Ao contrário do que a história bíblica de Natal narra, sobre um parto em condições muito precárias, feito em uma manjedoura, há, no imaginário coletivo, a ideia de fartura associada à data. Produtos natalinos enchem as prateleiras dos mercados e as receitas típicas da época saltam aos olhos nas vitrines, fazendo com que assimilemos, aos poucos, a chegada da festa. Os calçadões e o comércio ficam apinhados de pessoas, de sacolas e da euforia de ajeitar os detalhes de última hora. Cenas que se repetem todos os anos e contrastam com a simplicidade que se tenta reproduzir nos presépios. Fora de todo esse dito clima de Natal, voluntários se dedicam a amenizar outras realidades, da qual a maioria desvia os olhos. Conscientes de que não vão conseguir acabar com todas as desigualdades por meio desses esforços, eles se dedicam a olhar para o outro e a doar algo de si, ganhando, dessa forma, um outro sentido para suas próprias vidas.
Encarando a aridez do Nordeste
O casal César Augusto Delgado e Cátia Cilene Muchick Delgado se dedicam a levar a esperança aos “pobres que o Brasil não conhece”, como eles mesmos dizem. Eles começaram fazendo doações para os índios, mas há três anos voltaram seus olhos para o Nordeste, ao saber que algumas pessoas comiam ratos em algumas localidades, por falta de alimento. Neste período, conseguiram arrecadar e entregar mais de 80 toneladas em doações.
Nesse ano, passaram 12 dias em viagem, levando roupas, mantimentos, material de limpeza, bíblias, livros e revistas para pessoas que vivem em facelas do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas. Diferente do trenó que no imaginário leva os presentes, o casal chega de um jeito bem brasileiro a quem mais precisa, na boleia de um caminhão, emprestado por um amigo deles. “O pouco que fazemos ainda é nada, mas a nossa vontade é amenizar o sofrimento das pessoas”, diz César.
As atividades solidárias do casal não se resumem a essas ações. “Fortalecemos o sentimento de compaixão e de amor nesse caminho. Esperamos que esse sentimento também possa ser despertado em outras pessoas. Já precisei da ajuda de outras pessoas e sei o quanto ela vale. Sempre carrego comigo um pacote de arroz para oferecer, caso encontre alguém precisando no caminho”.
O Natal, para eles, é uma ótima época para começar a fazer um serviço voluntário, e César nos coloca de volta dentro do exemplo bíblico:
“Perguntaram para Jesus o que poderiam fazer por Ele. Ele respondeu que fariam por Ele quando dessem comida aos pobres, vestissem os nus, fossem às prisões. ‘O que fizer aos pequenos, fazem a mim’. Há tantas mesas fartas, tanto desperdício. As pessoas podem começar por aí, oferecendo do que têm a quem não tem.”
Ele sugere, por exemplo, que quem possa, faça uma marmita com a comida da ceia e ofereça a alguém que não teria acesso a esse tipo de alimento.
“Não é só no Nordeste que tem gente aguardando por ajuda. Há muitas pessoas precisando. Para ser voluntário, a gente precisa ter compaixão, amor ao próximo. Dá para começar doando um pouco, oferecendo algum mantimento, uma roupa. É só ter vontade de fazer.”
Solidariedade para seguir em frente
Em meio à preparação para a montagem das cestas que entregaria no Natal deste ano, Maria Aparecida da Silva, fundadora e voluntária da Sociedade Beneficente Mão Amiga, foi surpreendida com um arrombamento, no qual parte das doações arrecadadas foi saqueada, há menos de 20 dias da entrega. A instituição atende a 150 famílias e enfrentou muitas dificuldades para realizar a festa de Natal nesse ano. Mas desistir nunca foi opção. Há 36 anos, desde que criou a instituição, Maria luta para que todos tenham o que pôr no prato na data celebrativa. “Se na minha mesa tem, se na de outros tem, por que na de nossos irmãos não vai ter? Temos que pensar no próximo. Não adianta ter tudo do bom e do melhor em casa, se quem está do lado não tem nada. Há 15 anos, cheguei com uma cesta de Natal na casa de uma senhora, na véspera. Ela estava comendo mocotó de boi. Aquilo mexeu muito comigo”, relata a mulher que tem o sonho de entregar cestas que contenham, além do básico, uma ave e uma lata de doce.
“Eu tive uma vida bem difícil. Tem pessoas que não têm auxílio nenhum e dependem da gente para comer. Quero que elas tenham pelo menos o essencial. As cestas básicas não têm carne, nem leite, só tem o básico: arroz, feijão, açúcar, óleo. Hoje, com R$10 ou R$15 conseguimos comprar um frango, na promoção. Não é muito, mas é o suficiente para fazer a alegria de uma família inteira.” Ela fala do alto da experiência de quem criou 14 filhos, sendo sete biológicos e sete adotivos. “No início, fui perguntada sobre o que gostaria de ter na minha ceia. Respondi que queria um chester, um peru. Agora sou aposentada e posso comprar uma ave. Mas trabalhamos mesmo com quem não tem nada. Tem gente que depende da gente para comer. Mesmo que não tenha nenhum luxo, mas que consigam ter o básico.”
Mas a luta não para na refeição de Natal. Cida também já começou a arrecadação de materiais escolares. “Tudo o que precisamos é de qualidade de vida e educação. Investimos nas crianças, queremos que as 196 tenham acesso à educação. Uma menina de cinco anos chegou perto de mim e disse que quer estudar na Universidade Federal e ser uma grande dentista. Tão pequena e já tem essa consciência. Ela precisa de caderno, lápis e borracha para ser alguém. Sou eu que não vou ajudar? Vou ajudar sim, vou fazer campanha sim.”
Sabores (extra) ordinários
Para quem vive em situação de rua, sabores que são muito comuns para a maioria, como o de um hambúrguer, ovos mexidos ou até mesmo de um refrigerante, são extraordinários. O Natal na Fundação Maria Mãe se preocupou em oferecer refeições diferentes a seus atendidos. “Fizemos uma semana inteira de lanches especiais. Eles ficam muito felizes por poder partilhar de um alimento ao qual não têm acesso. O Natal é uma época de fartura nas mesas, então pensamos em levar um pouco desse sabor a essas pessoas”, diz Vanessa Farnezi, presidente da instituição. Ela se tornou voluntária há 19 anos e já passou por quase todos os setores da casa.
“Precisamos ter fé e muito amor, porque as pessoas em situação de rua são muito discriminadas. A pessoa que está em situação de rua não é invisível para mim, como é para muitos. Sei o nome, conheço a história, sei por que ela está ali. Tudo isso me fez crescer muito. Sou uma pessoa melhor porque consigo ver o problemas dos outros e não ficar focada apenas nos meus.” Para Vanessa, além da oportunidade de fazer algo, o trabalho voluntário é uma forma de conquistar mais equilíbrios e a corrigir defeitos.
“Você quer um mundo mais igual quando se torna um voluntário. Passa a querer coisas que já acontecem, quando alguém some e depois volta falando que está trabalhando, constituiu uma família. Quero ser uma ponte entre eles e uma vida mais digna.”
Ela diz que, para ser um voluntário, a pessoa se doa a algum grupo com o qual se conecte. “Cada um tem uma tolerância a alguma coisa. Você tem que ter ciência de qual é a sua habilidade. Você tem que sentir no coração, sobre onde quer servir. Sabendo o que você quer e com o que trabalha melhor, você vai fazer a diferença. Aos poucos constrói sua vida de voluntário, com mais responsabilidade, assumindo um compromisso. Tendo a visão de que é uma missão.” Segundo ela, depois que a pessoa começa é muito difícil parar.
O Natal, para Vanessa, é uma oportunidade de reflexão, pois permite fazer o paralelo entre fartura e miséria. “O Natal desperta essa solidariedade. Graças a Deus que existe Natal, porque esse clima não dura só um dia. Às vezes, através de um Natal, as vidas de várias pessoas podem ser modificadas. No próximo ano, elas vão estar mais atentas e propensas a viver esse amor mais vezes.”
Protagonismo Jovem
Mais de 500 crianças foram beneficiadas pela primeira festa de Natal promovida pelo Projeto Recrear e seus parceiros. Elas passaram um dia dentro de um clube, com várias brincadeiras. Ao final do dia, também ganharam um brinquedo e alimentação especial. De certa forma, a ação ofereceu um pouco do que a Recrear já faz há mais de um ano, que é levar opções de atividades fora do horário escolar, evitando que crianças e adolescentes da periferia da cidade tenham contato com a criminalidade. A ideia implantada na Escola Estadual Presidente Costa e Silva, o Polivalente de Benfica, se multiplicou, e, em 2019, deve estar em outras 14 instituições de ensino espalhadas pela cidade.
“Quando vim para cá, vi as mesmas necessidades pelas quais passei lá atrás. Eu já estava em um lugar mais confortável e tinha passado pelo projeto no Rio. Pensei que se foi transformador para mim, também seria para elas e comecei”, diz o idealizador de projeto e voluntário, Weberthon de Carvalho. Hoje ele conta com uma rede de 40 outros voluntários, que todos os sábados doam seu tempo e sua energia para envolver os atendidos pela Recrear. O desafio se multiplica à medida que o número de interessados aumenta.
“Para ser voluntário basta ter vontade de ajudar. Se existir essa disposição, o resto a gente corre atrás. Para quem é jovem, o que mais vão ouvir é: ‘você não é muito jovem para isso?’, mas eu suplico que eles não ouçam essa fala e busquem ajudar da maneira como acharem que devem. Diante de alguma dúvida, que elas olhem para trás e se perguntem: ‘o que eu gostaria que tivessem feito por mim lá atrás?’ e sigam.”
O que move Weberthon a continuar é perceber que outros caminhos podem ser abertos. “Se vejo uma criança correndo atrás de uma bola e não de um policial, me sinto realizado. Assim como alguém com um lápis na mão e não um cigarro. Há outras possibilidades. O nosso objetivo e mostrá-las e fazer com que essas crianças entendam que elas podem mudar suas realidades.” O tamanho da responsabilidade ainda assusta o jovem. Mas essa empreitada o tornou maior, assim como a todos os outros voluntários com quem conversamos. Da certeza que é preciso continuar, que ainda há muito a fazer, é feito o combustível que leva cada uma dessas pessoas em direção ao melhor do outro.24