
Uma divisão antiga, que separa duas comunidades que se querem unidas, começa a ter contornos mais dramáticos à medida que começa a mexer com a rotina das pessoas, impedindo-as de tratarem aquilo que elas têm de mais precioso: a própria vida. Em meio a uma rixa irracional, na qual o motivo, muitas vezes, beira à banalidade e que nada tem a ver com a maioria dos habitantes do lugar, moradores da Vila Esperança II, na Zona Norte de Juiz de Fora, estão sendo impedidos de usar os serviços prestados pela Unidade de Atenção de Primária à Saúde (Uaps) Francisco Teixeira, sediada na Vila Esperança I. A violência forjada por grupos que se consideram rivais já deixou um rastro de mortes. Nos últimos três anos, foram 16 vítimas de crimes violentos entre os dois bairros. Um dos homicídios aconteceu nos fundos da Uaps, em junho do ano passado, quando Everton Firmino Rodrigues, de 28 anos, foi morto com pelo menos sete tiros, sofrendo seis perfurações no tórax e uma na cabeça.
A consequência disso é o medo que atinge moradores e trabalhadores de saúde. Os primeiros reclamam da falta de acesso ao serviço prestado pela Uaps, que impacta inclusive a vacinação de crianças. Os segundos, por insegurança, não querem trabalhar no local. O resultado é a irregularidade nos atendimentos. Por causa de um roubo cometido contra uma funcionária no último dia 13, a Uaps permaneceu três dias fechada.
A mulher, de 27 anos, foi atacada por um homem no interior do pátio da Uaps. Em seu relato no boletim de ocorrência, a vítima narrou que, ao chegar para trabalhar, foi abordada por um homem. Ele tampou a boca dela e disse que tinha uma faca e que a mataria caso não lhe desse seus celulares. Com medo, a mulher entregou dois aparelhos, e o assaltante fugiu. Após a ocorrência, a Uaps só foi reaberta na segunda-feira, dia 18 de julho, segundo os usuários.
Presidente da Associação de Moradores da Vila Esperança II, Ronaldo José de Souza afirma que a unidade é alvo de vandalismo, brigas e ameaças a funcionários. “Apesar de ficar localizado na Vila I, o posto atende a moradores da Vila II e do Nova Benfica. Mas os usuários da Vila II acabam prejudicados, pois recebem ameaças quando precisam ir até lá. Com a insegurança, eles precisam se dirigir à policlínica em Benfica ou a UPA Norte. A associação tem recebido muitas queixas em razão desta situação. A insegurança prejudica até a vacinação das crianças, pois as mães estão com medo e, muitas vezes, procuram os postos até do Centro da cidade para ministrar a vacina nos filhos. Nossa comunidade está à mercê, não há a quem recorrer”, revolta-se.
Conflito
O prejuízo ao atendimento também é confirmado pela presidente da Associação de Moradores de Benfica, Aline Junqueira. “Durante reunião do Conselho de Saúde local, moradores da Vila Esperança II solicitaram atendimento na antiga Policlínica de Benfica, que atualmente funciona como Uaps, uma vez que ficam impedidos de usar a Uaps da Vila I, em razão da violência. É um conflito antigo, que vem trazendo outras implicações para as comunidades, já que não conseguem contar com o serviço na área de saúde”, disse Aline.
Usuários da Uaps que não quiseram se identificar relataram casos de agressão a funcionários e danos realizados contra os automóveis dos profissionais. Segundo eles, já houve episódio no qual o relógio de energia da unidade foi desligado, resultando na perda de vacinas. Os residentes afirmam que, muitas vezes, a população, por medo de retaliação, fica em silêncio. Além disso, há reclamações a respeito da estrutura física da Uaps. A cobertura que servia para proteção do sol e da chuva teria caído há mais de dois anos, não sendo recuperada até hoje.
‘Todos somos considerados como marginais’
As situações de violência, conforme a presidente do Conselho de Saúde local, Maria Adelina Braz, fazem com que médicos e outros profissionais tenham medo de trabalhar na Uaps da Vila Esperança I. “Médico que chega aqui não quer ficar, porque tem medo, porque dizem que aqui é perigoso”, dispara Maria Adelina, de 68 anos, moradora há 26 da Vila I. Conforme ela, a Uaps conta com equipes para atendimentos dos bairros Vila I, II e Nova Benfica. Todavia, elas estão com déficit de integrantes. “A equipe da Vila II tem médico, mas faltam dois agentes de saúde. Na de Nova Benfica, falta um agente de saúde. E a da Vila II só tem dois agentes e uma enfermeira. Estamos ao Deus dará, sem apoio. Todos somos considerados como marginais. Eles não sabem diferenciar quem é quem e colocam todo mundo no mesmo balaio”, lamenta a líder comunitária.
Ela narrou que, no dia em que houve o roubo da funcionária, a Uaps estava muito cheia, resultando em um alvoroço no local. “Os funcionários começaram a dizer que tinham que fechar, porque era ordem do subsecretário para quando acontecesse uma situação assim”, afirmou. Maria Adelina ressalta que, como os moradores não conseguem atendimento, precisam procurar a UPA Norte. “Já teve tempo que havia ‘troca de bala’, mas não há rixa entre nós, há grupos que estão em disputa, mas isso não tem nada a ver com os moradores, que precisam dos serviços médicos”, assevera a moradora. No dia em que a Tribuna esteve no local, no último dia 19, segundo a presidente, a Uaps só tinha uma enfermeira e uma médica. “Isso é um absurdo, porque a unidade é referência para 12 mil usuários”.
Moradora da Vila Esperança II, Alaíde Rosa diz que é preciso compreensão entre os dois lados da comunidade. “Tem que ter união para que os usuários não sejam prejudicados. Há pessoas que são proibidas de ir até lá, não a maioria, depende da situação. Mas os moradores não podem pagar esse preço”, indigna-se Alaíde, acrescentando: “Acho que precisa de uma ação social, com atividades de lazer e esportiva, mais investimento para que haja uma integração entre as duas vilas, terminando com esta rixa, que é mais um mito.”
Secretaria de Saúde diz que vai contratar médico
O comandante da 173ª Companhia da Polícia Militar, capitão Ricardo França, que responde pela área, afirmou que as questões de insegurança envolvendo a Uaps são de conhecimento da corporação, que já trabalha para assegurar a tranquilidade no local. Ele ressaltou que muitos fatos não foram registrados e que a companhia também não havia sido procurada pela gestão da unidade, até então, para denunciar os fatos. “Tivemos ciência de toda a situação somente depois do roubo da funcionária, quando estivemos na unidade. Aproveitamos a ocasião para passar orientações e ressaltar a importância do registro das ocorrências. É preciso lembrar que a PM não tem condições de manter um policial ou uma viatura no local, pois seria inconstitucional. Todavia, estamos deslocando, diariamente, uma viatura para lá, a fim de fazer um contato mais próximo com os funcionários da Uaps e também com a comunidade, fazendo um trabalho mais específico”, afirmou o capitão França, acrescentando que a comunidade deve procurar a sede da 173ª Cia para apresentar sua demanda.
A Secretaria de Saúde informou, por meio de nota, que a Uaps da Vila Esperança conta com duas equipes completas do Programa Saúde da Família. Além disso, garantiu que já teve início o processo para a realização de uma seleção para contratação de médicos para ampliar o quadro de profissionais desta unidade. No último processo seletivo – edital 289 -, um médico foi contratado para o local, no entanto solicitou desligamento.
Ainda de acordo com a nota, a secretaria diz ter feito um diagnóstico de todas as unidades do município e, a partir desta análise, foi feita uma listagem para um processo de revitalização das Uaps, priorizando aquelas que estão em situação precária. “Até o momento, 12 unidades já foram entregues. Uma unidade nova será construída no Nova Benfica, com a previsão de contar com duas equipes que atenderão uma população aproximada de seis mil usuários, o que irá desafogar as Uaps dos bairros Vila Esperança e Benfica.” A Secretaria de Saúde informou, ainda, que tem agendada uma reunião com a 27ª Companhia de Polícia Militar e outros órgãos para tratar da situação da Uaps da Vila Esperança.