Uma das principais dificuldades vivenciadas pelos assistidos da Fundação João Theodósio Araújo, conhecida como Associação dos Cegos, é a inserção no mercado de trabalho. O desafio passa, entre outras situações, pela derrubada do preconceito por parte das empresas e pela sensibilização dos empregadores. Pensando em maneiras de proporcionar outros caminhos, o Instituto Gourmet recebeu um grupo de 12 assistidos pela instituição para um workshop de pizza, que além de apresentar uma nova habilidade, ainda pode se consolidar como uma atividade que possa gerar renda.
As bancadas da sala de aula foram organizadas de forma a favorecer o aprendizado da técnica de maneira sensorial. Posicionados lado a lado, os alunos colocaram a mão na massa e aprenderam sobre medir a quantidade dos ingredientes, técnicas pra inserir os recheios e até noções de precificação do produto final. “A ideia surgiu e nós topamos, porque mudar a vida das pessoas é o que nós gostamos de fazer. Essas pessoas saem daqui com uma receita que pode ser facilmente reproduzida em casa, com produtos muito presentes em nosso cotidiano. Pensamos em tudo para que eles pudessem fazer as pizzas com o que têm em casa. Se eles quiserem, com a receita de pizza, eles conseguem empreender”, explica William Venceslau, gerente comercial do Instituto Gormet. A troca de saberes, proporcionada pela atividade, foi destacada por ele como diferencial. “Pensamos que eles vinham buscar conhecimento, mas somos nós que saímos inspirados com suas histórias de vida.”
No grupo de aprendizes, José Eduardo Valadão, 56 anos, se destacava por dominar o gestual de boa parte do processo de produção da pizza. Ele contou que a mãe dele o ensinou a cozinhar e ele costumava lidar com os preparos culinários antes de perder a visão, há cinco anos. “Eu sei um pouco de cozinha e há muito tempo estava querendo aprender a fazer a massa de pizza. Quando fizeram o anúncio de que ia acontecer a aula, me inscrevi. É uma experiência muito boa.”
Para Marilene Ferreira, 54, a oportunidade foi um privilégio. “Eu ficava em casa sem estímulo para fazer nada, desde que fiquei cega, há seis anos. Quando entrei na Associação dos Cegos, ela se tornou uma segunda casa. Fiz amizades, tenho minhas atividades e saí daquela pasmaceira. Antes era só ficar em casa na escuridão, agora eu saio sozinha. Então, essa atividade é uma experiência única. Nunca fiz uma pizza na vida e foi muito prazeroso. Agora é esperar a hora de degustar.”
Confira vídeo com audiodescrição:
Rotina de atividades
Em suas rotinas na Associação dos Cegos, os participantes têm entre seus afazeres um espaço para Atividades da Vida Diária (AVD), na qual eles aprendem a lidar com as tarefas dentro de casa. As que incluem organização, limpeza, arrumação e a culinária. Essa última, a preferida deles, segundo a assistente social da Fundação, Maria Rachel Miranda. “Eles sempre pedem. Estavam tão empolgados, que vieram do prédio da Associação até aqui a pé. Foi interessante ver o processo desde o início, de maneira detalhada. As pizzas que eles fizeram ficaram lindas e muito gostosas.” Sobre a oportunidade de fortalecer uma forma de gerar renda, Rachel comenta que é importante que eles não fiquem condicionados a esperar uma vaga em empresa, embora a Fundação tenha um programa de capacitação para o mercado de trabalho, denominado “Aprender para ser”. “As empresas ainda vêm os deficientes visuais como improdutivos, mas isso não é verdade. É mais uma porta que se abre, porque no momento em que eles se capacitam, eles podem trabalhar em uma pizzaria, por exemplo.”
Reforço na autoestima
Os efeitos da ação não eram verificáveis apenas pela habilidade que comprovadamente ganhou cheiro, sabor e texturas. Mas também podiam ser medidas pelos sorrisos e a expressão de satisfação dos participantes, assim como no empenho demonstrado no tato, na busca das mãos pelos ingredientes e pelo gesto certo para chegar ao produto final. Inclusive, a impaciência de mãos que se moviam com ansiedade, aguardando o momento de cortar o alimento já assado, podia ser lida como um sinal da ansiedade.
“Eles se sentiram importantes. Chegaram à conclusão de que também são capazes e podem mostrar isso para as outras pessoas. Alguns deles demonstram felicidade por voltar a fazer coisas que eles estavam habituados a fazer antes de perder a visão. Alguns deles ficaram cegos ao longo da vida e isso dificulta muito, é bem diferente de quem já nasce com a deficiência”, diz Rachel.
O professor Rogério de Araújo já ministrou aulas para alunos com diversos tipos de deficiência, entre elas a visual e auditiva. Ele afirmou que para se preparar para esse tipo de trabalho, precisa aprender com as pessoas. “Eles veem com as mãos, então, enchergam duas vezes e, dessa forma, conseguem fazer qualquer coisa. Admiro muito essa galera, porque eu moro perto da Associação. Vejo como eles se envolvem em todas as atividades e isso me inspira muito.” Ele ensinou a receita usando pesos e medidas de forma acessível, com o auxílio de colheres e xícaras.
Bem Comum
Responsável pela ponte entre a Associação dos Cegos e o Instituto Gourmet, a Prefeitura, por meio do Projeto Bem Comum, destacou que priorizar a inclusão é o objetivo da proposta. “Ouvimos deles sobre essa garra, a vontade de fazer. Percebemos que essas pessoas estão totalmente disponíveis, com vontade e desejo de se tornarem cada vez mais produtivas. Elas estão correndo atrás. Partiu deles o interesse em vir. Eles chegaram aqui sozinhos. E apenas pessoas com muita vontade de mudar os cursos de suas vidas são capazes de fazer isso. Isso reverbera na associação, entre as outras pessoas com as quais eles convivem e também nas famílias e nas comunidades nas quais eles estão inseridos”, destacou a secretária de Comunicação Social, Sabrina Santos.