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Pesquisadores resgatam identidades dos povos originários da Zona da Mata

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O dia 19 de abril é marcado por ser o Dia dos Povos Indígenas. Apesar do apagamento dos povos originários dos registros históricos, Juiz de Fora abriga ao menos 639 indígenas, de acordo com o último censo publicado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010. Entretanto, sua história, existência e resistência são seculares. Way Puri, 31, indígena e mestrando em antropologia social, destaca que por meio de sítios rupestres, material lítico e cerâmico há prova da habitação desses povos na Zona da Mata há cerca de 3 mil anos.

A longínqua relação dos povos indígenas com a região é reiterada por Cristiano Lima, doutorando em história pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Como parte desse vasto território de mares de morro, dois troncos linguísticos de indígenas podiam ser identificados: o tupi-guarani, falado pelos tupinambás e guaranis, dentre outros, e o macro-jê, associado aos coroados, puri e krenak, esclarece o pesquisador.

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A pesca, caça, agricultura e coleta de frutos das matas eram modos de manter a alimentação. Segundo Way Puri, uma característica presente na vida dos indígenas puri era ter vários lugares de habitação, o que é diferente do nomadismo. No período de chuva, eles se dirigiam às regiões de pequenos córregos. Já em períodos quentes, os puri se dirigiam a pontos mais altos. Ele explica que uma grande fatia de território era percorrida por eles ao longo do ano. A trajetória era guiada não apenas por situações climáticas, mas também pelos rituais oriundos de sua cultura. Way Puri os define como um povo do movimento, pelo conhecimento que os guiava até mesmo em direção onde a oferta de alimento era mais vasta, em determinadas épocas.

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Longe de uma homogeneidade, os povos indígenas possuem uma extensa gama cultural, em que o precedente vem de suas próprias ancestralidades. Cada povo possuía seus modos de organização e suas características. Em comum, entretanto, todos sentiram o impacto da colonização, que na Zona da Mata ocorreu no século 19.

A presença indígena no que viria a ser Juiz de Fora

Dalila Singulane é natural de Ubá e cursa doutorado em história na Universidade Federal de Juiz de Fora (Foto: Arquivo pessoal)

“Caminho Novo é rota indígena”, esclarece Dalila Varela Singulane, 27, natural de Ubá e doutoranda em história na UFJF. A fala dela reflete a carta escrita por Henrique Halfeld em 1840, no momento da construção do Caminho Novo – que mais tarde viria a simbolizar o nascimento de Juiz de fora. O documento relata que um dos fundadores da cidade encontrou um cemitério indígena. “Na ocasião, ele explicou que encontrou cerâmicas de grandes proporções com ossos dentro”, conta Dalila. A historiadora complementa que a vida indígena na Zona da Mata é antiga e pré-colonial.

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Por meio do Centro Nacional de Arqueologia (CPA), do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), é possível observar a presença de sítios arqueológicos como o de Teixeira Lopes, em Juiz de Fora. No local foram encontrados fragmentos cerâmicos com pintura interna policromática, advinda da tradição tupi-guarani.

Esse sítio se localiza perto do Rio do Peixe, que faz parte da Bacia do Paraíba do Sul. Vale destacar que, antes da colonização, todo o Vale do Paraíba e seus afluentes, como o Rio Paraibuna, Rio de Peixe e Rio Pomba, eram habitados pelos povos originários.

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Vinculada ao Museu de Arqueologia e Etnologia Americana (UFJF) e com ascendência indígena e africana, Dalila esclarece que o processo colonizador contido nas escrituras da época generalizou os indígenas. Esse apagamento dificultou a forma de traçar todos os grupos que fizeram parte da região de Juiz de Fora e da Zona da Mata.

Conflito com colonizadores e fuga para o interior

De acordo com a historiadora Mônica Ribeiro de Oliveira, a expansão colonial fez com que, em um primeiro contato, parte dos povos indígenas fossem dizimados ao entrar em confronto com os portugueses e que outros se afugentaram no interior do estado. Sujeitos à violência e à apropriação indevida das suas terras, não passivamente, eles passaram a ser “administrados” pelos colonizadores. Segundo a historiadora Mônica Oliveira, essa “gestão” dos povos originários, que pode ser vista como uma forma de escravização, gerou receios. “Por estratégias dos grupos dominados, eles buscavam se esconder e se misturar entre a população que se tornava liberta.”

Em 1758, foi proibido em todo o território brasileiro a escravização de indígenas. Way Puri destaca que, para burlar essa lei, povos indígenas foram coagidos a se casarem com pessoas pretas, a fim de que seus filhos pudessem se tornar escravos. Ainda que mais de um século depois, a mãe de Way Puri foi um desses casos, quando a escravização de indígenas ainda permanecia. Ele explica que ela foi submetida a trabalhar de modo análogo à escravidão desde seus 13 anos. Segundo ele, a mãe cuidava de duas crianças e não recebia salário. A situação só se modificou quando ela se casou, aos 21 anos, na década de 1980.

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As estratégias de apagamento foram inúmeras, como a miscigenação usada para esse fim. Os filhos de estupro de mulheres indígenas por homens brancos acabaram por perder a identidade de indígena. Assim como aqueles que eram batizados ou até mesmo os que iam para as cidades. Atualmente, a retomada indígena busca ir no sentido oposto, resgatando o lugar de pertencimento e revertendo os processos de aculturação.

Ancestralidade

Adryana Ryal Puri afirma que levou tempo para se reconhecer como indígena (Foto: Arquivo pessoal)

A artista Adryana Ryal Puri, 48, tem ascendência puri. Seus familiares foram servidores da Fazenda São Mateus, em Juiz de Fora. Nessa extensa terra, seus avós trabalhavam: a parte paterna era responsável pelo cultivo de café, chamados de “macucos”, e do lado dos avós maternos, trabalhavam próximo ao rio, as “gameleiras”.

A artista conta sobre uma foto de quando ainda era criança. Segundo sua mãe, no momento daquele registro, uma senhora mostrava interesse em comprá-la, algo que não era incomum na sua realidade. Sua ancestralidade é de negros e indígenas, embora ela confesse que o termo “indígena” ainda é novo, já que, por muito tempo, seus familiares não se reconheciam como tal. A denominação mais próxima, de acordo com Adryana, era mencionar ser filha ou neta de curandeiras e benzedeiras.

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Atualmente, ela possui parentes indígenas em diferentes bairros de Juiz de Fora, tais como Amazonas, Vila Esperança 2, Milho Branco, Filgueiras, Retiro e outros. Contudo, para ela se identificar com o que é ser puri, levou certo tempo. “A gente não sabia o que é a cultura, só apenas depois que comecei a estudar. Na escola eu não podia falar que vim do cafezal, eu fui educada para nem falar”, desabafa. Adryana nota que, para os colonizadores transformarem os indígenas em servidores, o processo de apagamento se deu de forma intensa. Os registros de seus anciões foram destruídos e, na contemporaneidade, não são todos que se veem como puri.

Memória e apagamento

Em um processo com aproximações, Júlia Puri Flecher de Andrade, mestre em Ciências Sociais pela UFJF, conta que a história repassada de seus familiares também remete a uma memória de apagamento. “É uma narrativa bastante difundida no Sudeste em que mulheres indígenas da geração de minha avó teriam sido ‘pegas no laço’ para serem ‘civilizadas’, termos comumente utilizados para contar histórias de mulheres indígenas que possivelmente foram subjugadas por homens não indígenas”, explica Júlia. Com a finalidade de esconder traços, muitos descendentes desses povos ainda hoje não se reconhecem como indígenas, por medo dos tipos de violência aos quais estariam suscetíveis com essa associação.

Embora a presença indígena em Juiz de Fora seja uma realidade, não há comprovação de aldeamentos, que necessitam da criação de uma aldeia e gerenciamento, exercido por políticas oficiais do Governo. Apesar disso, no Bairro Linhares, Zona Leste de Juiz de Fora, está localizada a Grota dos Puri. O local, cortado pelo Córrego do Yung, tem como característica uma grande concentração desse povo e a prática de troca de mercadorias.

Expressão nas artes

Aline Rochedo Pachamama é historiadora, escritora e artista plástica, doutora em história cultural pela UFRRJ (Foto: Arquivo pessoal)

O reconhecimento das artes e dos artistas indígenas possibilita que eles, como sujeitos de sua própria história, possam expressar suas culturas e ancestralidades. Aline Rochedo Pachamama (Churiah Puri) expôs seu quadro “Inhã Uchô Puri – Os puri da Mantiqueira”, em 2023, no Museu Histórico Nacional. Ela destaca que, mesmo que os puri sejam diversos e com distintos costumes, de acordo com as regiões, existem também similaridades, “como a língua macro-jê, o tatu como animal sagrado e o grafismo de serpente no braço das mulheres, que simboliza a força ancestral”.

Churiah Puri, doutora em história cultural pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, faz parte de um projeto que visa a preservação da Mata Atlântica e a transferência do conhecimento dos povos originários/indígenas entre gerações. Além disso, ela é historiadora e escritora, idealizadora da Pachamama editora, dedicada a livros de temáticas indígenas e afro-brasileiras.

O movimento de retomada indígena

Segundo levantamento do IBGE, de 2010, sobre a população autodeclarada indígena no país, em Minas Gerais são mais de 30 mil habitantes. Até então, esses dados evidenciavam que Juiz de Fora estava na sétima posição com maior número de indígenas do estado. A retomada vem mostrar que eles sempre estiveram aqui. “Embora tudo diga que estamos extintos e que o projeto tenha sido esse, nós estamos aqui. Afinal de contas, eu estou te falando agora, que boca é essa que te fala? É a boca de uma pessoa indígena, é a voz dos meus ancestrais que passa pelo meu corpo”, conclui Way Puri.

O movimento de salientar a resistência dos povos puri, ainda hoje, é reafirmado por Júlia Puri. Além da oralidade e de documentos históricos, ela afirma que é por meio das tradições vivas repassadas que a história de seu povo se mantém. A conexão com a natureza, segundo Júlia, é inerente. “Essa relação está presente não só na minha vida pessoal e relação com o divino, mas também na minha vida profissional, tanto na pesquisa acadêmica quanto na atuação enquanto educadora com crianças e adolescentes. Minha atuação profissional também tem girado em torno de investigar como se dão as relações entre humanos e natureza, e dessa maneira não separo o que sinto, acredito e meus interesses pessoais da minha atuação profissional.”

Ao passo que são construídas relações de pertencimento por Júlia e tantos outros indígenas, a antropóloga da UFJF, Elizabeth Pissolato, observa que esse é justamente o movimento da retomada desses povos, “já que elas são, muitas vezes, retomadas identitárias, revitalizações linguísticas, recuperações culturais”.

Na Constituição de 1988, fica esclarecido que os indígenas têm direito de viver à sua maneira, de modo a garantir sua existência. No entanto, os desafios ainda se fazem presentes, constata Pissolato. “As retomadas indígenas trazem, também, a perspectiva de uma re-existência nessa mesma terra que os modelos de exploração do mundo ‘civilizado’ vêm destruindo sistematicamente, tornando-a cada dia mais inabitável. Assim, as retomadas têm reunido frequentemente a luta pelo reconhecimento dos direitos indígenas a uma outra luta, pela ‘cura da terra’, como gosta de dizer a deputada federal e liderança no Movimento das Mulheres Indígenas no Brasil Célia Xakriabá”, explica a antropóloga.

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