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Medidas protetivas em JF aumentam quase 20% na pandemia

casa da mulher fernando priamo
Pesquisas mostram agravamento das investidas físicas e psicológicas promovidas por homens contra suas companheiras (Foto: Fernando Priamo)
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A quantidade de vítimas de violência doméstica que recorreu a medidas protetivas aumentou consideravelmente durante a pandemia em Juiz de Fora. De março a dezembro de 2020, a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher solicitou à Justiça 986 ações restritivas, contra 832 no mesmo período de 2019, um incremento de 18,5%. Já neste ano, foram 286 procedimentos do tipo realizados pela Polícia Civil até o último Dia Internacional da Mulher (8), elevando para 1.272 o número de mecanismos de proteção utilizados por quem precisou afastar agressores de seus lares ou do convívio familiar desde a chegada do coronavírus, há um ano. Os dados locais reforçam pesquisas nacionais sobre o agravamento das investidas físicas e psicológicas promovidas por homens contra suas companheiras neste período atípico, de distanciamento social e maiores dificuldades financeiras.

“A mulher ficou mais próxima do seu companheiro, do seu agressor (com o isolamento social). Assim como outros grupos vulneráveis, como as idosas, que muitas vezes são vítimas dos próprios filhos, e as meninas, que, na maioria dos casos, são abusadas por parentes. Isso preocupa muito e acredito que ainda haja muita subnotificação”, avalia a delegada Ione Barbosa, titular da Especializada e presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher. “A vítima está tendo menos chance de procurar a delegacia, até mesmo de discar o 190 ou usar a internet, porque está o tempo todo perto de seu próprio agressor e sendo vigiada. Muitas vezes perdeu o emprego ou está trabalhando on-line. Acaba aderindo às chantagens e não se vê com força suficiente para denunciar”, pontua Ione.

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De fato, os números gerais de violência doméstica e familiar contra a mulher divulgados pelo Governo de Minas, com base nos Registros de Eventos de Defesa Social (Reds), apontam na direção da possível subnotificação: de março a dezembro de 2020 foram contabilizadas 3.595 ocorrências, contra 4.038 nos mesmos dez meses do ano anterior, um declínio de quase 11% . “A grande parte da violência ocorre na clandestinidade e não chega para nós. Aquela que vai a um posto da PM ou à delegacia já ultrapassou várias barreiras, mas muitas mulheres não conseguem”, diz Ione.

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Desde o início da pandemia, em março do ano passado, a Delegacia da Mulher registrou mais de 460 ocorrências de lesão corporal, pelo menos cem delas apenas neste ano. São quase 1.500 ameaças desde a chegada do coronavírus, e mais de 300 delas ocorreram em 2021. Na comparação dos períodos de março a dezembro de 2019 e 2020, os números mantiveram-se praticamente estáveis, com 32 registros a menos de lesão no ano passado, enquanto as ameaças cresceram, com 18 comunicações a mais.

Ainda foram contabilizados 15 estupros e 23 estupros de vulneráveis naqueles dez meses de epidemia em 2020. Os números superam os de 2019, quando houve 13 e 19 casos, respectivamente. Já neste ano, foram denunciados dez estupros no total, sendo nove deles de vítimas vulneráveis (menores de 14 anos ou consideradas incapazes de se defender de qualquer ato libidinoso ou conjunção carnal).

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Mulheres sofrem em cárceres privados

Um caso emblemático de como o momento atual deixou as vítimas mais acuadas foi o cárcere privado de uma mulher, de 32 anos. Sem acesso a celular, na manhã do dia 2 de fevereiro ela teve uma brecha e conseguiu sair da residência onde era mantida, no Retiro, Zona Sudeste, para pedir ajuda na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher. Mesmo com um filho de 2 meses, ela estaria sendo sistematicamente violentada pelo pai do bebê, inclusive com pauladas.

Diante do risco de morte, a delegada Ione Barbosa solicitou o acautelamento do agressor, um adolescente, 17. Conforme as investigações, ele conseguia manter a companheira em casa mediante ameaças de matá-la e de também fazer mal aos familiares e aos outros filhos dela. Além do recolhimento do suspeito ao Centro Socioeducativo, a delegada solicitou medida protetiva à vítima, para resguardar a vida dela. “Não tenho a menor dúvida de que ele poderia matá-la. E têm vários outros casos acontecendo neste momento”, alerta a policial.

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Exatamente um mês depois da ocorrência no Retiro, outro caso chamou a atenção, desta vez em Benfica, Zona Norte. Um homem, 37, foi preso em flagrante por manter em cárcere sua esposa, 31, e dois filhos, de 8 e 12 anos. A denúncia feita ao 190, da Polícia Militar, informava que o suspeito havia deixado seus familiares presos no banheiro. Mantendo contato com ele, os militares entraram com escudo balístico e usaram pistola de choque para imobilizá-lo. Uma faca usada para ameaçar a família foi apreendida.

Denúncias

Como no episódio acima, Ione lembra a importância de vizinhos, parentes e amigos também denunciarem suspeitas de violência doméstica. Um dos principais canais é o Ligue 180, da Central de Atendimento à Mulher, que funciona 24 horas por dia, orientando e fornecendo alternativas para que a mulher se proteja do agressor. “Precisamos nos colocar no lugar do outro. Algumas pessoas temem represálias, mas o disque 180 é completamente sigiloso. Você poderá estar salvando uma mãe. Quanto mais denúncias formalizadas tivermos é melhor, porque muitas mulheres sofrem caladas. Nosso desafio é encontrá-las antes que seja tarde, porque os feminicídios têm aumentado.”

“A mulher ficou mais próxima do seu agressor (com o isolamento social)”, diz a delegada Ione Barbosa (Foto: Fernando Priamo)

Apesar de haver vários canais para denúncia, como o Disque 100, voltado para direitos de grupos vulneráveis e violações de direitos humanos, e o aplicativo MG Mulher, as políticas públicas, inclusive em âmbito nacional, não estão sendo suficientes, na opinião da delegada. “Muito mais importante que o combate, é o trabalho de prevenção e reeducação. A violência doméstica nos faz lembrar todos os dias que precisamos traçar estratégias para acolher e encorajar essa mulher para que ela não se submeta, se fortaleça e denuncie, saindo daquela situação de encarceramento físico e psicológico “, enfatiza Ione.

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Em apenas um dia de plantão cumprido recentemente por ela na 1ª Delegacia Regional, em Santa Terezinha, havia três casos de violência doméstica em meio a dez flagrantes. Dois deles ainda incluíam descumprimento de medidas protetivas. “Quem descumpre uma medida judicial é capaz de matar. A mulher precisa se posicionar no primeiro momento. Senão, o próximo passo pode ser agressão ou possível feminicídio.”

Golpes com capacete e braço quebrado

Outra ocorrência que chamou a atenção da delegada Ione Barbosa foi registrada no dia 21 de fevereiro na Zona Leste. Uma mulher de 30 anos foi agredida com golpes de capacete e faca pelo companheiro dela, 34, que havia chegado bêbado em casa. A vítima estava dormindo e acabou sofrendo fratura no braço para se defender dos golpes e não ser atingida no rosto. Não satisfeito e ainda muito agressivo, o homem disse que iria matá-la. Ele buscou uma faca na cozinha, atacando a vítima, que voltou a se defender com o braço, sofrendo uma perfuração perto do ombro. Ela ficou com várias lesões pelo corpo. Depois de ser medicada no HPS, a mulher procurou a delegacia. “Ela já havia solicitado medida protetiva, mas ele foi atrás, e ela deu uma segunda chance, que quase a matou.” Diante da gravidade, foi solicitada a prisão preventiva do suspeito.

Para a policial, um grande avanço recente em relação às medidas protetivas é o acompanhamento psicossocial do agressor, conforme a Lei 13.984/2020. A norma também prevê programas de recuperação e reeducação. Ione ressalta que, dentre todas as medidas de certa forma punitivas, essa busca recuperar o indivíduo, traçando comportamento diferente daquele imposto pela cultura patriarcal. “Muitos acham normal agredir a mulher, por isso essa mudança de visão é necessária.”

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Atendimentos na Casa da Mulher despencam 75%

A hipótese de subnotificação da violência doméstica na pandemia também pode ser mensurada pelos atendimentos na Casa da Mulher Maria da Conceição Lammoglia Jabour, que despencaram de março a dezembro de 2020, em relação aos mesmos meses de 2019: foram apenas 522 relatos de agressões físicas, psicológicas, patrimoniais, morais ou sexuais, contra 2.077 no período anterior, uma redução de quase 75%.

“A queda nos percentuais nos leva a crer que cresceu a subnotificação dos casos de violência contra mulheres”, avalia Fernanda Moura, coordenadora da Casa da Mulher (Foto: Arquivo Pessoal)

Segundo a coordenadora da Casa, Fernanda Moura, além da diminuição das denúncias por uma série de fatores pessoais das vítimas, a drástica queda pode ser explicada também por questões administrativas: nos meses de abril e maio do ano passado não foram realizados atendimentos, devido às restrições da pandemia; em novembro não houve registros entre os dias 9 e 20 por causa de atestado de Covid-19 na equipe gestora, e nem do dia 25 ao 30, por conta da mudança de endereço da unidade. Além disso, também deixaram de ser feitas anotações de violência física e sexual, que foram encaminhadas diretamente para a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, devido à necessidade de exames de corpo de delito, por exemplo.

Depois de sair do Jardim Glória, região Central, em novembro do ano passado, e funcionar por poucos meses na Rua Fonseca Hermes, no Centro, a Casa da Mulher ganhou novo endereço e, desde o início do mês, funciona no antigo prédio da Defesa Civil, na Avenida Garibaldi Campinhos, 228, no Bairro Vitorino Braga, Zona Sudeste.

“A queda nesses percentuais nos leva a crer que cresceu a subnotificação dos casos de violência contra mulheres durante a adoção de medidas de isolamento social”, ressalta Fernanda. Ainda assim, segundo ela, o local, que também abriga a Delegacia da Mulher, continua fazendo um atendimento especializado e humanizado às vítimas na cidade. “O espaço é referência no tratamento e enfrentamento dos casos, oferecendo atendimento psicológico e jurídico às vítimas de violência sexual, física e psicológica, seja ela esporádica ou recorrente, e articula os serviços que integram a rede de atendimento às mulheres em situação de vulnerabilidade social, em função da violência de gênero.”

Psicóloga dá dicas para identificar abusos e ajudar vítimas

A psicóloga Elza Lobosque enfatiza que a situação de confinamento domiciliar tem demonstrado, como possível efeito colateral, consequências perversas para as milhares de mulheres em situação de violência doméstica, já que muitas foram obrigadas ao confinamento com seus agressores, algumas em verdadeiro cativeiro. Com isso, a subnotificação acontece pelas dificuldades que parte das mulheres encontra para se comunicar, acessar os canais de denúncia e as redes de proteção, mesmo que virtualmente, ou chegar até as delegacias e postos de polícia. “É preocupante, visto que esses registros são fundamentais para romper o ciclo da violência e, consequentemente, conter a violência física e o feminicídio”, aponta a docente de psicologia e supervisora do Centro Universitário Estácio Juiz de Fora.

Também mestre em avaliação psicológica e conselheira do XVI Plenário do Conselho Regional de Psicologia, Elza lembra que a ocorrência de feminicídio aumentou no Brasil de forma expressiva. “Em razão desse cenário, foi sancionada a Lei 14.022/20, que dispõe sobre medidas de enfrentamento à violência doméstica e familiar durante a pandemia do novo coronavírus. A norma torna essenciais os serviços relacionados ao combate e à prevenção das agressões, tanto contra mulheres, quanto contra idosos, crianças, adolescentes e pessoas com deficiência.”

“Políticas públicas de prevenção são necessárias para que a violência contra a mulher seja contida e não chegue ao feminicídio”, alerta a psicóloga Elza Lobosque (Foto: Arquivo Pessoal)

Segundo ela, além das medidas, é urgente uma mudança cultural. “Políticas públicas de prevenção são necessárias para que a violência contra a mulher seja contida e não chegue ao ponto mais negativo, o feminicídio, que é, obviamente, um dano irreversível, irreparável”, enfatiza a psicóloga, lembrando que a violência é estrutural e enraizada, por isso se reproduz de forma automática, natural. “É necessária a mudança de mentalidade da própria mulher. Se 51% da população do mundo é formada por mulheres, o restante é de homens criados por mulheres. Com essa educação machista, em que a mulher é relegada, em geral, a um papel secundário, a sua maior participação na produção e atividades econômicas, muitas vezes, gera uma reação violenta, física e/ou emocional.”

O termo violência doméstica não costuma ser utilizado pela psicóloga diante de uma possível vítima, para evitar estereótipos e promover a quebra do silêncio, que é conivente com o agressor. “Trabalhamos com dicas para que ela perceba que está em um relacionamento abusivo. Outro ponto é fazê-la entender que todas as mulheres são vítimas de violência de gênero e que a violência doméstica é apenas um ponto de algo maior, que inclui também o assédio, as exigências de beleza e sexualidade, etc. Você não está isenta da violência só porque não tem um parceiro que te bate. Uso desse argumento para que a pessoa entenda que ela não está sozinha e que aquilo não acontece só com ela.”

Elza ressalta que a natureza da violência doméstica é a clandestinidade, daí a importância de a vítima tomar providências o quanto antes, já que muitas agressões não deixam marcas físicas. “É muito raro que haja testemunhas presenciais, por isso o depoimento da vítima tem grande valor.” Mais obscura ainda é a agressão psicológica. “Pode ser difícil de identificar, pois muitas vezes é mascarada como ciúmes e caracterizada por controle, ofensas e humilhações. A vítima tem dificuldade em romper a relação, pois o abuso psicológico ocorre de maneira gradual, mas constante, minando a autoestima e anulando a pessoa.”

Como explica a psicóloga, ao minar a autoestima da mulher, o companheiro a faz acreditar que aquela relação é a única possível, o que a deixa sem forças para romper e a torna mais suscetível a tolerar agressões. Segundo a especialista, são sinais de violência psicológica: se sentir incapaz de ter sucesso na vida; ter dúvidas sobre sua capacidade intelectual; se sentir inferior ao companheiro; se sentir oprimida; perder o ânimo diante da vida; sentir culpa pelas discussões e pelos problemas na relação; esconder de amigos e parentes ou justificar certos tipos de comportamentos do parceiro. “Às vezes, a mulher só consegue perceber que sofreu esse tipo de abuso quando consegue sair da relação tóxica. O que, infelizmente, é triste, pois o tempo em que foi submetida a essa situação pode deixar sequelas. Dependendo de como foi afetada, é necessário buscar ajuda psicológica.”

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