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“O jornalismo se tornou uma profissão de risco”, diz Sallie Hughes

SALLIE HUGHES
“Como no mundo todo a política está muito polarizada, se um presidente não gosta de algo que algum órgão de imprensa escreveu, ele adota a lógica ‘se não está comigo, está contra mim'” (Foto: Fernando Priamo)
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Desde que ingressei no então curso de Comunicação Social/Jornalismo, a Faculdade de Comunicação da UFJF (Facom/UFJF) jamais parou de me mostrar novos caminhos e abrir minha cabeça. Tanto que, “vira e mexe”, retorno à instituição: lá concluí minha graduação, meu mestrado e também lecionei, tendo em cada uma das experiências aprendizados transformadores. Não foi diferente na minha última visita. Em tempos em que a liberdade de imprensa anda ameaçada, entrevistar Sallie Hughes, professora da Universidade de Miami e PhD em Estudos Latino-Americanos do Centro Roger Thayer Stone da Universidade de Tulane, foi um encontro oportuno e que trouxe um fio de esperança numa era em que o jornalismo é descreditado com a proliferação de fake news e jornalistas no mundo inteiro são atacados nas ruas e nas redes, ao ponto de, em alguns casos, pagarem com a vida pelo exercício da profissão. É exatamente neste contexto que a pesquisa de Sallie se insere.

Convidada pelo Programa de Pós-Graduação da Facom, a professora falou sobre o trabalho que vem desenvolvendo em vários países em parceria com a professora visitante da UFJF Sônia Moreira, abordando mídia, democracia e riscos para o jornalismo. “Venho pesquisando como o jornalismo e a política vão se transformando juntos ao longo dos tempos. Atualmente, tenho me dedicado mais a estudar o risco inerente às transformações. E este risco não se restringe à violência física, mas também ao assédio psicológico – sobretudo on-line – e, em muitos lugares do mundo, um risco econômico com baixos salários, redução de postos rabalho e más condições de trabalho em geral”, avalia ela, que viveu no México por muitos anos, onde iniciou a primeira rodada de estudos, concluída em 2016.

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Agora, a pesquisa se estende para outros países, principalmente da América Latina, sendo feita por meio de questionários muito específicos aplicados a jornalistas, sobretudo de editorias consideradas mais arriscadas, como polícia e política – algo identificado também pelo levantamento. “Seis anos atrás, estávamos planejando esta rodada abordando a Europa, o Oriente Médio, a África e toda a América Latina. Nós já víamos o que estava acontecendo no México na relação entre jornalismo e política e propusemos questões sobre riscos, ameaças, (auto) censura e como os jornalistas respondiam a tudo isso. Mas na época não conseguimos que muitos países participassem, não demonstraram muito interesse… Agora, todo mundo está interessado porque está muito claro que está acontecendo em inúmeros países.”

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Em entrevista à Tribuna, Sallie Hughes se aprofundou em seus estudos, fez uma breve análise da conjuntura brasileira no que tange à relação entre mídia e política e apontou possíveis caminhos para a sobrevida do jornalismo, assegurando a esperança desta que vos escreve.

“A gente tende a pensar que os jornalistas que são assassinados em trabalho estão cobrindo guerras. Mas não. Eles estão, em sua maioria, de acordo com nossos estudos, em democracias médias, em que a lei não é seguida como deveria, onde há muita impunidade e muita corrupção” (Foto: Fernando Priamo)

– Tribuna- Como começaram seus estudos sobre mídia e democracia?

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– Sallie Hughes – Comecei a estudar mídia e transições políticas particularmente no México porque vivi lá há muitos anos e estava muito interessada num processo de abertura da mídia, sua pluralização e seu teor mais investigativo. Isso foi no fim dos anos 1990 e início dos 2000. Depois disso, escrevi um livro (“Newsrooms in conflict: journalism and the democratization of Mexico” ou Redações em conflito: jornalismo e a democratização do México”, tradução nossa) sobre como o jornalismo e a democracia andam de mãos dadas. O jornalismo mudou ao passo que a democracia mexicana também mudou. Depois, fui me dedicar a outros projetos e saí do país por cinco anos. Quando voltei, notei que, neste período, o nível de violência contra jornalistas havia disparado e por muitas razões. Em parte, porque o crime organizado e mudanças no cenário do tráfico de drogas tornaram o México um ator muito mais importante neste contexto. E uma grande parte também se deve ao fato de que o então presidente do México acionou o Exército para combater os cartéis de drogas, desestabilizando e fomentando uma disputa contínua por quem seria o próximo cabeça do tráfico. Então os índices de violência subiram muito, muito mesmo. Ao mesmo tempo, como aconteceu em muitas democracias latinas, o presidente foi perdendo muito do poder que se centralizava nele, e em vez de isso fortalecer os governos executivos e locais (com a distribuição de poder), isso acabou dando muito poder à polícia profissional, ao Exército, a juízes e a cargos políticos de carreira, o que tem levado a decisões parciais e corrupção em níveis absurdos.

– E como todos estes processos influenciaram/influenciam o jornalismo?

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– Com tudo isso que aconteceu, os jornalistas se tornaram alvo de criminosos e ficaram no fogo cruzado entre os militares e criminosos. Também foram alvo de perseguição de políticos insatisfeitos com o que eles escreviam. Então toda essa bagunça criou um ambiente muito perigoso para os jornalistas e, apesar de muitos acabarem se censurando por autoproteção (o que já é ruim do ponto de vista da liberdade de imprensa), há outros tantos que tentam fazer seu trabalho, se importam com o que acontece em sua cidade e seu país e, com isso, tornam-se vítimas em potencial. Além desse risco de violência física e até de ameaças de morte, há vários outros fatores: psicológico, emocional, econômico, de saúde… tudo isso acontecendo ao mesmo tempo. Outro fator a se destacar é que jornalistas, sobretudo mulheres, são cada vez mais assediadas na internet. Então, se antes pensávamos que ser bombeiro ou policial, por exemplo, era ter uma profissão de risco, o jornalismo está se tornando cada vez mais arriscado. Em parte, porque, com a internet, os profissionais estão mais visíveis, e, por outro lado, por causa de certos discursos políticos, que pintam o jornalista como um inimigo do povo. Como no mundo todo a política está muito polarizada, se um presidente não gosta de algo que algum órgão de imprensa (ou a imprensa como um todo) escreveu, ele adota a lógica “se não está comigo, está contra mim”, e há muita adesão popular, justamente pela polarização. Não há diálogo. Você está acenando com a cabeça, acha que isso descreve o Brasil atualmente?

– O presidente eleito Jair Bolsonaro proibiu a participação de jornais impressos em sua primeira coletiva. Outra tática que ele utiliza, que sabemos que Donald Trump também faz, é usar suas próprias redes sociais para propagar notícias. O que tudo isso significa para o jornalismo?

– Tudo é completamente irresponsável e descredita a mídia, algo muito perigoso. Eu não sei, no Brasil, até que ponto as grandes empresas de mídia se uniriam para fazer alguma forma de pressão ao novo presidente, para que ele mantenha suas coletivas abertas a todos os veículos. Porque essas companhias são concorrentes, provavelmente há alguma rivalidade, uma disputa coletiva, mas o fato é que a mídia profissional precisa ter uma frente unificada para combater estes absurdos. Nos EUA, quando o Trump tirou o acesso de imprensa de um repórter da CNN, todos os órgãos, exceto a Fox News, claro (risos), se uniram e levaram a questão aos tribunais para reverter esta situação, que era um abuso de poder. Não que o Trump ou qualquer outro presidente não possa dar entrevistas a quem quiser, mas as regras precisam ser claras e direcionadas a todas as pessoas que se candidatem a ter um acesso de imprensa. Ele não pode simplesmente excluir uma só pessoa porque não gostou da forma como estava fazendo a cobertura. Então, as empresas de mídia precisam ser solidárias umas às outras e responder unificadamente a situações como essa. Não sei como funciona no Brasil em termos de lei, mas em qualquer democracia, o presidente deve responder à imprensa. É simples assim. Eles nem sempre vão gostar, mas na minha opinião particular, os presidentes mais fortes são aqueles que não se esquivam da imprensa. Porque eles estão fazendo seu trabalho.

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– Há um avanço conservador no mundo todo. Sua pesquisa faz relação disso com a atividade da imprensa?

– Sim. Há uma série de questões. A gente tende a pensar que os jornalistas que são assassinados em trabalho estão cobrindo guerras. Mas não. Eles estão, em sua maioria, de acordo com nossos estudos, em democracias médias, em que a lei não é seguida como deveria, onde há muita impunidade e muita corrupção, além de um crescimento contínuo de forças reacionárias. É nesses lugares que os jornalistas estão sendo mortos. Isso porque eles ou estão revelando coisas que alguém não quer que sejam reveladas ou eles ficam no fogo cruzado. Sua pergunta trata de um processo também muito perigoso e é muito real, que as lideranças políticas populares – de esquerda ou de direita – constroem, uma lógica de “nós contra eles”, normalmente num cenário em que este líder é o defensor do povo contra as elites corruptas, colocando sempre a mídia no lado que está contra o povo. Vimos isso com Chavez, na Venezuela; com Trump, nos EUA. Trump chegou a chamar os jornalistas de inimigos do povo, de seres humanos nojentos, em grandes coletivas. Com isso, ele cria um cenário em que os jornalistas estão em perigo, algo muito ruim pode acontecer a qualquer momento. Ainda não aconteceu, mas já houve caso de bombas serem enviadas a redações por um homem que se identificou como apoiador de Trump. Não há provas sobre este apoio ou de qualquer ligação de Trump com esse homem louco, mas o discurso do presidente legitima este tipo de violência. Aí é que está o grande perigo, ainda mais nos Estados Unidos, onde é muito fácil qualquer pessoa adquirir uma arma.

– E o que os jornalistas e a imprensa em geral têm feito para reagir a este cenário, de acordo com o estudo?

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– É um estudo exploratório, então, no momento, ainda não temos dados suficientes para formular hipóteses sobre o que está acontecendo. Mas estamos em contato direto com os jornalistas e perguntando a eles o que lhes causa estresse, como eles reagem a este estresse, se já foram ameaçados ou intimidados, entre outras questões. Com isso, tentamos identificar o que está acontecendo em termos de risco (todos aqueles que mencionei) e também como os jornalistas estão lidando com isso, como estão tentando superar esta situação. Em muitos casos, eles, na verdade, estão apenas seguindo em frente, um dia após o outro. No México, as empresas de mídia estão organizando protocolo de segurança, e grupos informais de jornalistas estão se organizando para se ajudarem e se protegerem. Há também muitas ONGs que atuam na segurança. O mapeamento de dados também é muito importante. O Comitê para Proteger Jornalistas (https://cpj.org/) mantém um banco de dados com jornalistas que foram mortos desde 1992 em diversos países. E é imprescindível também que os próprios jornalistas estejam atentos a seu próprio trabalho para não contribuir com o aumento da violência. No México e na Colômbia, por exemplo, há esforços muito grande dos profissionais que cobrem criminalidade, por exemplo, para o uso de discursos e terminologias. Isso evita que pessoas que cometem crimes sejam desumanizadas. Isso evita uma ideia de que problemas sociais só possam ser resolvidos com violência policial e do Estado. Há, e precisa haver, um esforço para investigar as causas sociais por trás da criminalidade. É o papel social do jornalismo.

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