Qual o significado do Natal? Embora tal resposta exale subjetividade, para algumas pessoas, este dia representa a mobilização coletiva no ato de se doar, ouvir e cuidar do outro em todas as suas diferenças. É o que Cláudia Maria Guzzo, 53 anos, faz. Há três décadas ela escreve sua história dentro do voluntariado, com a participação de muitas mãos. Com a sala de casa cheia de doações e o coração desejoso pelos momentos de partilha, nesta véspera de Natal, ela e sua amiga, Lúcia Moreira, junto de outros voluntários do projeto Anjos da Rua, vão andar por Juiz de Fora distribuindo comida e compartilhando os múltiplos sentidos desta noite com pessoas em situação de rua.
Moradora da cidade há 23 anos, o percurso de Cláudia se iniciou quando, em meados de 1993, residente de outro município, em São João del-Rei, uniu-se ao seu esposo, Luciano, na época ainda namorado, mais sua cunhada Lígia para distribuírem suprimentos no dia 25 de dezembro. Mesmo não estando mais lá, o projeto continua pulsando vida e está ainda maior. Neste ano, segundo ela, irão sair cerca de dez carros para ir ao encontro das pessoas no dia de Natal.
De volta a Juiz de Fora, nesses quatro anos somados de atuação no Anjos da Rua, além do sentimento de ser capaz de transformar seu próprio tempo em uma forma de se fazer disponível ao outro, o que é mais marcante são os aprendizados e a troca. “Nós vamos doar, mas acabamos recebendo. Recebo gratidão, orações, sorrisos. Estar ali é sinônimo de alegria para mim. São muitas as vezes que, quando vamos dar o lanche para uma pessoa em situação de rua, ela nos diz que sua fome já foi saciada, porque, na verdade, o que mais ela queria era ter alguém que a olhasse e escutasse sua história”, conta.
Para Cláudia, o Natal é uma festa que escancara as desigualdades e, por isso, é necessário resgatar seu sentido mais profundo de humanidade e família, ensinado a ela por meio da generosidade de sua falecida mãe, Dona Neusa. “As pessoas em situação de rua existem e não são lembradas, especialmente neste dia. O voluntariado é uma forma de participar de vínculos, de exercitar o prestar mais atenção ao próximo e também de fazer a comunhão do amor. A gente passou a aprender neste mundo que o que é material vale mais, mas é o poder de sentir a fé nas pessoas aumentando que nos preenche de verdade”, diz.
‘São tantas histórias…’
Outros caminhos levaram a coordenadora do Anjos da Rua, Lúcia Moreira, 56 anos, a se tornar voluntária. Era um dia de frio, há 16 anos, quando ela, vivenciando o luto pelo falecimento do esposo, decidiu sair às ruas com amigos para levar alimento a quem precisava. “Na época não éramos articulados nem tínhamos dinheiro, levamos apenas pão e bolacha. A experiência foi tão gratificante que começamos a fazer toda semana, até que vimos a necessidade de ampliar, buscar ajuda, voluntários e doadores. Assim nasceu o grupo Anjos da Rua, que sai toda semana há dez anos para levar alimentos, roupas e itens de higiene para as pessoas”, conta.
Desde então, ser voluntária ocupa parte significativa de sua vida, tendo a ajudado no processo de ressignificação da perda de uma pessoa amada. “Sinto que buscamos no voluntariado aquilo que nós não temos. Ele me dá o cuidado e o cuidar. Muitas pessoas não têm isso. Às vezes, você vem de uma família em que falta carinho e aconchego e recebe isso nas relações de voluntariado. Você quer fazer pelo outro o que você sente que falta para você. Foi um divisor de águas na minha vida e hoje não saberia viver sem. Parece que, se eu parar, estou desistindo também de mim, fica um vazio”.
‘Natal invisível’
Neste ano, a ação da véspera de Natal, que vai levar jantar para pessoas em situação de rua, é uma extensão do evento já realizado pelo grupo, o chamado “Natal invisível”, que acontece com a proposta de criação de um espaço de escuta, no qual as pessoas podem se manifestar em seus sentimentos e desejos sobre o Natal. “Eu amo a data e a celebração. Sinto a vontade de estar com eles, que me conhecem há anos, muitos me chamam de mãe, me reconhecem em qualquer ocasião, e o vínculo é de família. O verdadeiro sentido do Natal é ajudar e permitir ser ajudado, dividir o que se tem. O que adiantaria a gente fazer o ano inteiro nossas ações e, em uma noite tão cheia de sentimentos, não nos encontrarmos?”, pondera.
Com tantos Natais em partilha no decorrer de sua trajetória pessoal dentro do grupo, as memórias se fazem presentes como lembretes das pessoas que já cruzaram o caminho de Lúcia. Há dois anos, próximo da data festiva, ela conheceu um rapaz enquanto estava no Centro da cidade. Após uma conversa, ela tomou conhecimento de que ele havia saído de Natal, no Rio Grande do Norte, para conhecer uma pessoa com a qual ele se comunicava via internet. Chegando aqui, descobriu que se tratava de alguém em situação de rua e, sem dinheiro para voltar, estava há um ano vivendo do mesmo modo. “Quando ele me disse que queria passar o Natal com sua família, procurei entrar em contato com eles e comecei uma mobilização na rede social para conseguir a passagem. Até o dia da viagem, o levei para ficar na minha casa e fui com ele até o aeroporto. Quando ele me mandou notícias de Natal, foi uma grande emoção. Três meses depois recebi uma ligação dizendo que ele havia falecido por um infarto súbito. Esse caso marcou minha vida, sempre lembro dele, e o que me conforta é saber que ele pôde estar no Natal com sua família”, relembra Lúcia, emocionada, certa de que nas ruas da cidade trafegam sonhos à espera de um encontro com aqueles que se dedicam à arte de ver além.
*Bruna Furtado, estagiária sob supervisão do editor Wendell Guiducci