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Dor, ansiedade e insônia levam a abuso de remédios

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Em maio, a Anvisa publicou informe para chamar atenção sobre o uso inapropriado no país do fentanil, opioide sintético originalmente utilizado como analgésico e anestésico (Foto: Ksenia Yakovleva/unsplash)
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“Vivemos numa sociedade hedonista, que tolera muito mal qualquer desconforto. Dor, ansiedade, insônia parecem inadmissíveis e insuportáveis, diante de quaisquer situações desfavoráveis que acompanham a existência humana.” A análise do médico psiquiatra Uriel Heckert, professor aposentado de psiquiatria e de antropologia médica da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), aponta possíveis causas para o atual uso indiscriminado de medicamentos. Enquanto os Estados Unidos vivem epidemia de opioides – alimentada pela indústria farmacêutica e com centenas de milhares de mortes, como mostrado na comentada série da Netflix “Império da dor” -, no Brasil tem chamado a atenção o abuso de remédios como o Zolpidem, indutor do sono. Embora a própria bula recomende tratamento por até quatro semanas, pessoas têm tomado as pílulas por anos, em quantidades cada vez maiores, chegando ao absurdo de 300 comprimidos em um único dia, conforme reportagem recente da BBC. O fato de a comercialização das embalagens com até 10mg por unidade posológica exigirem apenas receita de controle especial, e não aquela “B”, mais restrita, da cor azul, estaria facilitando a propagação dessas pílulas.

Uma produtora juiz-forana ouvida pela Tribuna, de 43 anos, afirma nunca ter tomado mais de uma dose de 10mg de Zolpidem por noite, mas admite não sentir mais o mesmo efeito, após quase três anos de administração diária. “Virou mais uma muleta, porque, se não o tomo, tenho certeza de que vou pegar no sono só pela manhã. Mas agora, tomando lá pelas 22h, 23h, só pego no sono entre 1h e 2h. Já não faz mais o efeito imediato, mas eu me recuso a tomar mais de um. Já tenho muitas outras medicações na minha vida.”

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O psiquiatra Uriel corrobora a percepção da paciente: “As chamadas ‘drogas Z’ (Zolpidem, Zopiclone, Eszopiclone, Zaleplona) são úteis em situações específicas, favorecendo a indução do sono. Entretanto, seu emprego prolongado tem mostrado potencial de tolerância, levando ao uso de doses crescentes. Além disso, com o passar do tempo, elas podem induzir quadros de amnésia, especialmente em automatismos durante o sono. Por isso mesmo, a prescrição deve indicar as menores doses, prazo curto de uso e já com orientação quanto à retirada.”

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Efeitos adversos

Muitos efeitos adversos são alertados na bula do Zolpidem, como sonambulismo, alucinações e outros distúrbios de comportamento, acompanhados de amnésia. Mas situações como essas viraram motivo de engajamento nas redes sociais, graças a relatos como fazer compras na internet e não lembrar depois, tornando o Zolpidem uma espécie de “hit” entre pessoas cada vez mais jovens. “Passei por poucas e boas: muitas compras on-line e de viagens, sem a menor lembrança; ligações e mensagens de áudio um pouco vergonhosas, até para uma pessoa com a qual não conversava há 14 anos. Tomo muito cuidado para não estar mais com celular na mão, tento ficar o mais quieta possível até o remédio fazer efeito, mas às vezes é muito difícil”, desabafa a produtora.

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Uriel reforça não existirem remédios sem efeitos colaterais. “Além disso, a somatória de vários medicamentos usados concomitantemente redunda em interações medicamentosas, que acentuam ou prejudicam a ação de um ou de outro fármaco. Portanto, devemos ter cuidados redobrados.”
Casos de tentativas de suicídio por ingestão exagerada de Zolpidem, isoladamente ou em conjunto com outros medicamentos, também têm sido registrados. Conforme dados do Registro de Eventos de Defesa Social (Reds), só neste ano foram contabilizadas em Minas seis ocorrências relacionadas, duas delas fatais. Em Juiz de Fora houve pelo menos quatro tentativas no ano passado.

‘Vivemos uma medicalização da vida’

Enfrentando problemas de saúde mental desde 2009, a produtora juiz-forana sempre teve “altos e baixos”, mas a chegada do coronavírus tornou tudo mais complicado. “Minha história com o Zolpidem começou na pandemia. Minha depressão ‘normal’ virou um ataque de pânico e ansiedade que pouquíssimas vezes senti igual. Daí ficava duas, três noites dormindo pouco demais, às vezes nada. Tenho o grave defeito de estocar alguns remédios também, então passei a tomar Alprazolam para conseguir dormir. Tive algumas consultas on-line, e o médico me disse para continuar com o medicamento.” No entanto, quando mudou de psiquiatra, ela recebeu nova orientação. “A médica disse que seria muito ruim continuar com o Alprazolam, porque era muito viciante, e me sugeriu o Zolpidem, que era nada viciante e que me ajudaria demais. Confiei, comprei e minha vida mudou mesmo, para dormir.”

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Com sua vasta experiência, o psiquiatra Uriel pondera que as pressões do dia a dia, as precárias condições de trabalho e os próprios problemas pessoais mal resolvidos levam os profissionais a serem, com frequência, frios e objetivos em seus atendimentos. “Torna-se mais fácil atender às demandas imediatas do que se deter em considerações elaboradas, que exigem paciência, tempo, investimento pessoal, que se mostram ineficazes, na maioria das vezes. É preciso muita determinação, compromisso com valores e fé, tanto nas possibilidades humanas como na ação de Deus, para não sucumbir às rotinas apressadas e superficiais.”

O especialista ressalta que hoje não são os psiquiatras os que mais receitam psicofármacos. “Dificilmente alguém sai de uma consulta com cardiologista, ginecologista, neurologista, geriatra e outros especialistas sem a prescrição de um tranquilizante e/ou antidepressivo. Também não são os médicos os únicos a prescreverem substâncias químicas para os seus pacientes. Psicólogos, nutricionistas, fisioterapeutas, enfermeiros e outros fazem suas indicações de ‘fórmulas’, substâncias ditas naturais, ‘suplementos’, etc. Tudo na tentativa de se obter resultados rápidos, com o mínimo de espera e de envolvimento pessoal.”

Diante de tudo isso, o médico dispara: “Claro está que a indústria farmacêutica se vale de tudo isso e lucra enormemente. Vivemos uma medicalização da vida, em que todos somos responsáveis, de alguma forma.” Para rebater esse contexto, ele cita frase do professor Lauro Solero, antigo catedrático de farmacologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ): “Toda prescrição medicamentosa é um ato deliberado de agressão a um organismo vivo, que só se justifica depois de acurada avaliação do custo e do benefício”.

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Anvisa publica alerta sobre opioides

Em maio deste ano, a Anvisa, em conjunto com outros órgãos, publicou um informe de alerta rápido sobre drogas para chamar atenção sobre o uso inapropriado no país do fentanil, opioide sintético originalmente utilizado como analgésico e anestésico. “Como analgésico, o fentanil é aproximadamente 100 vezes mais potente que a morfina e 50 vezes mais potente que a heroína, por isso é utilizado frequentemente para propósito médico, tanto para analgesia de curta duração durante o período anestésico ou quando necessário no período pós-operatório. O uso não médico do fentanil pode acarretar consequências severas à saúde dos usuários e à saúde pública, como observado pelo aumento paulatino no número de mortes por overdoses atribuído ao uso de opioides na América do Norte durante os últimos anos”, diz o informe.

Segundo a publicação, no Brasil existem relatos nos últimos anos do uso não médico de fentanil e apreensão dessa substância com o propósito de tráfico para o mercado ilícito. Operação da Polícia Federal denominada “Alquimia” e deflagrada em Santos (SP) confirmou o envolvimento de investigados na compra de 83 caixas de medicamento contendo fentanil (o equivalente a mais de duas mil ampolas de 10ml cada do anestésico), todas comprovadamente desviadas para o narcotráfico. O fentanil também tem sido encontrado no país sob outras formas de apresentação, como em selos do tipo LSD.

“No Brasil, os anos de vida ajustados por incapacidade (DALYs, que consistem na soma dos anos de vida perdidos e anos vividos com incapacidade devido a uma causa específica) atribuídos aos transtornos por uso de opioides vêm aumentando desde a década de 1990, atingindo em 2019 a maior taxa da América do Sul (82 DALYs por 100 mil habitantes).” Ainda conforme o estudo, a média anual de venda de medicamentos à base de opioides no Brasil ficou acima de cinco mil unidades por 100 mil habitantes no período avaliado, sendo São Paulo o estado com mais opioides comercializados. “Com base nesses dados, também se constatou que o fosfato de codeína, seguido pelo cloridrato de tramadol, compõem a vasta maioria dos princípios ativos comercializados em medicamentos contendo opioides no território nacional. No entanto, o uso de opioides no Brasil não apresenta proporções epidêmicas”, conclui o relatório.

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Indutor do sono

A Anvisa afirmou que todos os medicamentos que contêm Zolpidem são de uso controlado, com retenção de receita e só devem ser utilizados sob orientação e prescrição médica. “O controle da comercialização inicia-se com a prescrição, por profissional habilitado, a qual deve ser realizada em receituário específico, conforme a lista em que se enquadra a substância componente do medicamento (maior ou menor do que 10mg por unidade posológica).” A agência destacou que os receituários de medicamentos controlados devem ser retidos pelo estabelecimento e, portanto, podem ser utilizados apenas uma vez.

Como alternativa aos remédios, o psiquiatra Uriel Heckert recomenda a chamada higiene do sono: “Respeito ao ritmo circadiano, com horários regulares para repousar e levantar; alimentação mais leve na parte da noite, sem ingestão de estimulantes (café, chás mate, preto, verde, refrigerantes e produtos com cafeína); distanciamento de telas luminosas (celular, computador, TV); período de recolhimento, meditação e oração antes de deitar-se”.

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