Uma pesquisa feita pelo Panorama Político 2024 e publicada no começo de outubro mostrou que 13% dos brasileiros com 16 anos ou mais (o equivalente a 22,13 milhões de pessoas), declararam ter apostado em “bets” nos últimos 30 dias. No Brasil, são centenas de casas de apostas presentes em atividades cotidianas e divulgadas por famosos, além de uma desigualdade social acentuada que acentua a atração por essa suposta possibilidade de enriquecimento.
O cenário, para os especialistas, acentuou um risco de vício que já existia a partir dos bingos, cassinos on-line e loterias, mas que recentemente se tornou acessível demais, principalmente para populações mais jovens. O fenômeno já está sendo chamado de “epidemia das bets”, em que indivíduos estão perdendo a saúde mental e tendo danos financeiros irreversíveis devido ao vício nesse tipo de aposta. Em Juiz de Fora, a realidade também preocupa, sobretudo porque ainda há muita dificuldade de se falar sobre esse problema e de se reconhecer o vício.
“Você vai no ponto de ônibus, tem a publicidade de uma bet; vai assistir a um jogo de futebol, que é tão popular no Brasil, e é bombardeado pelo marketing das bets; até o Mercado Central de Belo Horizonte anunciou que vai ter uma ‘bet’ no nome”, reflete a psicóloga e professora da Universo Roseane Mendonça. Em sua perspectiva, o problema se acentuou quando os jogos de azar puderam ser guardados dentro do bolso e se tornaram uma atividade silenciosa, em que cada pessoa pode se envolver sem que os demais saibam. Não por acaso, a maior parte das apostas é feita entre 22h e 3h, mas a mente está em contato com aquela possibilidade o tempo todo: tanto pra testar pela primeira vez, para tentar um dinheiro mais rápido em uma emergência, quanto para dar continuidade ao vício. De acordo com projeções da Strategy & Brasil, estes canais movimentaram entre R$ 60 bilhões e R$100 bilhões em apostas no país apenas no ano passado, quase 1% do Produto Interno Bruto (PIB).
Mas a questão das bets traz um problema muito grande não só para o sujeito, mas também para a família, já que a perda de dinheiro impacta todo o grupo familiar. Como o doutor em psicologia e professor do curso de Psicologia da Estácio, Daniel Gouvea, destaca, não há jeito seguro de se apostar ou de se envolver com jogos de azar – qualquer pessoa pode desenvolver esse vício, mas especialmente aquelas que já apresentam um comportamento compulsivo. “O vício é quando a pessoa perde o controle. Quando quer jogar só um dia, mas joga todos os dias; não consegue mais sentir satisfação, e aí precisa jogar cada vez mais para ter alguma satisfação; tem a necessidade de estar jogando todo o tempo, e não consegue controlar o quanto gasta e nem aceitar que está tendo derrotas”, define.
Como os especialistas destacam, o vício inclusive se acentua depois de uma perda, porque a pessoa quer continuar apostando para tentar recuperar o prejuízo. Há ainda, como define a economista da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Carla Beni, uma combinação perversa no marketing das bets no Brasil, que associa ganho fácil, ostentação, influencers e atletas (que inclusive são ídolos). “É divulgado como se fosse um investimento. (…) Grande parte dessas pessoas que jogam já estão inadimplentes, com contas atrasadas e dificuldades financeiras, precisando buscar uma alternativa rápida que não se concretiza. Quando as famílias descobrem, o problema já está instaurado”, destaca. Para ela, é necessário destacar que esse não é um investimento, e que há muito mais possibilidades de perda (e eu um grau severo) do que de ganhos.
Crescimento das apostas em favelas
O crescimento das apostas em bets dentro das favelas e entre pessoas de baixa renda é um problema que tem chamado ainda mais atenção. Pesquisa feita pelo Instituto de pesquisas Favela Diz, que entrevistou 1.352 moradores de comunidades brasileiras no mês de setembro, constatou que 70% dessas pessoas fazem apostas esportivas on-line, sendo que metade diariamente. A grande parte dos apostadores está na faixa etária de 18 a 34 anos (86,5%), e moradores das comunidades brasileiras gastaram mais de R$37 bilhões nesse tipo de jogo nos últimos doze meses.
O Banco Central divulgou que já foram gastos mais de R$3 bilhões nessas empresas de aposta. Para Roseane Mendonça, isso tem um motivo claro, que pode ser explicado na perspectiva da psicologia cognitiva: “O crescimento maior em classes mais baixas e em países economicamente mais pobres é porque muitas das pessoas acabam vendo essas apostas como possibilidades de respostas rápidas a dívidas ou dificuldades financeiras. Acabam encarando como um investimento”.
Perda de qualidade de vida
Um estudo da Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), em parceria com a AGP Pesquisas, mostrou que 63% dos apostadores no Brasil já tiveram parte de sua renda comprometida com apostas, o que reduziu significativamente seu poder de consumo. Aproximadamente 19% deixaram de fazer compras no mercado, e 11% reduziram gastos com saúde e medicamentos. Esses dados evidenciam uma perda de qualidade de vida associada ao impacto dos jogos de aposta. “Quando a pessoa está jogando, deixa de ter interações sociais com família e amigos, deixa de estar investindo aquele recurso no trabalho e de ter tempo para se cuidar de outras formas e desenvolver hobbies”, destaca Roseane.
Quando a pessoa entra em um processo de vício, como ela explica, fica também mais suscetível a desenvolver outras patologias de saúde mental. “A pessoa se sente muito culpada e envergonhada, pode entrar em um ciclo de transtorno de ansiedade, em que fica sempre com medo das consequências futuras. E também pode desenvolver um transtorno depressivo, porque se sente isolada e está tendo muitas perdas, sem saber como pedir ajuda”, conta. Ela destaca, ainda, que na sua vivência profissional convive com vários pacientes adolescentes que já apostam, mesmo isso sendo legalmente proibido para menores de 18 anos. “Essa regulamentação não acontece no dia a dia, não é feita como poderia ser”, explica, destacando que nesses casos o vício se torna ainda mais problemático.
Quando e como buscar ajuda
O maior desafio é que a sociedade ainda não vê o vício nesse tipo de jogo como problemático, e ainda está só começando a perceber a situação como um comportamento compulsivo como outros, como explica Daniel. Ele e Roseane entendem que os casos mais graves começam a ser vistos pela família e por pessoas próximas, porque a pessoa pode ter dificuldade em admitir e até mesmo em entender que está passando por um problema de saúde. “Tem gente que acha que se trata de uma fraqueza, que é só parar, e que tem controle sobre o vício. Mas não”, destaca Roseana.
Ela indica que a situação pode ser cuidada em um nível individual e coletivo. No individual, buscando ajuda dos mais próximos e, em seguida, partindo para um tratamento psicoterapêutico. No nível coletivo, é preciso repensar este sistema: “Não adianta fazer campanhas culpando os indivíduos, isso não funciona. Precisamos conscientizar as pessoas criando mecanismos de controle. Esses apps precisam passar por mais regulamentação. (…) Os mecanismos cognitivos são feitos para viciar as pessoas, então não podemos culpá-las individualmente ou agir como se fossem fracas, isso só atrapalha a buscar ajuda”, afirma.
Expectativa de regulamentação e ‘bancada das bets’
O ano de 2018 foi um ano definidor para a entrada das bets no país. Naquela época, o então presidente Michel Temer autorizou as bets, e os próximos anos de governo de Jair Bolsonaro (PL) não regulamentaram a prática de jogos de azar, o que só foi acontecer pela primeira vez em 2023. No último mês, diante do agravamento da situação, o ministro Fernando Haddad já firmou o compromisso de tirar do ar sites irregulares de bets e de enrijecer as normas que regem essas apostas.
Nos últimos anos, no entanto, como lembra Carla Beni, já se formou uma “bancada das bets” no congresso. “São deputados e senadores que defenderam essas plataformas e apoiaram e estimularam isso. Agora, temos um problema instaurado e precisamos conferir como agir daqui pra frente”, explica. Em reportagem do Estadão, foram identificados 12 deputados e senadores que defendem esses interesses, sendo de partidos PSDB, União, PSB, PL, PV, PSD, PP, PT e Podemos.
Para os especialistas, em outro sentido, também seria importante pensar em medidas educativas inclusive na área de educação financeira. “A supervisão, o contato com as pessoas e a aprendizagem são estratégias que podem ajudar as pessoas a lidar melhor com isso”, destaca Daniel.