Uma repórter negra deveria estar escrevendo esta matéria. Mas o acesso à escolaridade e ao mercado de trabalho são apenas uma das muitas facetas do racismo histórico enraizado no Brasil. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), no segundo trimestre de 2018, a taxa de desemprego ficou em 9,9% entre os brancos, enquanto os índices para autodeclarados pretos e pardos, foi de, respectivamente 15% e 14,4%. A taxa de desemprego média no país todo foi de 12,4% no período. Minha branquitude, por si só, aumenta decisivamente as chances de ser eu quem escreve estas linhas. Por essas e outras disparidades históricas é que o Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, é tão fundamental, tanto para a população negra quanto também para pessoas não negras, conforme apontam, em entrevista à Tribuna, militantes de diversas gerações.
Para o funcionário público e coordenador do Movimento Negro Unificado da Zona da Mata (MNU Zona da Mata) Paulo Azarias, a data – criada em 2003 e instituída como feriado em mais de mil cidades – tem vários significados, sendo um deles de reparação histórica. “É um dia de luta, como todos os outros na vida de uma pessoa negra. Mas ele surge para denunciar a farsa de 13 de maio, e para que seja um marco da luta da população negra desde que o primeiro chegou ao Brasil até os dias de hoje. E ela é importante também para denunciar as tentativas de invisibilizar as discussões raciais neste país. E para a população não negra, o momento também é de reflexão, já que a problemática racial no Brasil também diz respeito a elas e suas posturas”, pondera.
Segundo a professora e militante Giovana Castro, a instituição do dia foi também importante para vários desdobramentos que levam à discussão de questões raciais, rompendo com um silenciamento histórico da temática no país. “Falar de racismo no Brasil sempre foi um tabu. A data existir e estar nos calendários oficiais de diversas cidades deixa nítido que somos um país que vive à sombra do processo escravocrata. As pessoas ‘pulam’ tranquilamente 300 anos de história e desconsideram que todo o processo de construção do Brasil como Estado Nacional foi realizado dentro deste sistema escravocrata. Para nós, negros e negras, é um momento de visibilidade da resistência, porque temos nossos direitos humanos constantemente ameaçados, basta uma mudança política para que os direitos que já temos, alguns assegurados em constituição, estejam ameaçados. E agora vivemos mais um momento destes”, observa a professora.
A estudante Andressa Silva, 20, também ressalta o caráter histórico da opressão vivida pela população negra, que se manifesta não apenas como violência e desigualdade social, mas em outros processos que afetam, entre outros aspectos, a autoestima dos negros e negras, que passam conforme ela destaca, por um “embranquecimento”. “Isso acontece sob a justificativa de hierarquização das raças, fundamentada na superioridade da raça branca. Essa concepção tem eco até os dias de hoje, agravado pelo soterramento da identidade e cultura negra na marginalidade. Em um país onde 56% da população se autodeclara negra, e a escravidão foi abolida em apenas 130 anos (isso significa que a geração de nossos bisavós viveu essa realidade). É fundamental a reflexão do que nos torna negros para além da definição do olhar do outro e dos estereótipos que nos foram impostos”.
‘Reivindicamos nossa humanidade’
Para a pedagoga Iuli Melo, 25, um debate fundamental que a data deve trazer, para todas as pessoas, independentemente da tonalidade da pele, é o que leva à compreensão de que a diferença não é sinônimo de desigualdade ou inferioridade, mas que existe, deve ser reconhecida e valorizada. “Nessa data, existe uma insistência no ‘mito da democracia racial’, alegando uma consciência humana ou a máxima ‘somos todos humanos’. Eu questiono esse olhar, quando a realidade brasileira, dados do genocídio da população negra que revelam que a cada 23 minutos morre um jovem negro no país. Quando a polícia confunde pipoca ou guarda-chuva com armas e drogas nas mãos pretas. Quando temos a polícia que mais mata e mais morre, e morre o policial negro, ou quando se perde um emprego porque o cabelo crespo ou a pele preta não condiz com a ‘imagem da empresa ou instituição’. Se somos todos humanos, porque não somos tratados como tais? Reivindicamos nossa humanidade na valorização de nossa diferença”, questiona.
Giovana enfatiza a necessidade de que a discussão sobre a questão racial e seus inúmeros desdobramentos não fique restrita ao Dia da Consciência Negra. “Eu costumo brincar que, quando chega novembro, começa o bingo de ativistas negros para realizarem falas e palestras. Eu normalmente costumo recusar convites de locais que eu sei que não se preocupam de fato com as desigualdades raciais e querem ‘fazer bonito’ no Dia da Consciência Negra”, diz ela, que, apesar disso, mudou sua postura neste ano. “Tenho notado as pessoas mais abertas e mais interessadas no diálogo. Acho muito que é por conta do risco de direitos de todos e todas ameaçadas com o cenário político atual do Brasil. Além disso, resolvi que falaria em todos os lugares que pudesse porque tenho muito medo de que este seja o último ano em que posso falar com tranquilidade. E muitas coisas precisam ser ditas e entrar em pauta agora.”
Resistência, enfrentamento e autocuidado
Em relação aos avanços históricos na conquista de direitos, todos os entrevistados destacaram o papel essencial da pressão e a organização de negros e negras como movimento social. Além do estabelecimento do dia 20 de novembro, falaram sobre a importância da Lei 10.639, que exige o estudo da história da África nas escolas e as cotas raciais nas universidades, que possibilitaram o acesso da população negra e periférica às universidades. No entanto, tanto Iuli quanto Andressa remarcam que nunca houve uma situação política que fosse favorável às pessoas negras, apesar de alguns governos terem permitido abertura para conquistas de direitos.
“Mas ainda foram insuficientes para atender de forma efetiva as necessidades básicas de grande parte dessa população. Em 2018 vivenciamos a expressão do avanço do conservadorismo marcada por um discurso de ódio e a tentativa de implementação de políticas que anunciam o retrocesso e revivem o sistema colonial. Esse contexto coloca em visibilidade os motivos de nossa militância, que hoje exige maior vigilância e novas estratégias de enfrentamento frente a um governo eleito que tem se expressado fechado ao diálogo de inclusão social e ameaça os direitos conquistados”, alertam as duas.
“Enfrentamento a gente vem fazendo há mais de 450 anos. Nossa luta diária é para que nossos jovens parem de morrer, para que tenhamos igualdade de oportunidades, e que haja políticas públicas que atuem no sentido de sanar estas desigualdades. E é preciso atuar também em formas mais invisíveis de racismo do cotidiano: em personagens estereotipados na TV, em expressões como “lista negra” e também nos padrões de beleza eurocêntricos e no ódio das redes sociais. Queremos nossa população viva”, arremata Azarias.