Bruna Leonardo Mesquita da Silva deu início ao processo de mudança de nome em 2011. Transexual, tendo assumido sua identidade de gênero desde 2006, ela passou por um penoso e demorado processo até conseguir ter em mãos sua nova certidão de nascimento. Em meados de 2016, seu grande objetivo se concretizou. Bruna, que anteriormente se chamava Bruno, passou por cirurgia de mudança de sexo em 2013, feita em uma hospital do Rio de Janeiro pelo Sistema Único de Saúde. Mas, antes disso, já tinha a certeza de quem realmente era, fato que, aos olhos da Justiça, não era suficiente para permitir a mudança, dada a falta de uma lei que regulamente a situação no país. E, diante das controvérsias, o constrangimento era constante.
“A transexualidade para mim não é um problema. Mas eu acho que você não precisa, a todo momento, ficar justificando por que precisa de um nome social. A maior importância da averbação é isso: não precisar ficar justificando, implorando para a pessoa aceitar o seu nome social. Como o meu nome não me representava mais, senti a necessidade dessa averbação. Agora não preciso mais passar por esse constrangimento”, explica.
Em agosto do ano passado, Bruna foi até Belo Horizonte, no cartório onde foi registrada como Bruno Leonardo em 1980, para fazer a requalificação civil. Após um longo processo em que contou com o apoio do Núcleo de Práticas Jurídicas da Faculdade de Direito da UFJF, ela conseguiu o documento. Em outubro, já tinha nas mãos sua nova carteira de identidade. “Quis preservar meu sobrenome Leonardo, pois faz parte da minha essência. Hoje em dia eu sou militante, estou lutando pelos direitos de pessoas LGBTI. Tem uma amiga minha que está esperando há dez anos. É um absurdo a gente ter que contar com a morosidade da Justiça. Cinco anos é muito tempo”, afirma.
A dificuldade para conseguir a requalificação civil não é uma realidade só de Bruna. A advogada transexual Giowana Cambrone, que atua em ações do tipo, afirma que a ausência de lei específica que reconheça as identidades de gênero é um elemento que dificulta a retificação do nome. “Das diversas maneiras de identificar e individualizar cada ser humano, o nome é um dos mais importantes atributos da personalidade. Mas no caso das pessoas trans, a permanência do nome atribuído no nascimento, ao invés de ser considerado um direito do cidadão, pode ser considerado uma violação”, afirma.
Lei atual
A possibilidade de alterar o nome é garantida hoje no Brasil apenas pela Lei 6.013/1973, conhecida como Lei de Registros Públicos. No entanto, a sua aplicação se dá apenas para casos de prenome ridículo; nome de colaborador em processo criminal que necessite de proteção por correr risco de morte; o nome daquele que tem apelido público notório; o nome do adotado e a alteração de prenome no primeiro ano após o atingimento da maioridade. “Como é possível perceber, o legislador de 1973 não contemplou a possibilidade de alteração de nome de pessoas trans, até porque a realidade de invisibilização e negação de direitos para essa população era ainda mais contundente”, observa Giowana.
Ainda é preciso romper com estigmas
A advogada questiona ainda a forma preconceituosa que o próprio processo judicial se torna, uma vez que transexuais precisam passar por diversas etapas, comprovando anos de vivência, entrevistas com psicólogos, profissionais do serviço social, além de estarem submetidos à exigência de magistrados para realização de cirurgia ou perícia médica. “Já vi um caso em que a pessoa foi submetida à perícia médica e no laudo foi descrito a posição dos pelos pubianos. Travestis e transexuais são patologizadas pelo Judiciário e, por vezes, tratadas como incapazes de discernir o que são, exigindo que profissionais de saúde o faça. Apesar das conquistas jurisprudenciais obtidas ao longo do tempo, ainda é preciso romper os estigmas em torno das pessoas transgênero e reconhecer tais pessoas como sujeitos de direito cuja identidade deve ser respeitada”, cobra.
Tal como Bruna Leonardo, a teóloga e ativista social Bruna Rocha também passou por processo judicial, iniciado em 2012 e concluído com a publicação da sentença em janeiro do ano passado. A entrega do documento ocorreu em março. Bruna é assumida desde os 16 anos, mas optou por não passar pela cirurgia. “Entendi que não deveria fazer a readequação para ocupar meu lugar na sociedade como mulher trans. Senti que me dava muito bem com meu sexo biológico, mas optei pela mudança do nome.”
Hoje, Bruna vê o processo como uma vitória. “Passei por vários constrangimentos em aeroportos, casas de shows e eventos que participava, como foi o caso da conclusão de curso. Mas achava pouco. Meu nome era Bruno da Silva Rocha, fiz questão de manter os outros dados, venho de uma família constituída dentro do estado democrático de direito e faço questão de carregar comigo o nome da minha família”, conta.
Primas também querem mudar de nome
Como parte do processo de reconhecimento e identificação civil, as jovens Nicole de Oliveira, 18, e Larissa de Oliveira, 23, primas de primeiro grau se veem diante do mesmo desafio. Elas já pensam sobre a possível adoção do nome social no documento. Ambas são moradoras do Bairro Santa Luzia e contam as dificuldades desde o processo de descoberta da verdadeira identidade até a aceitação familiar.
“Na escola, sempre tem comentários e risadas, mas eu não ligo. Sou maior que isso. Já passei por tanta coisa para conseguir ser quem eu sou de verdade, que ignoro. Penso em dar entrada para mudar o nome. Você olha para a identidade e não é a mesma pessoa com a qual você se identifica”, afirma Nicole, que tem como nome de registro Denilson de Oliveira.
Além do drama da auto-aceitação, Larissa fala das dificuldades enfrentadas pelas pessoas trans, principalmente em relação ao mercado de trabalho. “Já trabalhei em alguns lugares, mas tem sido muito difícil. Não é fácil conseguir vaga. Me descobri com 18 anos. A gente se sente presa, uma pessoa coagida. Eu não era quem eu realmente queria ser: encaixada em um padrão, como as pessoas queriam que a gente fosse”, desabafa.