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‘Me chame pelo meu nome’: retificação é direito que visa à inclusão

LGBT luta freepik
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Gabriela Vitória Machado literalmente traz no nome a sensação que vive agora. Aos 31 anos, seu nome e gênero estão reconhecidos nos registros civis, o que para ela é um sonho desde que se descobriu uma mulher transgênero, ainda aos 18. Para a sobrinha de 8 anos, ela já era conhecida como tia Gabi. Agora também para o restante das pessoas ela reivindica: me chame pelo meu nome.

A retificação do nome de pessoas transexuais e travestis no Brasil foi um direito conquistado em 2018. Com o tempo, mais pessoas estão conseguindo ter acesso a essa possibilidade, que, para além da documentação, reflete como a pessoa vai ser reconhecida em diversos âmbitos.

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Gabriela teve nome e gênero reconhecidos nos registros civis (Foto: Arquivo pessoal)

Gabriela sempre se viu como alguém afeminada. Quando vestiu também “roupas femininas” enxergou no reflexo do espelho a mulher que é. Mais do que se identificar naquela imagem, ela encontrou também sua identidade. A princípio sua família não concordou, porém, eles a apoiaram. No alicerce familiar, de amigos e da sua religião, ela revela que, hoje, após conseguir o registro civil com seu nome, sente-se vitoriosa.

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Até a conquista, um longo caminho foi percorrido. Gabriela Vitória, assim como outras pessoas transgênero, já ficou constrangida pelo documento destoar de sua aparência feminina. Algo que hoje ela fica aliviada por não ter que reviver. “Chegou, para mim, o tempo de transformação, que possa chegar a outros também.”

Raphael aguarda alteração de documentos nos próximos dias (Foto: Arquivo pessoal)

Raphael Muniz, 36, compartilha a mesma felicidade. Ainda nesta semana, ele vai ter os documentos retificados. Aos 34 anos, iniciou sua transição. Ele começou a tomar hormônios e ter uma aparência masculina, condizente com o gênero ao qual se identifica. Entretanto, os percalços se fizeram presentes desde o início, afirma. “É difícil o acesso a esses hormônios e o custeio de tudo isso.”

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Para ele, é uma evolução dar o passo rumo à retificação do nome. A aparência masculina com o documento civil ainda no feminino o levou a situações de transtorno. Como em entrevistas de emprego e consultas médicas. Para além do direito alcançado, na avaliação de Raphael, é uma reafirmação. Não que ele precise, destaca, mas agora é oficial. “Eu estou muito feliz e ansioso, vai mudar minha vivência. Eu nasci Raphael mesmo que não constasse no documento.”

Retificação como passo para a inclusão

Diferente do nome social, que garante aos indivíduos serem reconhecidos pela forma com a qual se identificam (independente do que consta no registro civil), a retificação do nome aparece como um próximo passo rumo à inclusão. Por meio desse processo, a pessoa altera os documentos e começa a responder, em todos os meios, por uma identidade que reflita, de fato, seu gênero.

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Para viabilizar o acesso de pessoas trans à retificação, a Associação de Travestis, Transgeneres e Transsexuais de Juiz de Fora (Astra-JF) lançou uma parceria junto ao podcast Não Inviabilize chamada “Dando o nome”. Por meio do projeto, que ocorre juntamente ao Centro Integrado de Atendimento à Mulher (CIAM), o procedimento na cidade é custeado e mediado pela entidade. Contudo, as vagas são limitadas por questões orçamentárias.

Astra, fundada por Dandara, custeia processos de retificação (Foto: Arquivo pessoal)

A princípio, 85 vagas foram abertas. Destas, 30 estavam disponíveis até sexta-feira. Dandara Felícia, ativista pelos Direitos Humanos e fundadora da Astra, conta que retificações já foram feitas e outras estão em curso. O trabalho para tornar isso possível, entretanto, é de longa data.

Ainda em 2018, Dandara fez uma campanha e conseguiu angariar verba para um procedimento. Já no ano passado, com o fundo de R$ 45 mil do Elas+, várias outras retificações foram feitas. Neste ano, a oportunidade veio por meio da parceria com a podcaster Déia Freitas.

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Para se inscrever, o indivíduo pode ir até o CIAM, localizado na Câmara Municipal de Juiz de Fora, e formalizar o interesse. A partir daí, a pessoa entra na fila e todo mês, até março de 2024, sete pessoas serão selecionadas para serem contempladas.

Minas Gerais não possui gratuidade da retificação

Embora a mudança de nome e gênero ocorra atualmente sem a necessidade de ação judicial, ainda existem alguns embargos. Por trás da garantia da retificação a pessoas com mais de 18 anos, o processo ainda é pouco acessível para muitos. Júlio Mota, 28, advogado e homem trans, atua na defesa do direito de pessoas trans e travestis e conta que no artigo nono do provimento da retificação está previsto que cabe a cada Estado e ao Distrito Federal executar a gratuidade do serviço. Procurada, a Secretaria de Estado de Governo não se posicionou sobre o assunto até o fechamento desta edição.

Além disso, no entendimento do advogado, a própria Constituição prevê que o serviço não pode ser cobrado. “O inciso LXXVI do artigo 5º da Constituição garante o direito à gratuidade dos registros públicos de nascimento e de óbito. Dessa forma, todos podem exercer a cidadania sem que sejam excluídos os indivíduos mais pobres que não teriam condições de pagar pela expedição de documentos por conta de sua situação financeira.”

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Segundo dados compilados pelo Registro Civil das Pessoas Naturais do Estado de Minas Gerais (Recivil), de janeiro a abril deste ano, 112 pessoas trocaram o gênero em cartórios. Destas, quatro escolheram não trocar o nome. Já em Juiz de Fora, foram apenas duas pessoas que realizaram ambas as alterações nos registros civis. Na cidade, o valor para a retificação é de, aproximadamente, R$ 600, conforme levantamento feito em cartório da cidade.

Outros motivos que explicariam a baixa taxa, segundo Júlio Mota, são a burocratização do processo, a alta demanda de documentos pedidos no provimento e o valor elevado na cobrança do serviço.

Uma conquista, porém, é que após mobilização de diversos setores LGBTQIA+, o atual Governo decidiu extinguir os campos de ‘sexo’ e ‘nome social’ na nova Carteira de Identidade Nacional (CIN), que substitui diversos documentos como RG. A medida, no entanto, ainda não está em vigor. O decreto que regulamenta a mudança tem previsão de ser publicado no final de junho. A partir daí, todos os novos documentos serão emitidos no novo modelo.

Mesmo após a retificação, os desafios continuam

Apesar dos direitos usufruídos pelas pessoas trans, os obstáculos persistem. Júlio Mota avalia que, mesmo após a retificação do nome, existe uma segunda fase: o requerimento para que ele seja alterado também no banco de dados das empresas.

Contudo, há casos em que as instituições privadas não atualizam as informações, chamando os indivíduos pelo seus ‘nomes mortos’. Além de causar constrangimento, esse quadro é passível de processos.

Por perceber questões a partir da sua própria trajetória, Júlio escolheu atuar na defesa do nome de outras pessoas trans. Enquanto advogado, ele enfatiza que é a partir do nome que são desenvolvidas todas as relações sociais e, como homem trans, Júlio avalia que ter a identidade respeitada impacta diretamente na qualidade de vida.

Ativismo trans

Durante a pandemia, a Astra-JF surgiu e se tornou um movimento social regularizado no ano seguinte. A idealizadora Dandara Felícia é conhecida na cidade pelo ativismo político pelas causas LGBTQIA+. “Assim como Guimarães Rosa dizia que o que a vida pede da gente é coragem, a gente está nesse lugar para que outras mulheres, outras transvestigêneres, LGBTQIA, vejam uma alternativa à determinação da vida.” Dandara acrescenta que “ver uma mulher lutando por esses espaços faz com que as pessoas tenham coragem para lutar pelos seus espaços também.”

Para o Dia Internacional contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia, celebrado no dia 17 deste mês, Dandara reivindica o respeito em todas as vivências e individualidades. “Que o mercado de trabalho nos aceite e nos respeite como seres humanos. Que o Brasil deixe de ser o país que mais mata transvestigêneres no mundo.”

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