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A cada semana de 2023, um vulnerável foi vítima de estupro em Juiz de Fora

JUIZ DE FORA FERNANDO PRIAMO
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Ao longo de 2023, a cada semana um vulnerável se tornava vítima de estupro na cidade. É o que revela o levantamento da reportagem acerca dos 49 casos contabilizados pela Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), entre o período de janeiro e novembro. Já no mês seguinte, somente a Polícia Militar (PM) – um dos órgãos que fornece os dados à pasta estadual – registraria mais dois casos. Com isso, Juiz de Fora ultrapassou as taxas desse tipo de crime registradas nos últimos nove anos.

São considerados vulneráveis os menores de 14 anos, portadores de enfermidades ou aqueles que tenham a capacidade de resistência diminuída. Quando esse grupo passa a ser sujeito ao constrangimento e violência por meio de conjunção carnal ou atos libidinosos, é que se classifica como estupro de vulnerável. A complexidade da questão é que essas vítimas são abusadas, na maior parte dos casos, por pessoas com as quais convive e confia: 73,4% das pessoas violentadas em Juiz de Fora em 2023 conheciam os abusadores, apontam os números da Sejusp.

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A relação considera a afinidade entre a vítima do evento e o autor. Foram contabilizados, na cidade, casos em que as crianças e demais vulneráveis eram vizinhas, netas, enteadas e filhas dos abusadores, por exemplo. Nesse panorama, apenas em nove casos não havia qualquer tipo de relacionamento, e em outros quatro casos esse critério era ignorado.

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Confiança quebrada

Para o professor do Programa de Pós-Graduação em geografia da Universidade Federal de Juiz de fora Wagner Batella, os dados de Juiz de Fora expõe uma conjuntura que está presente também no restante do país. “Isso demonstra que as vítimas costumam manifestar uma relação de confiança no agressor, que depois é quebrada quando o suspeito se torna um predador sexual”, explica.

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A relação, a principio, de confiança, faz com que o vulnerável esteja sujeito ao agressor – que, segundo a Sejusp, são em 95% dos casos homens entre 35 e 64 anos e que integram o círculo de convivência do vulnerável. Wagner acrescenta que esse também é um dos fatores que dificultam a notificação. “Porque a pessoa, muitas vezes, não tem consciência de que foi vítima de algum abuso. Eu já ouvi relatos em que a pessoa vítima de abusos repetidos enxerga com naturalidade a situação. Fica mais difícil que o braço do Estado chegue a essas pessoas.”

Quem são os sobreviventes dessas violências

Segundo a Superintendência Regional de Saúde (SRS) de Juiz de Fora, somente no último ano ocorreram 170 casos de violência sexual – que abarca ações além do estupro – no município, 138 contra mulheres. Destes, 72 crimes foram cometidos contra crianças e pessoas no início da adolescência, na faixa etária entre 1 a 14 anos. Isso representa 52% desses abusos.

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Conforme observa o Wagner Batella, esses dados, extraídos do Sistemas de Informações de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde, relatam a quantidade de ocorrências médicas neste sentido, mas não pontuam quantas dessas pessoas acima de 14 anos também seriam vulneráveis; com isso, os índices deste recorte podem ser ainda maiores.

Na adolescência, de 15 a 19 anos, outras 19 ocorrências foram registradas pelo levantamento do banco de dados federal. Na fase adulta, são somados 45 casos de abuso sexual contra pessoas entre 20 a 49 anos. Há, ainda, dois casos em que pessoas entre 50 e 59 anos e 70 e 79 foram as vítimas, segundo informou a superintendência.

Os mesmos números podem ser identificados no Boletim de Vigilância das Violências, feito pela Prefeitura de Juiz de Fora, na publicação do primeiro volume do ano de 2023. A base de dados para o mapeamento de violências sexuais do município também usa os dados do Sinan. Na prática, tais dados simbolizam que há um número importante de casos de estupro de vulnerável não listados, para além das subnotificações.

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Aumento das ocorrências

Contudo, é possível enxergar uma progressão no número bruto de ocorrências consumadas, conforme demonstram os dados da Sejusp e da Polícia Militar sobre os 51 casos registrados em 2023. Foram 17 casos a mais do que em 2022; os índices superam também o período da pandemia de Covid-19, quando houve um aumento dessas ocorrências.

Em 2021, foram 44 casos; e em 2020, 47, um crescimento considerável diante dos 30 registros de estupro de vulnerável listados em 2019 e dos 29 do ano anterior. Contudo, em 2017, período de aumento geral de violência na cidade, o patamar de ocorrências quase se equiparou com as encontradas em 2023, sendo 49 registros. Com 38 casos em 2016 e 48 em 2015, somente no ano de 2014 os índices superaram os atuais: foram 64 casos naquele ano.

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Recorte de renda, raça e gênero das vítimas

Ainda que haja variação ao longo dos anos, o crescimento de casos registrado em 2023 pode ser atribuído ao aumento de denúncias e de casos propriamente ditos. É o que aponta Wagner Batella. O aumento de canais para denúncias após o fim da pandemia influenciou também pode ter influenciado na subida das taxas. Por outro lado, as consequências daquele período propõem também um possível aumento de casos. “Como as mudanças da estrutura social, maior empobrecimento e aumento da vulnerabilidade social”, explica. Nesta perspectiva, ele acrescenta a necessidade de realizar um corte de renda, raça e gênero das vítimas.

“Essas vítimas são, em grande maioria, meninas, e se você olhar onde as populações negras estão na cidade, sobrepõem-se raça e renda. Os pretos e pardos tendem a estar em grande medida nas periferias. Nos dados sobre a violência sexual durante a pandemia, foram essas populações que passaram maior dificuldade. Seja pela necessidade de ficar em casa, pelo abalado na estrutura familiar com o desemprego… Então um estresse social muito grande pode se tornar um potencial gerador de atos de violência”, analisa Batella.

Nesse sentido, as condições precárias de habitação e divisão de ambientes com potenciais abusadores, por exemplo, significariam um reflexo da pobreza sobre os casos de violência. O pesquisador sublinha, todavia, que isso não significa que os crimes dessa natureza estejam centralizados apenas nas periferias. “Na classe média também vemos um tabu em levar essas denúncias até as autoridades.”

Pretas e pardas

O boletim da Secretária de Saúde de Juiz de Fora, em articulação com a Secretaria de Segurança Urbana e Cidadania, corrobora a fala do professor. As regiões de concentração das residências das crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, entre o período de 2018 a 2022, foram a Zona Leste e a Zona Norte de Juiz de Fora.

Quanto aos bairros com mais casos, em primeiro lugar desponta o Linhares, seguido de São Pedro e Progresso, respectivamente com 26, 17 e 14 vítimas em cada um desses locais. A Tribuna solicitou à PM os dados equivalentes ao ano de 2023, mas não obteve retorno.

A SRS informou que, em relação ao perfil das vítimas de violência sexual, em 2023, cerca de 45%, a maioria, se identificavam como pardas e 17,65% se identificavam como pretas – o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatistica (IBGE) considera que, juntos, esses dois grupos formam a população negra no Brasil. Aproximadamente 36% das vítimas se identificaram como brancas e 0,59% como amarelas.

‘Dotar de confiança a quem quiser denunciar’

O caminho para modificar essa realidade violenta não é único, segundo Wagner Batella. “A segurança não é só uma questão de polícia, mas também de base comunitária”, diz sobre os dois pilares que acredita estarem entrelaçados para uma mudança nessas taxas. Em primeiro lugar aparece a relação entre as forças de segurança pública e a comunidade. Mas, outra integração que se faz necessária para enfrentar essa criminalidade é o contato da comunidade entre si.

Nesta esfera, o contato entre esses atores proporciona um “empoderamento da base comunitária”, o que, segundo Batella, representaria um fortalecimento de todo o corpo social. “Áreas onde atuam políticas públicas como a rede de vizinhos protegidos tendem a ser mais seguras, com a lógica de que um vizinho protege o outro.”

A rede de vizinhos é uma estratégia da PM em que as pessoas assumem o papel de “câmeras vivas”, em que todas se reúnem em prol do objetivo comum de garantir mais segurança. Essa lógica perpassa a observação do local em que mora e também o alertar em caso de anormalidades. De determinada forma, é sobre conhecer os hábitos dos demais e tecer contatos, como define a própria corporação.

O socorro está perto

Em contrapartida dos principais suspeitos conhecerem a vítima, são também as pessoas do círculo social do vulnerável que podem identificar possíveis sinais. Ainda que falar sobre o tema seja tido como tabu, refletir sobre essa problemática, tanto quanto conscientizar e realizar campanhas são meios empregados para o enfrentamento.

No que tange às campanhas em locais coletivos, o pesquisador revela como ações educativas em ambientes escolares contribuem para a notificação desses crimes. “Vários estudos mostram a dificuldade de captar alguns tipos de violência. E como você muda esse cenário? Dotando a pessoa de condições de segurança, para que ela se sinta confortável para fazer a denúncia”, explica.

Ele destaca que os órgãos voltados para a proteção de vulneráveis precisam ser conhecidos e que vítimas e familiares saibam a quem procurar diante desses casos, como os equipamentos de acolhimento. “Ao fazer a denúncia, o cenário muda, porque o agressor costuma ser aquele que está muito próximo. Então muitas pessoas encobrem esse tipo de violência por receio de passar mais dificuldades em caso da prisão do agressor. A importância da assistência social é ressaltada neste cenário.”

Apoio

O suporte para a vítima, como separação do abusador, estrutura de moradia e alimentação, são algumas das ações de apoio da assistência social. Podem ser adicionadas a elas, as iniciativas de vigilância e prevenção da SRS, recomendadas ao município. “Sensibilização e educação permanente dos profissionais da saúde sobre identificação do que é violência, notificação no Sinan de forma completa e correta e ações coletivas para prevenção das mesmas”, elencou a superintendência.

Outra estratégia é estabelecer parcerias interinstitucionais para prevenção da violência e promoção da cultura da paz, aprimorar os serviços de saúde a partir de dados que levem em conta as particularidades e índices da cidade e, por fim, o fortalecimento da rede, que vai de encontro ao estabelecimento de fluxos de encaminhamento para as vítimas receberem cuidado e apoio.

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