A maioria das alunas da UFJF teme sofrer violência no campus. É o que revelam dados preliminares da pesquisa “Entre salas, corredores e laboratórios: percepções das/dos estudantes sobre violência contra as mulheres no ambiente universitário”, apresentados pela diretora do Centro de Pesquisas Sociais (CPS) da instituição, Célia Arribas, no seminário “Sororidade e Resistência – enfrentamento às violências contra a mulher na universidade”, realizado no dia 8 deste mês. De acordo com o estudo, 23% das estudantes ouvidas já relataram ter sofrido algum tipo de violência na instituição, 77,7% das alunas dizem já terem sentido medo de ser vítima da violência no ambiente universitário, e 78,3% já deixaram de circular ou permanecer na UFJF por este temor.
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Os resultados são bem diferentes dos relatos coletados por estudantes do sexo masculino. Segundo o levantamento, 17,9% dos alunos se sentem inseguros ou muito inseguros na UFJF em comparação a 45,1% das alunas. “Ser mulher é estar exposta a situações de maior vulnerabilidade, ainda mais se falarmos de mulheres negras, pobres, mulheres lésbicas e trans. Andamos com medo, deixamos de fazer atividades, mudamos nossa rota e a nossa rotina; na UFJF, evitamos os escadões, evitamos andar à noite ou andar sozinhas, principalmente nas áreas comuns, como os portões, pontos de ônibus e estacionamentos”, observa Célia. Segundo a pesquisadora, de modo geral, praticamente a metade (47,2%) dos e das estudantes da instituição já denunciou ou conhece alguém que tenha denunciado uma situação de violência contra a mulher na UFJF.
Do contingente ouvido pela pesquisa, dentre as pessoas que fizeram a denúncia, 11,7% procuraram o Diretório Central dos Estudantes (DCE), os centros e diretórios acadêmicos (CAs e DAs) ou os coletivos da universidade. As coordenações de curso vêm em segundo lugar (11,2%). Ou seja, procura-se em primeiro lugar os pares estudantes ou a instância mais próxima do corpo discente (no caso, as coordenações). As demais instâncias da UFJF também são acionadas, mas em menor escala: ouvidoria geral (8,7%), ouvidoria especializada (3,2%) e a direção da unidade (2,5%). As polícias Civil e Militar também receberam as denúncias (7,8%).
“Sabemos que, por diversos motivos, muitas mulheres não formalizam denúncias pelo medo de represálias e do comprometimento não só de suas carreiras e vidas acadêmicas, como também de seus empregos. Ocorre que a ausência da formalização da denúncia e, consequentemente, da apuração dos fatos, acaba gerando um ciclo de impunidade que se perpetua fazendo novas vítimas”, aponta Célia. A pesquisadora aponta ainda outro medo por parte das vítimas: serem duplamente violentadas. “A primeira violência vem do assédio a que foram submetidas e a segunda, pela descrença e desconfiança em relação ao conteúdo de suas denúncias, procedimento, infelizmente, recorrente nessas situações, que acaba por intimidar as vítimas e fazer com que um possível processo de apuração das denúncias não tenha continuidade.”
Para a pesquisadora, a UFJF já deu passos importantes no combate às violações relatadas, mas ainda há um longo caminho a ser percorrido. “A criação das ouvidorias especializadas de questões afirmativas, por exemplo, mostra uma preocupação institucional e enfrentamento. Por outro lado, pelos casos que temos acompanhado, ainda é preciso investir em formação, sobretudo nas pessoas que recebem e conduzem estas denúncias. Neste sentido, ainda há um despreparo, o que acaba com que os casos estejam submetidos à reprodução de estereótipos de gênero na aplicação das leis e condução dos processos. Além disso, trata-se de um assunto pouco falado abertamente e pouco estudado. Por isso, a urgência em promover cada vez mais espaços de discussão que possam culminar em estratégias de enfrentamento”, observa Célia.
Reconhecimento de situações de abuso ainda é confuso
Uma das estratégias da pesquisa, conforme a diretora do CPS, foi perguntar por atos específicos de violação, pois, muitas vezes o uso do termo “violência” era relacionado apenas à criminalidade nas ruas, delinquência, tráfico, terrorismo. “É aquela história de um beijo não dói, uma cantada não dói, uma mão na perna não dói, uma música ou brincadeiras nas festas acadêmicas e nos trotes não doem, uma foto íntima repassada sem autorização não dói. É importante saber como e com qual frequência a violência se dá. E elas têm nomes, e é preciso que se diga, que falemos sobre elas. São as ofensas, humilhação, assédio sexual, piadas, rankings, desqualificação, estupro, fotos na internet, difamação, cantada ofensiva, agressão física, empurrar, bater, passar a mão, ser obrigada a beber, drogada sem saber. São várias violências, algumas mais recorrentes, como o assédio e a intimidação da mulher, a violência psicológica, aquelas violências em que se é menos”, ressalta Célia Arribas.
Conforme o levantamento, apesar de alunos e alunas reconhecerem essas violências, ainda assim, 20,3% dos alunos e 17,2% das alunas não consideram violência a desqualificação intelectual das mulheres; 14,7% deles e 11,5% delas não acham que seja violência ser drogada sem consentimento; 12,7% dos alunos e 8,8% das alunas não acreditam que comentários com apelo sexual seja violência; ou repassar “nudes” sem autorização (eles: 14,3%; elas: 11,5%). Neste sentido, a pesquisadora reforça a importância do debate junto a toda a comunidade acadêmica. “Percebemos uma espécie de ‘gradação’ dos atos de violência, e que muitos deles nem eram reconhecidos como tal. É preciso nomear estas violências, para que vítimas saibam que as sofrem e também porque, muito frequentemente, os próprios autores não entendem que praticaram violações. Fala-se mais em violência sexual e física, mas as simbólicas e psicológicas ainda são pouco debatidas e impactam a vida destas alunas consideravelmente e em várias esferas.”
A pesquisa ouviu 633 estudantes universitários. Ainda conforme Célia, o levantamento surgiu a partir da confluência de interesses entre alunas da graduação em Ciências Sociais, que estavam cursando uma disciplina de Metodologia Científica, e a necessidade de produzir dados sobre o tema, a fim de embasar políticas. “Esperamos que os dados possibilitem a formulação de políticas internas e institucionais, com o objetivo de minimizar essas violências, para que tenhamos um ambiente com menos desigualdades entre homens e mulheres”, diz ela, que acredita no potencial da universidade como local de enfrentamento não apenas da violência em seu próprio ambiente, mas também em outros espaços sociais. ” A violência em ambiente universitário faz parte de um sistema maior, que compreende outras violências. Mas a universidade, como espaço de formação profissional e de produção de saberes, tem um discurso privilegiado junto à sociedade no combate ao sistema como um todo. Investindo em eventos para toda a comunidade acadêmica e também abertos à comunidade, acreditamos que esta consciência tenda a se multiplicar por outros contextos da sociedade. Por isso é tão importante abrir espaços de discussão e investir em estudos da área.”
Universidade investe em ações de enfrentamento
Em nota, a UFJF afirmou à Tribuna, via assessoria de imprensa, que “repudia toda e qualquer ação de assédio”. A instituição destacou, ainda, que “a atual gestão, para aprimorar e acolher de forma célere e cuidadosa as denúncias acerca de discriminação, preconceito, violência e opressão, encaminhou ao Conselho Superior a proposta de criação da Ouvidoria Especializada em Ações Afirmativas”, que foi aprovada em maio deste ano com a proposta de “constituir e articular ações próprias à sensibilização e mobilização da comunidade universitária para a convivência cidadã e social com as diversas realidades presentes na diversidade social (correlacionadas a gênero e sexualidade, à etnia, à tradição das culturas, e à vulnerabilidade socioeconômica)”. A universidade destacou, ainda, que, entre as funções da ouvidoria, encontram-se receber as denúncias de preconceito, violência e opressão vivenciadas no ambiente universitário, garantindo o sigilo dos envolvidos e envolvidas, e realizar acolhimento e encaminhamento para serviços de atendimento especializado na própria universidade ou em rede pública.
Também na nota, a UFJF esclareceu que as denúncias podem culminar em Comissões de Sindicância que, “de forma rigorosa e dentro dos procedimentos legais que orientam o devido processo administrativo”, garantem ampla defesa aos acusados, realizando as investigações necessárias. Ainda conforme a universidade, ao longo do processo administrativo, há um acompanhamento para que, se for necessário, sejam implementadas ações mais efetivas de proteção à vítima. Como resultado dos processos de apuração, a instituição destacou que já houve caso de demissão e de advertências dos denunciados. Após o trabalho da Comissão de Sindicância, todos os processos são enviados à Procuradoria Federal “para verificar se todos os preceitos legais foram atendidos e se há fundamentação adequada para a proposição final indicada pela referida comissão. Em seguida, o processo é encaminhado para a autoridade competente para, se for o caso, aplicar sanções previstas na legislação vigente”.
Além destes procedimentos, a instituição reafirmou ações que vem desenvolvendo no âmbito preventivo e educativo, como campanha para fortalecer as vítimas para que elas denunciem situações de assédio; elaboração de cartilha sobre violações e de como proceder; realização de palestras e reuniões de conscientização sobre a temática junto aos diferentes setores; articulação com coletivos e diretórios acadêmicos para recebimento de denúncias de assédio.
Questionada pela Tribuna, a universidade informou que “investe na instalação de câmeras em pontos estratégicos do campus e na instalação de telefones específicos para ligações de urgência. Além disso, tem seguido o Plano de Segurança desenvolvido para ampliar as ações de prevenção e proteção”. No que tange às possibilidades de enfrentamento à violência contra a mulher (e em outras esferas) fora do campus, a UFJF informou que contribui “a partir da promoção e organização de eventos, como seminários, encontros, congressos, palestras, etc, que levem à reflexão, ao debate e à conscientização sobre o(s) tema(s).”