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Pessoas LGBTQIAPN+ superam adversidades e se tornam referências profissionais

LGBT arquivo pessoal e felipe couri Tallia
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De acordo com uma pesquisa realizada em 2022 pela consultoria global Great Place To Work (GPTW) com enfoque em diversidade e inclusão, apenas 10% dos funcionários brasileiros se autodeclaram parte da comunidade LGBTQIAPN+, e no recorte dos cargos de liderança, apenas 8%. Nas organizações, de acordo com a Center For Talent Innovation, 33% afirmaram que não contratariam pessoas da comunidade para cargos de chefia e liderança. A falta de oportunidade de emprego igualitário e de respeito às relações amorosas dentro do ambiente de trabalho é mais um dos desafios enfrentados por essa comunidade no Brasil, e a situação também é acompanhada de problemas como assédio moral, violências verbais e mesmo desemprego. No entanto, com os avanços no debate de temas de inclusão nos últimos anos, é possível ver um aumento de pessoas LGBTQIAPN+ em espaços de liderança, um aumento de vagas que priorizam a diversidade e a presença de representantes que servem de referência para outras pessoas. A Tribuna entrevistou cinco pessoas com atuações diferentes, em diversos ramos, mas que dão fôlego a essa luta.

David Sender, médico

(Foto: Arquivo pessoal)

David escolheu ser médico psiquiatra aos 12 anos, após uma experiência pessoal de depressão. Anos depois, ele ainda queria compreender como a mente humana é capaz de criar sensações como, por exemplo, o vazio no peito, a felicidade e a tristeza, e quais eram os fundamentos psíquicos e biológicos por trás desses fenômenos. Com o tempo, no entanto, a curiosidade deu vez à vontade de proteção: “Transformei-me num defensor do propósito de evitar que outros passassem pelo que experimentei: anos de angústia solitária, enfrentando um inimigo invisível, simplesmente porque eu não me encaixava no estereótipo de uma pessoa doente”. Ele já trabalha no ramo há 11 anos e narra que, desde que começou, a “ausência de representatividade era flagrante”. Para além da falta de exemplo, ele explica que, nos anos de estudo da psicologia médica na faculdade, esse setor vital e altamente específico jamais recebeu a devida atenção.

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Seu principal desafio, como narra, era se integrar e conseguir encontrar quem entendesse suas angústias pessoais. “Nos anos 2000, ser autêntico era, por si só, um risco de ser visto negativamente”, diz. Apesar de entender que como homem branco, cisgênero, proveniente de uma família com recursos, ele não sofreria a mesma discriminação, esse processo deixou muitas marcas. Hoje, ele também tenta fazer o possível para transformar feridas em formas de ajudar outras pessoas. “A dor de crescer como gay em uma comunidade judaica nos anos 90 me concedeu uma experiência singular que facilitou uma conexão profunda com o sofrimento alheio. Acredito que ser um psiquiatra extremamente comprometido em acolher os outros em condições tão dolorosas, por meio de uma abordagem honesta, afetuosa e sem julgamentos, me proporcionou a oportunidade de estabelecer relações com pacientes que sentiam a necessidade de fazer o mesmo comigo”, diz.

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Para ele, ainda, foi possível sobreviver dessa forma e encontrar o seu lugar no mercado desenvolvendo como estratégia a entrega de um trabalho excepcional e sempre buscando se destacar, a fim de não permitir que sua sexualidade se sobrepusesse ao profissionalismo. “Algo que, em princípio, jamais deveria ter sido uma preocupação, concorda?”, questiona. Ao pensar que pode ser referência para outros, David se emociona: “Não foi fácil me tornar quem sou, e não estou me referindo somente ao aspecto profissional, mas principalmente ao pessoal. Carreguei sempre comigo a ideia de que uma parte de mim representava uma desvantagem que poderia comprometer o todo. Levei tempo até alcançar minha criança interior e reconhecer que todas as suas características eram bem-vindas, especialmente a sua sexualidade”.

Gabriela Talha, advogada

(Foto: Arquivo pessoal)

Para Gabriela Talha, que hoje é advogada criminalista e especialista em execução penal, a melhor parte de seu trabalho é ser instrumento para garantir os direitos das pessoas. “Não importa se é acusada, vítima ou investigada, ela tem direito de ter um profissional pronto para defender e garantir os direitos dela. Esse olhar sensível às necessidades das pessoas é que me atrai”, conta. Foi justamente na faculdade de direito, em 2016, que ela começou a se entender como uma mulher que gosta de outras mulheres. Apesar de não ter tido referências de muitos profissionais jurídicos lá, a comunidade acadêmica e professores sensíveis à pauta dos direitos LGBTQIAPN+ fizeram com que ela se sentisse mais à vontade.

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No entanto, ela não deixava de pensar na ausência de pessoas como ela nos lugares que queria ocupar. “Eu pensava: como vou ser quem eu sou, dentro desse cargo, dessa instituição, se não tem ninguém lá como eu? O compromisso das instituições com a questão da diversidade é algo bem recente, e a gente tem muito a avançar e discutir”, diz. Seu maior medo, neste momento, foi não ser aceita, sofrer violências e ter que enfrentar as agressões diárias. Mas o processo de entender a própria sexualidade foi natural, até mesmo por ter dois amigos próximos que viveram esse momento junto com ela. “Expor isso para o mundo para além da minha bolha, para o ambiente profissional e os familiares, foi um baita processo. E a realidade é que a ‘saída do armário’ não acontece só uma vez, é em cada local novo, em cada amizade nova”, diz. Ela conta, ainda, que chegou a namorar escondido de sua família e que o seu pai faleceu sem saber de sua orientação sexual.

Ela explica que, ao contrário da realidade de muitas pessoas LGBTQIAPN+, quando contou para a sua família e amigos, foi acolhida. A partir desse momento, Gabriela também entendeu que ser quem ela era também poderia ser uma forma de lutar por mais direitos para a comunidade. “Eu contei pra minha família em um mês, e no mês seguinte já estava participando de uma live com a temática LGBT. Um tempinho depois eu já estava fazendo parte de um grupo de trabalho que construiu o Plano Municipal de Promoção e Defesa dos Direitos LGBTs e, depois, virei presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB”, relembra. Todos esses espaços foram ocupados por ela, com 25 anos, mesmo em uma área na qual ela entende ainda haver um grande conservadorismo. E sua presença é simbólica para mudar isso: “É uma sensação ímpar. Estou ocupando esses espaços como uma mulher preta, jovem, lésbica. Poder levar as discussões pra dentro das instituições é algo de que a gente precisa”.

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Tallia Sobral, professora e vereadora

(Foto: Felipe Couri)

Tallia Sobral, desde a campanha para vereadora que fez, em 2018, se declarava bissexual e uma representante que tinha como um dos seu principais ideais lutar pelos direitos LGBTs. Em 2020, ela foi eleita pelo PSOL e abriu portas para mais pessoas como ela, uma mulher bissexual, capoeirista, musicista e professora. Mas nada disso veio de forma fácil para ela: “Sempre fui LGBT e vivendo a vida no geral, passando por todas as questões de invisibilidade, de dificuldade, de questionamento. É constante o questionamento se você está apta, se você é boa o suficiente ou não. As violências que você tem que engolir pra chegar onde está”. São cobranças desmedidas, ataques violentos em redes sociais e ainda um processo interno que gerava receios inclusive quanto a encontrar emprego.

Ela já havia tentado a vereança em 2012, mas ainda sem levantar esta bandeira como sua. Também nos locais de trabalho não falava sobre seus relacionamentos ou publicava fotos que mostrassem namoros, por exemplo. “Nos trabalhos em que estava há mais tempo, as pessoas vão criando laços, contando sobre a família, namoros e filhos. Nessas conversas em tom de brincadeira, fofoca, risada, eu ficava mais quieta. Me assumir foi um ato político também”, afirma. E estar fazendo política e querer mudar o que gera esse silenciamento é uma conquista para ela. “É um orgulho grande a gente estar ocupando esse lugar hoje, na Câmara. As LGBTs estão na cidade, vivem a cidade nas suas profissões e perspectivas que hoje estão sendo representadas em suas pautas”, esclarece, com alegria.

Sua vida na política juiz-forana começou quando ela se envolveu com o diretório acadêmico da faculdade de educação física e foi se intensificando nos anos seguintes, principalmente quando começou a trabalhar como professora e percebeu que muitas coisas estavam funcionando de maneira errada. Tallia sempre fala em “a gente” quando fala das conquistas dela, inclusive das que mais se orgulha: “A gente conseguiu aprovar o projeto de lei da empregabilidade trans”. Isso acontece porque, como deixa claro, não se trata de uma construção individual. “Individualmente, por mim, queria estar na escola, dando aula, com as crianças ou tocando música. Mas é um lugar importante aqui, neste momento. Uma lei não garante tudo. Na verdade, garante muito pouco. Mas ter uma lei que permite que você construa em cima dela, é muito significativo”, diz.

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Wesley Pontes, professor

(Foto: Arquivo pessoal)

Wesley Pontes trabalha como professor desde 2011, tendo o seu próprio cursinho de redação para o Enem e outros vestibulares desde 2014. Para ele, a boa relação que tem com os alunos é “sorte”, e a aceitação dentro da instituição de ensino em que trabalha também. Isso porque, ao seu redor, sabe que há um clima de conservadorismo e de perseguição contra professores que toquem em temas sociais importantes, e que há diversos colegas que também fazem parte da comunidade que sofreram represálias. “Eu cheguei até a passar por uma aluna, ano passado, que se recusou a assistir à minha aula porque eu tocava nesses temas. Uma geração saiu da escola e do ensino médio sem ter tido acesso a uma discussão muito importante de tópicos que vão estar presentes em suas vidas adultas”, afirma.

Para ele, esse cenário político e o clima de repressão que tem crescido nos últimos anos gerou grandes danos, inclusive tornando difícil trabalhar alguns temas, porque “há uma perseguição ideológica contra alguns professores”. Ele exemplifica que, quando eles tocam em assuntos que fazem parte de questões sociais e de cidadania, são vistos como partidários. “Principalmente na gestão do Governo federal anterior, a gente tinha que se policiar muito porque parte da sociedade não entendia que alguns temas que eram levantados careciam de debates por serem problemas sociais, e não por serem uma forma de doutrinação”, explica. E ver a troca de ideias reais entre professores e alunos, além de poder ajudar a construir um mundo melhor, são as partes de que mais gosta em sua profissão.

Quando começou sua faculdade, em 2007, embora tenha sido uma época com muitos avanços, não havia uma série de discussões, principalmente de forma institucionalizada, como existe hoje. “Inclusive no próprio currículo escolar não havia nenhuma preocupação sobre o assunto, o que é algo bem mais recente. Foi uma época em que o assunto não era nem terceirizado, era totalmente invisibilizado, pelo menos no meio acadêmico de que eu fiz parte”, diz. Para ele, poder mudar isso para as próximas gerações é dar algo que nunca teve e que fez falta: “Acho interessante que os jovens possam ver, hoje, que a sua sexualidade, a sua expressão de gênero e as suas particularidades individuais não vão determinar até onde eles vão chegar. Não vão delimitar para que alcancem seus sonhos. É muito interessante, sabe? Servir de inspiração e fornecer aquilo que não tive em minha vida”.

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Fernanda Aleixo, policial civil

(Foto: Leonardo Costa)

Fernanda Aleixo conta que, antes de sair de casa, todos os dias, precisa se preparar: “Todo dia que saio, as pessoas olham, comentam e debocham. Mas já estou em um lugar mais leve. O mundo ainda não sabe lidar bem com as diferenças, e uma figura como eu… Eu não preciso falar nada. Eu passando na rua, vai haver um comentário, um olhar, uma cutucada de braço. Eu tenho que ter essa serenidade porque, às vezes, é só uma curiosidade, um olhar de ‘Eu nunca vi algo parecido’. Mas às vezes é um olhar maldoso, um comentário alto, um olhar que você percebe que a pessoa gostaria de te tirar de onde você está”. Para ela, travesti e investigadora da Polícia Civil, existir chama a atenção. É por isso que, além de se preparar, também inicia a rotina pensando que “amanhã é um novo dia”.

Seu trabalho envolve intimações, ordens de serviço e atendimento presencial, chegando a atender de 20 a 50 pessoas por dia na delegacia, fazendo intimações na cidade inteira. No dia anterior à entrevista, ela contou que estava em um flagrante de violência doméstica, já que atualmente trabalha na Delegacia da Mulher. Para ela, esse se tornou um trabalho gratificante, mesmo apesar de todas as dificuldades que se impõem. “O que eu mais gosto no meu trabalho é conseguir provar algo. Quando alguma comunicação nossa consegue prender alguém, gerar um mandado de busca e apreensão ou cessar uma violência. Fazer com que a justiça aja”, diz. Ela afirma, ainda, que a relação com o público costuma ser tranquila. “Às vezes, me chamam no masculino. Mas é comum, eu não sou uma travesti feminina, estou no processo inicial. E poucas vezes sinto que é uma provocação ou uma maledicência, geralmente é um desconhecimento”, diz.

Fernanda é muitas coisas: também é formada em artes cênicas, dá aula de teatro no instituto Amargen e está estudando ciências humanas. Mas, em sua vida, entender quem era foi difícil. “Já tinha dez anos de policial e fazia terapia, tentando me entender… Eu ‘me saquei’ em 2018, mas ainda tinha algumas dúvidas. É muita informação. Foram 30 anos vivendo de uma forma, mas ainda faltava algo. Naquele ano, fiz uma peça com o grupo de teatro ‘OAndardeBaixo’, e na peça eu era uma travesti. Quando me vi nas fotos, naquele personagem, conversando com as pessoas, me dei conta de que era isso. Era esse clique que faltava”, relembra. Seu processo, como conta, foi aos poucos, e foi passando por uma sutil mudança na forma pela qual se apresentava no trabalho. “Um dia lembro de falar com uma amiga: ‘será que um dia vou ter coragem de trabalhar com as roupas e acessórios que quero?’. E ela respondeu: ‘se depender de mim, com certeza. Vai no seu caminho e no seu tempo'”. Agora, ela também quer ser vista como quem é em todos os lugares, e espera ser acompanhada cada vez mais por diversidade, com pessoas que mostrem eficiência e honestidade no que fazem. “Espero que daqui a uns anos sejamos vistas em todos os lugares. Talvez se eu estivesse travesti, lá atrás, talvez eu não tivesse conseguido entrar. Eu não sei. Mas desde então, fui convidada para participar de lives da Polícia e também para panfletar na parada LGBT de Minas Gerais”, diz.

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