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Reféns do abandono e do esquecimento

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Nome: Sebastião Frazão Pinto. Idade: 85 anos. Grau de instrução: ensino fundamental incompleto. Profissão: aposentado. Endereço: enfermaria masculina do Hospital de Pronto Socorro (HPS). De alta há 40 dias, o idoso que se submeteu a uma cirurgia para a retirada do globo ocular esquerdo experimenta uma situação inusitada: está morando, desde julho, em um leito destinado a pacientes agudos na principal unidade de urgência e emergência da cidade, onde comemorou seu aniversário junto aos doentes e funcionários. Só no HPS, outros quatro usuários passaram pelo mesmo drama este ano. Sem ter para onde ir e nem parentes dispostos a acolhê-los, permanecem internados embora não padeçam mais dos problemas que os levaram a procurar ajuda médica. Em outro hospital, o Ana Nery, há casos que se arrastam por quase duas décadas e que resultam em confinamentos involuntários. Reféns do abandono familiar e do esquecimento, essas pessoas assistem o tempo passar lá fora, mas continuam a se guiar por rotinas hospitalares das quais não necessitam mais.

É o caso de João Ribeiro, 54 anos, que este mês completa 19 anos de internação na unidade localizada na região de Grama. O chapa de caminhão que nasceu em Visconde do Rio Branco nunca esqueceu a data em que foi deixado no Ana Nery por uma prima. “Fui internado em 29 de agosto de 1996. Minha prima me disse que eu ia gostar daqui. Até gosto, mas não entendo por que, em mais de 18 anos, ela nunca me levou para conhecer sua casa. Parece que fica num bairro chamado São Mateus. É perto ou longe daqui?”, pergunta.

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João deu entrada na instituição aos 35 anos de idade com sequelas provocadas por um acidente vascular cerebral isquêmico. Na época, ele apresentava sérios problemas na fala e na locomoção. Necessitado de cuidados prolongados, ficou anos em tratamento. Recuperou os movimentos, melhorou a forma de se comunicar, mas perdeu o essencial: a liberdade. A prima tornou-se sua curadora, passando a gerir o benefício de um salário mínimo que ele recebe mensalmente desde o primeiro ano da internação. Dos atuais R$ 788 mensais, João fica com R$ 50 e alguns produtos de higiene pessoal levados pela sua responsável legal. Há anos está de alta, mas a prima se recusa a assiná-la. Assim, ele não consegue ter de volta seu dinheiro e nem o direito a uma vida fora do Ana Nery. Alheio ao mundo, não sabe mais em que ano está. Além disso, não conhece a cidade na qual foi internado, perdendo a habilidade de andar sozinho na rua. Excluído do convívio social, João tenta preencher as horas com caminhadas no terreno do hospital e com a música que escuta todos os dias no aparelho de CD que se tornou sua grande companhia.

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“Acordo por volta das 6h, caminho 24 minutos pelos pátios, depois tomo café que os funcionários deixam no quarto. Após o almoço, faço fisioterapia, durmo um pouco, escuto meu rádio e, quando a sopa está boa, eu janto. Antes de dormir, tomo mingau. Aqui está legal, mas sinto falta de caminhar pela cidade, de passear e trabalhar. Eu era ajudante de caminhão, em Guarulhos (SP), tinha uma namorada e, nos finais de semana, sempre saía com ela para dançar. Acho que ela deve ter se casado. Sempre lembro dela quando escuto Roberto Carlos. Acabo dançando sozinho”, diz, girando com seu chinelo de dedo preto e branco ao ritmo da música. No seu “quarto-leito”, ele mostra que ainda é um bom “pé de valsa”.

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Espera permanente

Assim como os outros 185 pacientes internados no Ana Nery que necessitam de cuidados prolongados, João vive uma espera permanente por visitas, mas, em seu caso, elas são escassas. Órfão de mãe e sem contato com o pai, um trabalhador rural octogenário que só esteve no hospital uma vez, ele conta somente com a curadora. Mas, de fevereiro a maio, a prima não apareceu. Em junho, ela não compareceu em pelo menos cinco das oito oportunidades de visita. Em julho, fez duas visitas e este mês esteve com ele em dois domingos. “Além de João, temos pelo menos outros nove pacientes que não possuem mais demanda clínica, porém não posso abrir a porta e colocá-los para fora. Temos que dar uma alta responsável. Como eles não têm referência familiar, o hospital acaba sendo a referência deles. Além disso, há casos em que o vínculo existe, mas a família não tem a intenção de levar o seu parente para casa, resistindo até em deixar o telefone de contato”, explica a gerente-administrativa do Ana Nery, Érica Moutinho dos Santos.

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Muitas famílias não querem receber parente de volta

O tempo do HPS não combina com o de Sebastião. Enquanto tudo ao seu redor é frenético, o homem de 85 anos caminha lentamente e só quer encontrar um lugar em que possa ter sossego para “tomar um banho demorado”. Morando na enfermaria da unidade de urgência e emergência desde 13 de julho, quando recebeu alta mas não pôde voltar para casa, ele demonstra cansaço.

“Só quero minha liberdade. Ser livre é outra coisa. Gosto de andar de ônibus, de viajar para todo lado. Tenho saudade da comida da rua. Estou aqui só esperando o meu ‘olho’ de vidro para ir embora”, disse na primeira entrevista concedida à Tribuna usando camisa e calça sociais na cor azul. Sentado no leito que ocupa desde 19 de junho, quando foi admitido na unidade, ele contava sua história, enquanto esperava o jantar. Residente na Vila Olavo Costa, o idoso mora sozinho em um imóvel cujo telhado está ameaçado.Por isso e pela própria necessidade de assistência, o hospital não tem como liberar o paciente sem que alguém se comprometa a ajudá-lo com os cuidados diários, principalmente por causa do tipo de cirurgia a que foi submetido. “Somos um hospital de porta aberta, e nossos leitos, que são referência macrorregional, têm uma alta rotatividade. Casos como o do senhor Sebastião vêm na contramão da história. Ele vive em uma situação de vulnerabilidade social e econômica. A única família que tem é um sobrinho que já cuida de outro idoso. A gente nunca deixa o paciente sozinho sem alguém que o receba. Situações de abandono familiar ou de pessoas solitárias causam na equipe da unidade uma comoção, sensibilizando todo o hospital”, explica a diretora da unidade, Simone Mathiasi.

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A complexidade dos casos realmente impressiona. A diretora lembra que, há dois anos, um paciente psiquiátrico com uma intercorrência vascular foi encaminhado para a unidade para tratamento. Passado o problema clínico que o levou à internação, o jovem teve alta e foi conduzido ao endereço em que morava pelas assistentes sociais do HPS. Os familiares, no entanto, se recusaram a abrir a porta para recebê-lo de volta. “Ele chorou muito, tivemos inclusive que registrar um boletim de ocorrência. Ele voltou para o hospital e permaneceu aqui por cinco meses até conseguirmos, em parceria com o Departamento de Saúde Mental, o seu encaminhamento para uma residência terapêutica”, lembra Simone.

Além de uma busca ativa realizada pela ouvidoria do hospital, que tem um olhar sensível para pessoas como essas, o serviço social do HPS realiza, em média, 900 atendimentos junto a familiares, pacientes ou responsáveis. Os atendimentos consistem em orientação, encaminhamentos, aconselhamentos e intermediações. “Depois que se esgotam todos os recursos junto à rede socioassistencial do município, a gente encaminha o caso para o Ministério Público”, complementa Simone.

 

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Promotoria alerta: casos de abandono familiar são recorrentes

A promotora de Justiça em cooperação na 20ª promotoria, Carolina Borges de Mattos, afirma que os casos de abandono familiar nos hospitais da cidade são recorrentes. “Fazemos uma pesquisa de vínculos familiares e sociais, mas esse é um trabalho difícil, porque há pacientes que nenhum familiar quer. A postura é sempre de resistência. Se o retorno não é possível, a gente provoca o município para definir o encaminhamento desse paciente na rede de proteção”, explica a promotora que vê a necessidade de ampliação desta rede, inclusive do acolhimento institucional ao idoso. “Hoje o município tem um convênio com o Abrigo Santa Helena que não atende minimamente a necessidade da população de Juiz de Fora. Eu já entendo que há espaço para se começar a pensar na criação de uma instituição de longa permanência para idosos (ILPI) que seja pública ou de residências inclusivas, nos mesmos moldes das residências terapêuticas.

A supervisora de políticas de acolhimento institucional da Secretaria de Desenvolvimento Social, Nathália Meneghine, alega que as demandas enviadas para a pasta têm sido absorvidas, mas admite que a intenção do Município é expandir o número de vagas em ILPI e ampliar as modalidades de acolhimento institucional para idosos com implantação de casas- lares, que prevê até dez idosos por moradia. “Uma das demandas que levamos para o Estado é exatamente conseguir co-financiamento para ampliação da rede. Quanto mais diversidades de serviços, maior é a qualidade do atendimento.”

Segundo a promotora, enquanto a rede não se amplia é preciso construir uma forma de atendimento mais completa, na qual pessoas institucionalizadas possam participar de atividades fora da unidade para que sejam menos dependentes dela. “O desafio que quero propor é repensar o atendimento dos pacientes que estão em hospital geral, porque, senão, corremos o risco de transformar essas unidades em novos hospitais psiquiátricos”.

Abuso econômico

Quanto aos problemas relativos à curatela e ao abuso econômico que alguns curadores têm na administração dos bens de pessoas consideradas incapazes, a promotora está revendo todos os casos, e isso inclui o de João Ribeiro, o morador do Ana Nery. Há dois anos, o hospital recorreu ao Ministério Público para ajudá-lo, já que as tentativas de sensibilização da curadora não surtiram efeito. No ano passado, a unidade conseguiu vaga para ele em um abrigo próximo a sua cidade natal, mas a responsável legal se negou a assinar a alta dele para que fosse conduzido a Casa Lar, afirmando claramente que tinha a intenção de mantê-lo hospitalizado. “Já ajuizei ação para substituir a curadora, que poderá responder criminalmente. Vou, inclusive, pedir o bloqueio do benefício dele”, revelou. Sobre Sebastião, que não é interditado e mora sozinho, a promotora admite que ainda não tem uma solução.

 

“A carência de afeto não tem classe social”

A ampliação da rede municipal de proteção, como sugere a promotora Carolina Borges de Mattos, poderia beneficiar duas Marias. Uma delas tem filhos e casa para morar, mas não quer voltar para lá. Vítima de violência doméstica, a mulher de 67 anos se viu sem lar e sem dinheiro da noite para o dia. Ao dar entrada na unidade, este ano, com problemas cardiológicos, ela ficou sem o cartão do benefício que está com a filha, autora das agressões. “Ela me jogou no chão e me deu um soco na boca, porque eu não me lembrava onde tinha colocado uma roupa. A gente cria filho para depois ficar no hospital. Nem sei o que fiz para ela”, lamenta a idosa que sonha em ir para um abrigo. A outra Maria mora no Ana Nery desde 1992, época em que foi abandonada na rua aos 29 anos por sua irmã que sumiu no mundo sem deixar vestígios. As duas moravam juntas em Tocantins (MG), mas, com a morte dos pais, a filha mais velha não quis assumir uma pessoa com problemas neurológicos, limitações na fala e na locomoção. Em 23 anos de internação, ela jamais recebeu visitas, passando a ser “adotada” pelos funcionários da unidade. “Escreve a minha história e diz que tenho saudades da minha família. Quero ir embora.”

A psicóloga do Polo de Envelhecimento da UFJF, Neide Aparecida Abreu, lamenta que, na cultura brasileira, o idoso ainda seja visto como “um peso” para suas famílias. “Mesmo no caso em que o idoso tem a própria renda, ele se torna aquele familiar que fica sem lugar no apartamento. Muitos são tolerados, porém não existe mais uma troca amorosa. Costumo dizer que a carência de afeto não tem classe social. Ela grita em todos os níveis. É preciso estimular o apreço pelo outro em qualquer idade, aproximar os netos dos avós e os adolescentes das figuras envelhecidas da família.”

Vítima de violência doméstica, idosa de 67 anos quer deixar hospital e encontrar um abrigo (Daniela Arbex)

 

Menina que morava no CTI está na escola

Publicada há 13 anos no jornal, a história da criança de 3 anos que morava no CTI infantil da Santa Casa desde o nascimento, comoveu a cidade. Na época, a Tribuna revelou o drama de Uliene Cândida Silva, menina que sofria crises frequentes de apneia e, por isso, não tinha meios de sobreviver fora da unidade. O pouquíssimo contato com a família – os pais dela moravam na Zona Rural de Lima Duarte e quase não iam visitá-la -, fez com que os médicos e funcionários do CTI “adotassem” a paciente tratada com especial carinho. Uliene tinha até “conta” na cantina da filantrópica. Os doces, balas, refrigerantes e biscoitos pedidos por ela na lanchonete eram pagos por uma das médicas que trabalhava na instituição. Na Santa Casa, Uliene foi alfabetizada por professoras da Prefeitura através de aulas ministradas no CTI.

O caso dela foi investigado em São Paulo, onde a paciente foi avaliada por diversos especialistas e submetida a uma bateria de exames. No entanto, Uliene continuou tendo paradas respiratórias cujas causas nunca foram detectadas. Viveu dos zero aos 7 anos e meio no CTI em Juiz de Fora até que o pai dela, sensibilizado e preparado pela equipe do hospital, a levou para casa. Hoje, na véspera de completar 16 anos, Uliene vive uma vida normal. O atraso no desenvolvimento motor não a impediu de estudar. Ela está na Escola Estadual Adalgisa de Paula Duque, em Lima Duarte, onde cursa a 8ª série do ensino fundamental com a ajuda da professora de apoio Rose Mary Alves Cunha, 48. Atualmente a jovem reside com a mãe em uma fazenda em Monte Verde, um lugar cujo acesso é considerado precário.

Lembranças

Como todas as adolescentes, é apaixonada pelo cantor Luan Santana e deseja ter um tablet para poder se comunicar com as amigas. Dos tempos vividos no hospital, Uliene ainda guarda lembranças de pessoas e de acontecimentos que marcaram a sua infância e também da primeira coisa que fez ao chegar na casa do pai com quase 8 anos: “Brinquei de boneca com meus irmãos mais novos. Foi a primeira vez que brinquei com outras crianças, porque, no CTI, meus coleguinhas não andavam, nem falavam. Eram todos prematuros. Outros chegavam lá queimados e choravam de dor. Tinha que me divertir sozinha. Eu sabia que era uma criança diferente e me sentia triste por isso”, revela a jovem que diz nunca ter esquecido do velotrol que ganhou e nem das comemorações de aniversário organizadas pela equipe do hospital, com direito a festança no salão nobre da entidade. “Me lembro de uma em que estava vestida de princesa. Foi o dia mais feliz da minha vida, ainda mais porque meus pais e meus irmãos estiveram lá.”

Daqueles tempos, ela carrega a gratidão pela dedicação com que foi tratada e o sonho de se tornar fisioterapeuta para ajudar outras pessoas como foi ajudada. Depois que saiu do CTI, as crises de apneia diminuíram e hoje ela só dorme com respirador em situações raras. A mãe, Roseli Cândida, 33 anos, diz sentir-se aliviada ao vê-la crescer fora do hospital. “Quando ela estava lá, eu não sabia muito o que fazer e não me sentia útil para ela. Não a abandonei, apenas não ia vê-la, porque levava uma vida muito difícil. Hoje ela é minha companheira. Sei que os médicos do CTI a mantiveram viva, e eu tenho muito a agradecê-los por isso.”

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