“Custa só um real”, diz o adolescente a cada pessoa que passa por ele no Calçadão da Rua Halfeld, no Centro de Juiz de Fora. Nas mãos, o garoto mostra uma caixinha de bala de goma para quem atende ao seu apelo. A cena foi flagrada pela Tribuna em uma tarde de quarta-feira, por volta das 16h, mas é cada vez mais frequente. Invisível aos olhos de muitas pessoas, o que aquele menino faz, indo e voltando pela via, abordando transeuntes, é um tipo de trabalho infantil, considerado um dos mais perversos por especialistas, uma vez que representa prejuízos ao desenvolvimento saudável físico, psicológico e moral da criança e do adolescente. Com a pandemia provocada pela Covid-19, casos de exploração do trabalho e de mendicância de menores de 18 anos de idade, que se configuram como violação de direitos, estão mais perceptíveis na região central do município.
De acordo com informações do Conselho Tutelar Centro-Norte, que atua na área, os pontos principais onde a situação de venda de balas pode ser encontrada é no Calçadão e nas suas ruas vizinhas, como Marechal Deodoro, Mister Moore, São João Nepomuceno, Batista de Oliveira e na Avenida Getúlio Vargas. Já nos cruzamentos das avenidas principais da cidade, como Rio Branco e Brasil, no Manoel Honório, e também na região dos Alto dos Passos, a mendicância e a prática de malabares são mais comuns.
A maioria das crianças e adolescentes encontrados nesta situação são do sexo masculino, mas o Conselho Tutelar diz que há muitas meninas também nas ruas, principalmente vendendo balas. A maior parte é formada por filhos de mães que também tiveram seu trabalho explorado quando crianças. A situação – lembrada no último dia 12, Dia Mundial Contra o Trabalho Infantil – é grave, e resulta em um ciclo de direitos violados.
Na ocasião em que observou o trabalho do adolescente no Calçadão, a reportagem o abordou. Primeiro, ele fez cara de desconfiado, mas, depois, aceitou conversar. Ele contou que tem 15 anos e mora na Zona Nordeste da cidade. “Eu tenho o sonho de ter uma motocicleta”, respondeu o menino após ter sido perguntado sobre por que estava trabalhando na rua. “Mas não seria melhor estar estudando agora para se preparar para o futuro e comprar sua moto?”, questionou o jornalista. Muito sem graça e sempre olhando para os lados, como se estivesse sendo vigiado, o menino disse: “Quero comprar minhas próprias coisas, e, por isso, preciso ter dinheiro.” O garoto ainda relatou que mora só com o pai, que ganha bem pelos trabalhos que faz, segundo ele. A reportagem questionou, então, se ele e seu pai estão passando algum tipo de necessidade em razão da crise econômica provocada pela pandemia, e o adolescente respondeu, sucintamente: “Às vezes falta serviço para meu pai”.
Antes de ir embora, o garoto disse ainda que aquele era o primeiro dia que vendia bala na rua, e que aquela caixa que levava nas mãos já era a terceira. “Estou me saindo bem, pois cada caixa tem 30 unidades, e estou vendendo cada uma a R$ 1”, comemorou, afirmando que tinha começado o serviço às 8h e só pararia às 18h. “Mas com tanto tempo assim trabalhando na rua, como você vai para a escola?”, quis saber o repórter. O adolescente disse que estudava à noite no sétimo ano do ensino fundamental, e foi se afastando para abordar novas pessoas. “E para comer, como você faz”, insistiu o jornalista, mas o menino não respondeu.
Despejado por duas vezes
Perto dali, na esquina entre as ruas Batista de Oliveira e São João Nepomuceno, outro adolescente, de 14 anos, vendia meias dispostas em um tecido estendido no chão. Também com modo de agir desconfiado, como se também estivesse sendo vigiado, ele contou que estava trabalhando para ajudar a família, que enfrentava problemas para pagar aluguel e manter o sustento da casa, onde ele morava com mais dois irmãos, o pai e a mãe, na Zona Sudeste. “Já fomos despejados de casa duas vezes por falta de pagamento de aluguel”, disse. “Por causa da pandemia, sua família está tendo dificuldade para trabalhar?”, perguntou o repórter. “Não, essas dificuldades já são de antes”, respondeu o garoto.
Ele contou que, às vezes, também vende óculos e samambaias na rua, e que já estava acostumado com aquele trabalho, que começa às 8h e termina às 18h. O jornalista pergunta, então, sobre a escola. “Só à noite. Faço a sétima série”, afirmou, completando que para comer ao longo da sua jornada de trabalho de dez horas, parava entre meio-dia e 13h para almoçar.
Ao longo de toda a conversa, o adolescente mostrou-se ressabiado. Quando o repórter passou pela mesma esquina onde o menino estava, minutos depois de terem conversado, o garoto e as meias que vendia já não estavam mais no local.
Levantamento da PJF aponta 36 casos este ano
Dados da Secretaria Especial de Direitos Humanos da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) mostram que, em 2021, já foram identificadas 36 crianças e adolescentes vivendo nesta situação na cidade. Mas, de acordo com o Conselho Tutelar, um levantamento sobre esses casos ainda está sendo realizado, e seu resultado só será conhecido no final deste semestre. Por conta da pandemia, a estatística ainda pode ficar subnotificada, uma vez que muitas situações podem não ter sido alvo de denúncia.
Conforme a Secretaria Especial de Direitos Humanos, criada este ano, foi realizado o “Diagnóstico da infância e adolescência de Juiz de Fora”, em 2020, baseado nos dados da rede de proteção do Município com o objetivo de identificar as carências e as demandas da população infanto-juvenil, a fim de servir como base para políticas de promoção dos direitos desse público-alvo.
Segundo a pasta municipal, nos registros mensais de atendimento do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), que é o equipamento responsável pela oferta de serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em situação de ameaça, vítimas de violência, maus-tratos, negligência e/ou violação de direitos, foram identificadas oito crianças ou adolescentes em situação de trabalho infantil no primeiro semestre de 2020.
Ainda segundo a secretaria, o Conselho Tutelar Sul, no segundo semestre de 2020, atendeu mais sete casos de uso de crianças e adolescentes em mendicância, o que não se configura como trabalho infantil, mas pode evoluir para tal situação, havendo, assim, a necessidade de ser combatida. Como aponta a pasta, as dificuldades enfrentadas pelas famílias acabam levando a essa situação: essas crianças e adolescentes começam pedindo, e depois, acabam vendendo para ajudar a sustentar suas famílias.
“Geralmente, a maioria dessas famílias já está em situação de atendimentos assistenciais, o que nem sempre é suficiente para atender suas demandas, que acaba por gerar o retorno para as ruas. É um trabalho constante de conscientização das famílias e que precisa estar atrelado a vários outros projetos de educação, geração de renda para realmente essas pessoas saírem da situação de pobreza, que leva esses meninos para as ruas”, ressalta a pasta.
Na próxima sexta-feira (25), está marcada uma reunião em que a rede de proteção apresentará ações realizadas por cada setor para erradicação do trabalho infantil na cidade, segundo a PJF.
Casos devem ser denunciados ao Conselho Tutelar
Segundo Kátia Macedo, que atua em seu segundo mandato no Conselho Tutelar Centro-Norte, há situações que são reincidentes. “No caso pontual das crianças que vendem balas, elas são acompanhadas pelo Conselho Tutelar Leste, porque elas são moradoras na região de sua abrangência e pela Vara da Infância, porque são situações antigas que acontecem na cidade. Tivemos inclusive sucesso no atendimento, porque tinha muito mais crianças do que é visto hoje. Antes da pandemia tínhamos conseguido diminuir os casos, porque foram tomadas medidas de acolhimento institucional determinadas pela Vara da Infância quando percebíamos que essa situação perdurava. Agora, com a pandemia, notamos que a situação retornou, porque as pessoas perderam o emprego e acabam usando as crianças para isso”, afirma, acrescentando que a venda de balas, a mendicância e os malabares são violação de direitos, porque é um tipo de exploração do trabalho infantil. “Se existe violação de direitos, o Conselho aplica a medida de proteção”, enfatiza.
No caso da venda de balas, conforme Kátia, já foi constatado que as mães ficam sempre por perto, porque elas entendem que as pessoas se sensibilizam com as crianças e, por isso, compram mais. “Elas ficam por perto, sempre de olho, para que não aconteça algo com os filhos, para defendê-los. Elas entendem essa situação como auxílio na questão da renda, mas é uma exploração, tanto que esses casos são tratados na Vara da Infância. Essas crianças e adolescentes também se sentem responsáveis pelo sustento da família, e cabe a nós orientá-los, mostrando que essa responsabilidade é dos pais e mães”, afirma.
Ainda segundo ela, é necessário conscientizar a população para não comprar e denunciar esse tipo de situação. “Se não houver denúncia, o Conselho não consegue atuar. Quando as pessoas entenderem que é dever delas, porque o Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que é dever da sociedade garantir o direito dessas crianças e adolescentes, a população dará importância para a denúncia.”
Sem escola
A conselheira também destaca que outra situação que tem colaborado com a mendicância e com o trabalho infantil é o fechamento das escolas, por conta da pandemia. “Quando as aulas são presenciais, esses meninos e meninas têm o momento de estar na escola e torna-se mais fácil a garantia de direitos, porque a própria escola identifica os abusos. Eles falam para o professor que não fizerem o dever porque estavam cansados devido ao trabalho na rua. Assim, o Conselho Tutelar é notificado. Infelizmente, essa questão de quase um ano e meio sem atividades presenciais nos colégios agrava a questão da exploração do trabalho infantil”, afirma Kátia.
Meninos entre 8 e 14 anos são maioria nas ruas
Em 2019, quando esse mesmo tema foi abordado pela Tribuna, dados da gestão municipal daquela época mostravam que 102 crianças submetidas ao trabalho infantil foram encontradas pela Secretaria de Desenvolvimento Social nas ruas da cidade, em levantamento realizado entre 2016 e 2019. O mesmo diagnóstico mostrava que a venda de balas e a habilidade de malabares eram as atividades mais recorrentes realizadas por meninos e meninas nos cruzamentos da região central do município, algo que ainda é possível observar em 2021.
A situação de mulheres usando os filhos, muitas vezes levando-os ao colo, como forma de sensibilizar as pessoas, era também era frequente para se vender produtos nas calçadas, como panos de pratos, indicava o levantamento. O estudo também mostrava que essas crianças e adolescentes, a maioria do sexo masculino, era de origem de famílias nas quais as mães tinham perdido seus companheiros e tinham a rua como forma de garantia de sustento. A faixa etária dessas crianças oscilava, mas a maior parte dos identificados era de 8 a 14 anos, idades nas quais já conseguem circular sozinhos, ficando mais independentes para a prática de venda, o que ainda é possível observar nas ruas da cidade.
Segundo Elenita de Paulo, que atua no Conselho Tutelar Leste, a situação de pobreza é um dos fatores que agravam a situação, levando meninos e meninas para a condição de trabalho infantil. “Esse tipo de trabalho é caracterizado quando a criança é explorada, quando não tem os direitos trabalhistas preservados, porque a partir dos 14 já pode trabalhar como jovem aprendiz com todos os direitos mantidos. Se a criança trabalha sem eles, ou se é obrigada a complementar a renda familiar ou a conseguir dinheiro para se alimentar, para seu autosusteno, isso configura trabalho infantil”, explica a conselheira.
Segundo ela, o Conselho Tutelar trabalha recebendo denúncias, que são averiguadas pelas equipes. “Temos que fazer a averiguação e, se não estiver na região de competência do meu conselho, passo para a área de referência. As pessoas se incomodam com essa situação, principalmente, nas regiões central e Sul, fazendo denúncias ao Conselho. Quando recebemos, procuramos sempre o responsável pela criança ou adolescente e depois fazemos encaminhamento”, explicou.
Esses encaminhamentos são ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), para fortalecimento de vínculo com a família; e ao Centro de Referência de Assistência Social (Cras), para avaliar a questão de vulnerabilidade social, identificando a necessidade de trabalho da criança e em qual programa a família pode ser inserida, a fim de minimizar o impacto social. “Dependendo da situação, esse encaminhamento pode ser para a Vara da Infância, se a criança estiver sob risco, e para o Ministério Público, porque criança não pode ficar sem estudar”, afirma Elenita.
Engajamento de diversos setores
Essa rede de proteção envolve profissionais dos Cras, Creas e dos conselhos de assistência social, dos direitos da criança e adolescente e tutelares, além do Serviço de Abordagem e das secretarias Especial de Direitos Humanos, de Assistência Social e de Educação, que se reúnem em busca de soluções efetivas e integradas para os casos identificados. Este engajamento de diversos setores busca planejar e articular ações de atendimento a fim de atender as demandas que surgem integralmente em todas as suas especificidades.
Os casos que vão além da alçada dos atendimentos assistenciais e psicossociais da Prefeitura são encaminhados para as autoridades competentes, como, por exemplo, o sistema de Justiça. Se houver a identificação de qualquer caso em que haja suspeita ou confirmação de violação de direitos de crianças e adolescentes, incluindo a exploração do trabalho infantil, devem ser utilizados os canais de denúncia, o Disque 100 ou os telefones dos conselhos tutelares.
Como acionar os Conselhos Tutelares
Conselho Tutelar da Região Centro-Norte
Endereço: Av. Brasil 9.501 – Loja 08 – 36045-270 – Terminal Rodoviário
Telefones: (32) 3690-7398 / Plantão: (32) 98429-4740 (18h a 8h)
Conselho Tutelar da Região Leste
Endereço: Rua Vitorino Braga, 126 – 30060-000
Telefone: (32) 3690-7390 / Plantão: (32) 98463-0980 (18h a 8h)
Conselho Tutelar da Região Sul-Oeste
Endereço: Praça Presidente Antônio Carlos, 371 – Centro – 36010-140
Telefone: (32) 3690-7397 / Plantão: (32) 98431-4793 (18h a 8h)
*Anteriormente, constava nesta matéria que não havia levantamento com os registros de trabalho infantil em 2021. Os dados foram inseridos, e a matéria foi atualizada às 15h26 de 21 de junho.