Tribuna – Em contraposição ao apagamento, qual a importância de se falar sobre a retomada indígena?
Ailton Krenak – Olha, falar sobre talvez não seja tão importante quanto dar consequência. Se você olhar, há cinco anos estávamos na iminência de sermos dizimados pelo Governo, um anúncio de genocidio público. Nesse contexto, levantar a voz e insistir que sejamos ouvidos e clamar essa retomada é re-existir, é resistir mais uma vez. É continuar existindo mesmo diante do trauma, resistir dentro de uma situação desfavorável. Então a retomada é, na verdade, muito pouco. De acordo com o Censo do IBGE, os indígenas saltaram de 130 mil para um milhão. Quanto mais ameaçada de extinção mais se multiplicam? Ora, o que está acontecendo com essa coisa indígena no Brasil? De uma hora para outra, na condição de caçados, você também vê uma mulher indígena como ministra e você tem mulheres indígenas ocupando lugares de relevância no quadro político brasileiro, parece um faz de conta. A gente estava há tanto tempo preso no castelo da bruxa, que abre a clareira e a gente sai de lá felizes para sempre, com uma bandeira da vitória? Eu fico preocupado com leituras equivocadas que esse momento de pura euforia política, com a vitória do presidente Lula sobre a necropolítica de Bolsonaro, pode trazer. As matanças nas terras indígenas continuam. Aí você pensa “mas só tem cem dias de governo”, mas já tem um movimento indígena começando a levantar um debate crítico sobre as florestas, reclamando, por exemplo, que o Ministério dos Povos Indígenas tenha poder político para fazer aquilo para que foi designado. Precisa relembrar o propósito de reparação. Se a gente for pensar em reparação, em cem dias não dá para fazer nada, mas já dá para mostrar boa vontade na resolução dos problemas que são crônicos.
No presente momento, quais políticas públicas devem ser implementadas para garantir os direitos dos povos indígenas?
Acho que nem seria o caso de acrescentar mais nada, mas de fazer valer as políticas públicas já instituídas. Aquelas que foram suspensas precisam voltar a ser executadas. É necessário por para funcionar.
Na Constituição de 1988, o senhor teve um importante papel para ser incluído no “Capítulo dos índios”, que garante os direitos indígenas à terra e à cultura autóctone. Como enxerga hoje isso na prática? E quais novos passos precisam ser dados?
Se a gente for entender aquele gesto que é a Constituinte, ele deveria ser considerado um gesto definitivo. Ele não deve ser acrescentado, pois se a gente pensa que um artigo da nossa Constituição é flexível, é uma tristeza. É uma desilusão com a ideia de organizar de alguma maneira a vida social brasileira. A Constituição tem que ser respeitada, ela é um dispositivo de poder que o Governo eleito tem que ativar. É do interesse da democracia e da sociedade plural. O Lula me emocionou ao dizer sobre a situação nas escolas, que não vai ser dinheiro que irá resolver nossos problemas, mas ele só falou meia verdade. A gente tem que lembrar que a educação no Brasil foi abandonada sem orçamento. A profissão de professor foi banalizada. Deveríamos no nosso país fazer uma imensa revolução de valores onde um professor, engenheiro, médico estivesse no mesmo patamar. Mas porque o Governo prefere tratar os professores na “porrada”? Existem escolas com infraestrutura que não são reformadas, você chama isso de escola e quer que o cara vá para lá estudar.
O senhor acha certo afirmar que o fascismo está impregnado no Brasil atualmente?
O mundo é fascista, não só o Brasil. Olha quanta gente depredando o planeta. Eu sugiro que essa humanidade que nós pensamos que somos é uma ficção. A gente acreditou por muito tempo que existia uma distribuição dos povos pelo planeta que é chamada de humanidade. Mas essa narrativa é muito boa para o capitalismo. Dentro dessa narrativa as pessoas precisam estudar, trabalhar, treinar, comprar, produzir e fazer riqueza. Acontece que nem 20% desse contingente consegue participar do “clube”. Ele só deixa uma parte entrar, o restante fica de fora, o que sobra eu chamo de sub-humanidade. Esses passam o dia para trabalhar e comer e vão continuar assim. É por isso que o fascismo avança, com a mentira, essa promessa capitalista de que se você se esforçar, você chega lá.
Para o senhor, o que é utopia?
Utopia é tudo que você conseguir criar dentro de você, só a partir do que você tem dentro de você e criar outros mundos. Eu acho que diante do outro termo, distopia, que é uma espécie de renúncia a tudo que é belo, a vida, a utopia é a única possibilidade diante de uma renúncia, é a poesia. O outro nome de utopia só pode ser como poesia. Mas a possibilidade de criar outra narrativa e de instituir outros mundos, ela é utópica, está em outro lugar.
O senhor se considera utópico?
Com o passar do tempo eu estou aceitando mais habitar essa utopia do que quando eu era mais jovem. Eu achava que Galeano (Eduardo, jornalista e escritor uruguaio morto em 2015), por exemplo, se considerava um utópico, e eu ficava irritado com ele. Porque achava que ele estava vendo que o mundo está cheio de problema e falando de utopia. Eu era mais prático, achava que tinha que mudar o mundo. Com o passar do tempo, eu me aproximei da ideia de habitar outro mundo onde você pode experimentar estar vivo.
Qual é o seu mundo utópico? E o que seria essa poesia que o senhor menciona?
Meu lugar utópico é pensar numa possibilidade da terra, que é um organismo vivo, me assimilar, me deixar fazer parte dele. Desde criança me considero poeta, só que eu não sabia o que era. Manoel de Barros disse que tinha vocação para ser graveto, queria ser uma árvore, um galho… Então se uma criança quer ser uma árvore, já é poesia.
E o senhor queria ser o quê?
Eu queria ser tudo. Eu consegui.