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Empregabilidade trans enfrenta desafio no mercado de trabalho

Dandara fernando priamo arquivo TM 1
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“Não vamos para a prostituição porque é nosso desejo. O que queremos é que a prostituição não seja compulsória, porque sonhamos com outras coisas”, essas palavras são de Dandara Felícia Silva Oliveira, coordenadora da Associação de Travestis, Transgeneres e Transexuais de Juiz de Fora (Astra). Juiz-forana, ela é a primeira trans negra na pós-graduação da UFJF. No mestrado do curso de Serviço Social, Dandara pesquisa a trajetória das pessoas trans no mercado de trabalho local.

Dandara Felícia, coordenadora da Associação de Travestis, Transgeneres e Transexuais de Juiz de Fora, milita para a criação de projetos de empregabilidade em Juiz de Fora (Foto: Fernando Priamo)

Militante, ela participou da fundação do Centro de Referência LGBTQIA+ da UFJF ao lado do professor da Faculdade de Serviço Social Marco José de Oliveira Duarte. Atualmente, também é servidora do Hospital Universitário. À primeira vista, quem olha para o currículo dela jamais pensaria que ela se prostituía. Como aponta a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% das pessoas transvestigeneres estão no mercado de trabalho informal, normalmente na prostituição, porque a transfobia serve de barreira para que oportunidades sejam negadas aos indivíduos transexuais.

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Segundo Dandara, em Juiz de Fora, não existe diferença da situação nacional. “Como todas as cidades do Brasil, que é um país extremamente transfóbico, aqui não é diferente”, assevera. Quando se fixa o olhar no mercado de trabalho é certo observar que ainda há muito a ser feito para que essa comunidade conquiste um lugar de igualdade em relação aos demais. Apesar dos avanços nos últimos anos, ainda são perceptíveis inúmeras barreiras para o acesso ao trabalho e à ascensão profissional das pessoas trans.

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A inexistência de políticas públicas voltadas para a empregabilidade trans só aumenta ainda mais esse vácuo. “Há um vazio assistencial exercido pelo Estado a partir da omissão, o que deixa claro que essa parcela da população segue sendo desumanizada e tendo seus direitos básicos, como o direito ao trabalho, cerceados”, aponta o advogado Júlio Mota Oliveira, especialista em Relações de Gênero e Sexualidades. Quando analisa o cenário local, ele ainda avalia que existem algumas ações isoladas de capacitação, mas que não surtem o efeito proposto, mantendo a maior parte das pessoas trans na informalidade.

Apagão de dados e escassez de projetos

A carência de ações por parte da gestão pública é endossada diante do apagão sobre dados a respeito da empregabilidade trans. “Não há como saber quantas pessoas estão empregadas nem se existe fila de espera de emprego. Isso é um problema do Governo federal, uma vez que estamos sofrendo pela carência de dados, porque quem realiza o censo é o Governo federal. É preciso que se crie maneiras de fazer um levantamento, inclusive das demandas dessa população, com questões de saúde e educação. Com esse apagão, fica difícil criar políticas públicas e assim fica parecendo que não há problemas”, ressalta Dandara.

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A dificuldade para o ingresso no mercado de trabalho, como avalia a coordenadora da Astra, tem ligação com a ideia que coloca os transvestigeneres como indivíduos que são doentes e afeitos ao crime. “Esse é um senso comum que foi criado no país desde que se tem notícia da primeira pessoa transvestigeneres e é reforçado pela ótica da questão da prostituição, da visão de que nós estamos na prostituição porque queremos. O cenário em Juiz de Fora é bem preocupante, porque diferentemente de outras cidades, não tem projeto nem programas de empregabilidade trans”.

Dandara lembra que em São Paulo, por exemplo, tem o Transempregos e o Transcidadania, que são programas que trabalham a questão da elevação da escolaridade para melhor acesso ao trabalho. “Percebemos no nosso trabalho de militância que aqui não existe programas de empregabilidade e, normalmente, as coisas que são feitas acontecem sem a nossa participação. Então, é um debate que a gente vem fazendo sobre que tipo de trabalho poderia haver para capacitação de pessoas trans, porque a gente não quer aprender crochê, mas sonhar com um monte de coisa, queremos ser técnicas em enfermagem, técnica de farmácia, engenheiras, programadoras, criar games”, pontua.

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Baixa escolaridade e falta de qualificação

Júlio Mota Oliveira é advogado especialista em Relações de Gênero e Sexualidades

Conforme o advogado Júlio Mota, um dos primeiros obstáculos encontrados pelas pessoas trans para acessar o emprego é a baixa escolaridade. “Algo que pode ser explicado, entre outros fatores, pelo ambiente hostil que a escola pode ser para as pessoas trans, que sofrem frequentemente os mais diversos tipos de violência, como assédio moral e violência física”.

Dandara lembra que, desde muito cedo, as pessoas transvestigeneres se veem violentadas no direito de exercer sua identidade. “Elas não conseguem usar o nome social, são expulsas de casa, da escola. Essa é a grande realidade”, diz, enfatizando que hoje ela está como funcionária do HU e mestranda no curso de serviço de social. “Mas eu sou prostituta e falo isso não porque quero atacar a sociedade, mas porque estive na prostituição. Fui traficada internacionalmente para depois conseguir voltar para a cidade. Só tive algum avanço quando parei a transição para poder frequentar cursinho, ficar no mercado de trabalho e conseguir passar nesse concurso. Depois, eu entrei em transição novamente e agora estou trabalhando e consigo ver outras possibilidades, mas não é uma realidade para todas. A minha história é um caso dentro dessa situação.”

Segundo a coordenadora da Astra, além da falta de acesso, quando há oportunidade de qualificação, é muito voltada para as profissões de mulher. “Que é outro debate importante que temos que fazer sobre o que é profissão de mulher e o que é profissão de homem. Os poucos programas que têm estão ensinando crochê. Não que o artesanato não seja uma profissão digna, mas é preciso fazer esse debate sobre o que está sendo oferecido para essas pessoas transvestigeneres, a fim de que elas possam sair da rua”, avalia Dandara, acrescentando que, até a atual administração, Juiz de Fora é o resultado de diversas gestões de homens brancos, de meia idade, que pouco se preocupavam com essas questões.

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“Estamos para fechar o Plano Municipal para a população LGBTQIA+, que está sendo puxado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, para que tenhamos um plano que contemple essa parte de programas de educação, profissionalização e empregabilidade, com bolsas para as pessoas poderem estudar.”

Mercado não promove políticas de diversidade

No que diz respeito ao mercado, o advogado Júlio Mota Oliveira pontua que, em geral, ainda está muito fraco quanto à promoção de políticas de diversidade. “Nos últimos anos, algumas empresas começaram a compreender que a oferta de emprego é um direito básico extensivo às pessoas trans. Aos poucos, tem se criado a consciência de que quanto mais a equipe for diversa, mais potente será o resultado por ela produzido.”

No entanto, segundo Júlio, não basta apenas contratar corpos trans para compor o quadro de funcionários. É necessário que se crie um ambiente em que a transfobia não seja parte da rotina do trabalhador. “Há casos em que as pessoas trans não têm, ao menos, o nome social e a utilização do banheiro de acordo com sua identidade de gênero respeitados, o que, muitas vezes, faz com que se torne insustentável a manutenção desses contratos de empregos formais, levando uma parte dessas pessoas a exercer trabalhos informais”, enfatiza, ressaltando que é necessário que indivíduos trans tenham a oportunidade de ocupar, também, cargos de liderança.

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Ainda acerca do mercado, de acordo com Dandara, poucas empresas têm investido nessa política, e as que fazem, normalmente, são multinacionais. “Empresas da cidade não têm esses programas, pode ser até que contrate, mas não como uma política empresarial.”

Plano Municipal busca promover políticas públicas

A Prefeitura de Juiz de Fora (PJF), atendendo a reportagem, informa que, por meio do Grupo de Trabalho LGBTQIA+, instituído pelo Decreto nº 14.543, de 17 de maio de 2021, “desenvolveu a proposta do Plano Municipal de Promoção e Defesa dos Direitos da População LGBTQIA+, que contou com membros do Governo, da sociedade civil e de entidades e movimentos sociais”.

Segundo ressalta, o objetivo da proposta foi o de “garantir a execução de políticas públicas de inclusão e de enfrentamento às desigualdades e discriminações contra a população LGTBQIA+”. Em um dos eixos do plano, que envolve assistência social, trabalho, empregabilidade e renda, busca-se elaborar e difundir eventos e campanhas de promoção aos direitos LGBTQIA+, além de envolver gestores, técnicos e usuários para o atendimento humanizado, acolhedor e direto ao público LGBTQIA+.

Além disso, conforme a Prefeitura, propõe-se o estabelecimento de parcerias que promovam qualificações profissionais e incentivem a contratação de profissionais LGTBQIA+. A proposta, segundo a Administração, se propõe a fomentar a inclusão da população LGBTQIA+, em particular, travestis e transexuais, ao mundo do trabalho.

Propostas tramitam na Câmara para garantia de direitos

No âmbito do Legislativo, de acordo com a assessoria da Câmara, em 2021, foi criada a Lei 14.224, que institui a utilização do nome social em Juiz de Fora. A lei deixa assegurado a transgêneros, travestis, homens transexuais e mulheres transexuais, mediante requerimento, o direito à escolha de utilização do nome social nos atos e procedimentos da administração direta e indireta municipal. O texto é de autoria da vereadora Laiz Perrut (PT).

Ainda conforme a Câmara, estão em tramitação na Casa alguns projetos de lei ligados ao tema. Um deles é o projeto de lei 165/2021, de autoria das vereadoras Laiz Perrut, Cida Oliveira (PT), Tallia Sobral (PSOL), que dispõe sobre o tratamento social em clínicas e estabelecimentos públicos e particulares de saúde para travestis, homens trans e mulheres trans. O texto torna obrigatória, nas fichas de pacientes em clínicas de exames médicos ou qualquer outro estabelecimento de saúde privado, a utilização do nome social do paciente ou do nome constante nos documentos retificados, para evitar constrangimento.

Também está em tramitação o projeto de lei 42/2021 de autoria da vereadora Tallia Sobral, que cria o Dossiê da Mulher Juiz-forana. No seu conteúdo, o projeto entende por mulheres todas aquelas que se identificam com o gênero feminino, ou seja, incluindo as mulheres trans. O dossiê consistirá na elaboração de estatísticas periódicas sobre as mulheres atendidas pelas políticas públicas do município de Juiz de Fora.

“Nosso mandato compôs, como representante do Legislativo, o Grupo de Trabalho que elaborou o Plano Municipal LGBTQIA+ de Juiz de Fora. Nesse plano, reivindicamos que a gestão do Centro de Referência LGBTQIA+ seja de responsabilidade da Prefeitura e elaboramos políticas públicas, a partir de alguns eixos como assistência social, emprego e renda, para a inserção desse público ao mercado de trabalho e acesso à capacitação. Além disso, entendemos que a empregabilidade envolve fatores sociais muito complexos, como a possível diminuição da transfobia e acesso a direitos básicos, repetidamente negados a pessoas trans. Pensando assim, revimos produções legislativas já existentes, entre elas, a lei conhecida como “Lei Rosa”, informou o gabinete da vereadora Tallia Sobral (PSOL), por meio da assessoria da Câmara.

Ações e pesquisas

A UFJF, por meio do professor Marco José Duarte, coordenador do Centro de Referência LGBTQIA+ da UFJF, informou que, durante o período da pandemia, o Centro de Referência continuou atuando, tendo participado na elaboração do Plano Municipal de Defesa e Promoção dos Direitos de LGBTQIA+ da PJF, apresentando diversas propostas, inclusive de forma intersetorial, junto às pastas governamentais.

Também foi realizado um webinário, compartilhando as experiências concretas e exitosas sobre empregabilidade trans, que são promovidas pela Prefeitura de São Paulo e pelos governos da Paraíba e Bahia. Ainda foi apresentada a pesquisa de mestrado conduzida por Dandara, estudante do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da UFJF. “Além disso, por meio do Projeto Transolidariedade, o Centro de Referência se firmou como parceiro da Associação das Travestis, Transexuais e Transgêneres de JF, auxiliando-as na participação em editais para as ações de empregabilidade, trabalho e renda para a cidade.”

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