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Mortes por suicídio crescem na cidade, principalmente entre jovens

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Há 20 anos empregado na região central de Juiz de Fora, o porteiro E., 57 anos, incluiu na sua rotina a realização de uma ronda diária no prédio onde trabalha. Habitualmente, começa a tarefa pelo último andar do edifício de 17 pavimentos até chegar ao primeiro lance. Naquela segunda-feira, porém, ouviu uma voz vindo do 15º andar. Quando chegou lá, encontrou uma mulher elegantemente trajada se equilibrando no vão interno da escada. Atordoado com a cena, ele perguntou o que ela estava fazendo ali. “Vim cumprir a minha missão”, respondeu, proibindo o homem de se aproximar. Apavorado, o porteiro e a faxineira que o acompanhava tentaram pedir ajuda, mas ela garantiu que, se alguém tentasse fazer alguma coisa, pularia. Por 40 minutos, os dois rezaram junto àquela estranha. Chegaram a implorar para que saísse do local e repensasse o seu planejamento. Sem atender ao apelo dos funcionários, a mulher solicitou ao porteiro que entregasse um abraço para a irmã dela. Em seguida, soltou as duas mãos do corrimão, despencando no vazio. O corpo foi encontrado na garagem do prédio, chocando os condôminos do edifício comercial. Apesar da gravidade do caso, episódios como esse não são exceção. O crescimento de casos, especialmente entre crianças e adolescentes, preocupa especialistas e desafia as políticas públicas.

Dados do Ministério da Saúde sobre lesões autoprovocadas voluntariamente – termo utilizado pelo Código Internacional de Doenças – apontam que os registros dobraram em Juiz de Fora entre 2006 e 2015. Foram 15 episódios de autoextermínio em 2006 contra 31 em 2015. O percentual é superior ao número de casos registrados no Estado de Minas Gerais no mesmo período, cujo aumento de eventos desta natureza foi de 30%. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, cerca de 30 pessoas se matam a cada dia.

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Apesar de as estatísticas serem muito discordantes entre si, levantamento realizado com exclusividade pela Polícia Militar, a pedido da Tribuna, confirma a tendência de crescimento local. Se em 2016 foram registrados 20 óbitos por autoextermínio na cidade, os dados mostram que, em 2017, o número chegou a 31. Este ano, até 17 de junho, o número de suicídios já soma 18, sendo o mais recente ocorrido na madrugada do último domingo, quando uma universitária de 19 anos pulou do sexto andar do prédio onde morava. E não foi o único episódio entre estudantes. Há pouco mais de um ano, um rapaz de 20, também universitário, jogou-se da moradia estudantil onde residia.

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Os números também aumentaram em relação às tentativas de autoextermínio: enquanto foram 65 tentativas em 2016, no ano seguinte, elas chegaram a 97 registros na cidade. Somente nos cinco primeiros meses de 2018, foram 44.

Subnotificação

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As ocorrências, no entanto, podem ser ainda maiores, já que um dos problemas é a subnotificação dos registros. Como atinge mais as classes média e alta, a tendência é que a verdadeira causa da morte seja mascarada. “O suicídio não está relacionado à miséria ou a condições desfavoráveis de vida, mas à falta de vontade de viver, estando mais presente nas classes A e B”, aponta a mestre e doutora em filosofia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Viviane Mosé.

Viviane Mosé, filósofa

“Estamos falando de um fenômeno cultural contra o qual precisamos lutar, pois as pessoas precisam se lembrar que a vida tem valor. Está faltando vento, alegria, diversão, planta, vida do lado de fora, e isso é muito mais antigo do que a internet”

 

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Autora do livro “Nietzsche hoje: o abismo civilizatório”, que será lançado no segundo semestre de 2018, Mosé discute a crise de afetividade na qual os indivíduos estão mergulhados, preocupando-se com os efeitos dessa crise junto à população infantojuvenil. “O suicídio é a leitura que faço de que há uma crise civilizatória, porque tem duas coisas que não combinam. É impressionante o investimento financeiro, intelectual e humano feito hoje na medicina, – como a operação do coração de um bebê dentro do útero da mãe-, para que essa mesma criança, aos 10 anos, apareça nos índices de suicídio. Hoje, as cinco doenças que mais matam nos Estados Unidos matam menos do que o suicídio entre crianças e adolescentes de 8 a 14 anos. Estamos falando de um fenômeno cultural contra o qual precisamos lutar, pois as pessoas precisam se lembrar que a vida tem valor. Estão faltando vento, alegria, diversão, planta, vida do lado de fora, e isso é muito mais antigo do que a internet. Não há mais intimidade entre pais e filhos, porque, mesmo quando estão presentes, os pais estão cada um em seu celular, em universos distintos e muito distantes. Então há uma solidão profunda. As crianças não se automutilam na favela, mas na Zona Sul”, alerta Viviane Mosé.

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OMS alerta para prevalência de casos na adolescência

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio é a segunda causa de morte entre jovens de 15 a 29 anos no país, só perdendo para as causas externas, como os acidentes. Levantamento do sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, coordenador do Mapa da Violência no Brasil, aponta que, entre 2000 a 2015, os suicídios aumentaram 65% dos 10 aos 14 anos e 45% dos 15 aos 19 anos. A prevalência entre jovens tem feito com que os profissionais de saúde se vejam diante do desafio de lidar com um fenômeno que acontece cada vez mais precocemente e para o qual ainda se procuram respostas. “A gente precisa falar sobre este assunto. Por ser a segunda causa de mortes entre adolescentes, isso tem chamado muito a nossa atenção. Por que crianças e adolescentes estão adoecendo nesse nível? Não sei se tenho uma resposta definida, mas há alguns fatores que estão contribuindo, por exemplo, a adoção de comportamentos de risco, tais como o uso cada vez mais cedo de substâncias psicoativas (álcool e outras drogas). O álcool por si só já é um fator de risco importantíssimo, porque aumenta a impulsividade, além de funcionar como um gatilho para a ansiedade e até mesmo para a depressão. A impulsividade é um traço diretamente relacionado ao risco de suicídio, o que torna a intervenção muito difícil. Além disso, no perfil de uma pessoa com ideação suicida, a falta de flexibilização diante da resolução de um problema e a dificuldade de pensar em outras possibilidades também são agravantes”, aponta a psiquiatra da infância e adolescência Márcia Fávero de Souza.

Márcia Fávero de Souza, psiquiatra da infância e adolescência

“Se a gente quer prevenir os casos, precisamos trabalhar com as famílias para que elas identifiquem sinais precocemente. Esses sinais podem ser muito sutis. Se não houver proximidade, tempo junto da criança e atenção, eles podem passar despercebidos”

 

A psiquiatra diz ainda que fatores associados à qualidade de vida das crianças também estão presentes em quadros de sofrimento. “Uma relação parental estreita, saudável, funciona como fator de proteção para comportamentos de risco. Hoje estamos assistindo à diminuição do tempo do adulto junto à criança que tem passado pelas mãos de vários cuidadores. Vemos também uma dificuldade das famílias em aplicar a própria autoridade. Atualmente, parece que os pais se sentem constrangidos de dizer não, há uma diluição da responsabilidade. Acredito que isso esteja relacionado ao aumento da prevalência de quadros de sofrimento”, salienta.

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Coordenadora da residência de psiquiatria infantil do Hospital Universitário da UFJF, Márcia admite que tratar de um paciente com ideação suicida gera muita insegurança, principalmente quando esse paciente é um sujeito em formação. “Quando a gente estuda os comportamentos suicidas – pensamento, intenção e planejamento -, a gente sabe que mais de 90% das pessoas que cometem o autoextermínio têm transtorno mental. Então, se a gente quer prevenir os casos, precisamos trabalhar com as famílias para que elas identifiquem sinais precocemente. Esses sinais podem ser muito sutis. Se não houver proximidade, tempo junto da criança e atenção, eles podem passar despercebidos. Quando o adolescente muda os padrões de comportamento, se mostra mais irritado constantemente, passa a buscar isolamento ou começa a se colocar como uma pessoa que não é capaz, os pais devem se preocupar e procurar ajuda médica, porque o transtorno mental – que está na base desse comportamento suicida -, é uma doença que precisa ser tratada.”

Em sua coluna no El País, a jornalista Eliane Brum chama a atenção para a construção coletiva de caminhos, já que o drama do suicídio não deve ser encarado como um problema individual do adolescente e de sua família. “O desafio que o suicídio impõe à sociedade é conseguir construir uma resposta que não seja a brutalidade de tirar a própria vida. Se há uma possibilidade nesse momento é a de que o desespero de ver adolescentes morrendo fez com que se rompesse o silêncio sobre o suicídio.”

Depressão: doença mais incapacitante do século

A doença mais incapacitante do século XXI é a depressão, avisa a OMS. O professor de psiquiatria da Faculdade de Medicina da UFJF, Alexandre de Rezende, explica que uma das marcas da depressão é que o indivíduo já não consegue se valorizar e acha que tudo de ruim que acontece na vida é culpa dele. “O deprimido vê tudo cinza, está esvaziado de esperança. É considerado uma pessoa fraca, que não suporta as questões da vida, mas nada disso é verdade. A depressão é uma doença que tem várias nuances, psicológica, – que trata da forma como a pessoa lida com os problemas -, características de personalidade e fatores químicos. Depressão não é só consequência das dificuldades que se tenha vivido. Ela pode acontecer com pessoas economicamente bem colocadas e com suporte social. Indivíduos com comportamentos suicidas precisam de atenção, de ajuda do poder público, da família, dos profissionais de saúde. Qualquer coisa fora disso é estigmatizante”, orienta.

Alexandre de Rezende, psiquiatra

“O deprimido vê tudo cinza, está esvaziado de esperança. É considerado uma pessoa fraca, que não suporta as questões da vida, mas nada disso é verdade. A depressão é uma doença que tem várias nuances, psicológica, características de personalidade e
fatores químicos”

Para o médico, as medidas de prevenção com maior impacto sobre a diminuição dos casos são o investimento na formação dos profissionais de saúde para identificar situações de risco e a restrição a métodos letais. “Uma importante medida de saúde pública para reduzir taxas de suicídio é diminuir o acesso a métodos letais, como a arma de fogo. Apesar de mulheres tentarem mais vezes o suicídio, homens morrem mais por lesões autoprovocadas voluntariamente, porque lançam mão de métodos mais letais”, explica. O psiquiatra defende, ainda, entre as estratégias de intervenção, a sensibilização das pessoas para identificação de situações de risco, o cultivo de valores e o incentivo a hábitos saudáveis de vida.

Religiosidade

A religiosidade e a espiritualidade também estão entre os principais fatores de proteção para o suicídio, para os transtornos psiquiátricos, depressão, além de uso de álcool e outras drogas, segundo o médico. “Estudos confirmam que estar em um grupo religioso tem um diferencial em relação a estar apenas em um grupo social. A questão religiosa é um dos principais fatores de proteção para o suicídio, muito pela questão do valor, do suporte que isso dá, pela possibilidade do resgate da esperança”, define.

Prédio adota uso de grades em todos os andares e vãos

Como medida de segurança, prédio de 17 pavimentos agora tem gradis em vãos. (Fotos: Daniela Arbex)

Atitudes de prevenção do suicídio não estão restritas à área da saúde. No prédio onde duas mulheres se mataram em menos de dois meses, na região central da cidade, o administrador do condomínio resolveu tomar medidas de proteção em todas as áreas vulneráveis. Escadas e vãos centrais receberam gradeamento em todos os 17 andares. “O suicídio é uma situação muito triste. Ficamos muito tocados com o que houve aqui. Desde o primeiro caso, ocorrido em dezembro do ano passado, iniciamos a realização de orçamento para a colocação das grades. Em meio a isso ocorreu o segundo episódio em fevereiro de 2018”, lembra Paulo Reis, 69 anos.

Com o apoio dos condôminos, uma empresa especializada em colocação de chapas de metalon foi contratada para implantação do material. “Eu vejo a colocação dessas grades como uma questão humanitária”, enfatizou Paulo ao comentar a questão. O custo da obra foi baixo, em torno de R$ 10 mil.
Para o porteiro E., que presenciou o suicídio de uma das mulheres no prédio, a medida de proteção é um alívio. No entanto, ele ainda precisa lidar com o trauma daquela cena. “Sou devoto de Nossa Senhora Aparecida e rezo todos os dias para que todos pensem antes de fazer qualquer coisa. A pessoa acha que está sozinha, mas esquece de quem fica. Não desejo para ninguém ver o que eu vi, porque é uma coisa que marca muito a gente. De lá para cá, passei a dormir de luz acesa”, emociona-se.

Solução está em políticas afirmativas

“A única coisa que pode fazer uma pessoa querer viver é alegria”, diz a filósofa Viviane Mosé. Para ela, o Brasil precisa investir na arte e na cultura. “O investimento em arte é política pública número um no mundo ou não teremos mundo”, enfatiza.

Viviane também defende o protagonismo juvenil, através da educação, como uma forma de mudar o rumo do país.”A gente mostra a escola pública caindo aos pedaços e acredita que fazer crítica é fazer política. Mas política é criação de um novo mundo. Fazer política é afirmar. Responsabilizo as nossas mídias que são do mundo velho”, comenta, defendendo, ainda, a necessidade da retomada da família como um lugar de proteção efetivo, já que a escola não pode assumir uma função que não é dela, pois não tem condição de formar afetivamente uma criança.

“Família é um grupo no qual uns ajudam os outros, se protegem, dão carinho, independente da sua formação. A criança precisa da família, de um grupo no qual ela se sinta segura. Hoje, no entanto, quem manda na casa é a criança, por isso ela se mata, porque criança não pode mandar em si mesma. Ninguém está presente. O fato é que estamos sem vida. Falta experiência física. Compramos medicação psiquiátrica para viver. A indústria farmacêutica investe e agradece.”

Para Eliane Brum, não é possível desconectar qualquer doença da época em que ela é produzida.”É no fato de que ao longo das diversas épocas já houve outras respostas possíveis, outras respostas compatíveis com seguir vivendo, que podemos construir reflexões que nos arranquem da repetição que acaba tratando como problema exclusivamente individual o que é também produção social.”

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