do que é a prisão, justamente para não contemplar as ilegalidades, o método autoritário e bruto. (…) O Brasil tem comissões de direitos humanos, está vinculado à Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Poder Judiciário tem fiscalização de presídio, o Ministério Público tem monitoramento carcerário específico, assim como a Ordem dos Advogados e a Defensoria. A sociedade civil, por meio dos conselhos das comunidades, poderia integrar e fiscalizar. Existem assembleias legislativas que possuem comitê de combate à tortura, o Conselho Nacional Penitenciário, o Ministério dos Direitos Humanos, a Secretaria de Assuntos Penitenciários. Não falta gente para fiscalizar prisão. Então no âmbito jurídico tá sobrando, é só fazer acontecer. Mas o Estado deveria se reconhecer insuficiente e incapaz de fazer a gestão penitenciária por meio da responsabilização penal através da prisão, porque é um problema, e nada do que a gente faça vai atenuar esse ambiente de tortura, porque tortura é a própria prisão. As pessoas deveriam ser responsabilizadas penalmente de outra forma, que não necessariamente envolvesse a prisão para todos os crimes como única alternativa, estimulando iniciativas capazes de reduzir ou erradicar essa prática perversa. (…) Há mecanismos de sobra para a gente mudar essa realidade.

Em seu Instagram você destaca: “A dor não ensina, ela impõe, traumatiza.” Essa frase parece fazer referência à tortura psicológica. Houve episódios desse tipo atrás das grades que te marcaram?

Temos a percepção de que o sofrimento e a dor são capazes de provocar algum ensinamento, mas, na verdade, causam traumas. A prisão é uma tortura psicológica o tempo todo. É um jogo entre corpo, mente e autoridade, em que você precisa estar sempre bem relacionado para poder se segurar naquele lugar. Mas o próprio aprisionamento é uma tortura psicológica, é uma experiência muito ruim. (…) A prisão traumatiza e é violenta. Todo esse processo: desde a custódia; desde a prisão com disparos de arma de fogo sobre mim, quando eu já estava rendido; desde as agressões desnecessárias sofridas no momento do interrogatório; o próprio cotidiano da prisão, pela espera, ausência da água, dos insumos básicos e o tratamento dispensado; a cela sem lugar para dormir, tendo que revezar entre dormir em pé e sentado, ou deitado em um canto espremido. Como fui baleado, eu tinha prioridade para ficar deitado. (…) A prisão provoca no sujeito o medo de ele ser preso de novo, mas não o faz refletir sobre o crime. A percepção de que a prisão em si é o maior mal, acima do crime praticado, de que o castigo é mais assustador do que o erro cometido, não trata da origem de alguns problemas e traumatiza para sempre. Eu cometi um crime em 2007, estamos em 2023, e 16 anos depois continuo falando da prisão, muito embora pudesse falar do meu trabalho e da minha vida. Mas a prisão é um marco recorrente e te marca para sempre. Vou sempre ser visto como um ex-presidiário, por mais que eu tenha constituído vida, família e seguido minha trajetória. (…)

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Qual a importância desta palestra, em pleno Dia Internacional de Apoio às Vítimas da Tortura, promovida pela OAB? Qual a conscientização esperada com esse debate?

É importantíssimo o fato de a sociedade civil e as instituições ainda se comprometerem com um tema que, geralmente, é desprezado. Precisamos falar da prisão ano após ano. Não perdemos a esperança de tocar nesse assunto, na capacidade de mudança. É um tema de interesse público, que precisa ser debatido. Falar de vítimas e de torturas na prisão é importante para continuar chamando a atenção de que essa prática não acabou. Apesar de tanta truculência no contexto social, a OAB ainda se preocupa com o tema, enfrenta esse discurso. Qualquer um que se levantar para falar da violência no âmbito prisional vai sofrer o revés de que não deveria falar nisso. O evento deixa claro que a OAB não coopera com esse tipo de prática, se posicionando pela legalidade nos procedimentos jurídicos e pela dignidade no cumprimento da sanção penal. Existem marcos jurídicos que precisam ser respeitados, porque sobretudo estamos falando de vida, e vida continuada, porque essas pessoas vão sair da prisão. Isso (tortura) precisa ser confrontado como algo nocivo para a nossa sociedade. Se o latrocínio, o estupro, o tráfico de drogas são considerados crimes, da mesma forma a ilegalidade do tratamento prisional não pode passar batida. (…)

Como era o Samuel antes de ser preso e quem é o Samuel agora?

Quando eu cometi um assassinato eu tinha 20 anos. E o fato de eu ter pouca idade não me torna irresponsável sobre o que aconteceu. Tenho plena consciência de que eu cometi um crime muito bárbaro, muito grave, que não há justificativas. O Samuel de hoje traz em mente o cuidado familiar. Sempre fui muito cuidado pelos meus pais e familiares, sempre tive muito carinho. É possível viver depois de tudo ou sobreviver mediante a tudo. Tento refletir sobre o Estado que me prendeu. Meu crime é contra uma mulher, matei uma pessoa para interesse de outra. E sempre penso: se um cara matasse minha irmã, não era esse tratamento de descaso que eu gostaria que ele passasse. Não vi justiça na minha sentença. Minha pena foi de 15 anos, branda no contexto de assassinatos, mas você é lançado na prisão e te largam para lá. Isso é um desrespeito total com o preso e com a vítima. Então o Samuel de hoje superou, se relaciona diretamente com essa dor, entende o que fez, mas não esqueceu. Matei uma pessoa e não quero esquecer disso, não me orgulho. Quando eu olho o que me tornei, fico me perguntando se havia necessidade de passar por isso. Foi uma ação que só me fez mal.

O que diria para as pessoas que estão atualmente no sistema carcerário sem esperança de ressocialização?

Se não tivessem esperança já tinham morrido. Dá para virar esse jogo, vencer, superar. E eu sou um exemplo disso: autor de um crime bárbaro, quando deveria absorver toda a ojeriza e repulsa social, preferi olhar para as pessoas que, com muita frieza, me recebiam com tratamento digno. Ainda que odiado por alguns, saí para a rua sendo respeitado. Apesar de tudo de ruim que eu tinha feito, eu deveria viver em sociedade. Precisamos viver, insistir e acreditar na ressocialização (…) Hoje sou pai, marido, profissional e consultor da Unesco, em projeto desenvolvido pelo Poder Público de cooperação internacional. Temos que insistir na vida, porque ela tem a capacidade de ser generosa com a gente. A vida não quer nos perder.

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