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A luta em uma sociedade que ainda oprime o diferente

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Jonathan, o primogênito, ladeado pelos pais Rosângela e Júnior (Foto: Leonardo Costa)
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Não é preciso gerar um bebê para saber que, durante a sua espera, muitas expectativas e planos são feitos pelos pais para o futuro do filho ou da filha. Que se case, constitua família e possa dar netos. Que entre em uma universidade, faça um concurso público… Que seja uma pessoa feliz e realizada em todas as áreas da vida. Muitas vezes, no entanto, o destino exige que a família saia de sua zona de conforto e reveja todos os pré-conceitos outrora concebidos e reforçados por uma sociedade que ainda oprime e marginaliza o diferente.

Em tempos onde a intolerância impera, parece que ter um filho gay, uma filha lésbica, ou trans, por exemplo, é um fardo a ser carregado. Mas sabemos que isso não é verdade. Para ressaltar a questão, a Tribuna conta a história do grupo “Mães pela Diversidade”, formado por 11 mães e um pai que acolheram seus filhos LGBTQI+.

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Tudo começa com o olhar que é lançado sobre a prole, desde quando ela é gerada. “Muitas vezes a vontade de ter um filho diz sobre essa vontade de vencer a morte. Quero deixar algo de meu, perpetuar algo por meio dele. Quando uma mulher descobre que está grávida, a família vai investir na criação que reflete nos valores que se tem”, diz o professor da Faculdade de Educação da UFJF e um dos líderes do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (Gesed), Anderson Ferrari.

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Esse investimento, no entanto, culturalmente não inclui a homoafetividade como opção. “Nenhuma mãe ou pai pensa na possibilidade de o filho ser homossexual. Quando ele se assume, a impressão que dá é a existência de um rompimento com essa idealização. E a reação, em um primeiro momento, costuma ser a de mandar se virar. Isso é muito ruim, porque a família é o lugar da afetividade”, salienta Ferrari. Por isso, a experiência de ser mãe ou pai de uma pessoa LGBTQI+ é, para o professor, um convite a olhar os filhos como eles são e não como se quer que eles sejam. “No geral, os filhos querem ser amados por seus pais e mães da maneira como eles são. Embora ocorra esse investimento do que os pais querem que eles sejam, esse investimento não é garantia de sucesso, porque o que marca a existência humana é a imprevisibilidade. A dificuldade em lidar com um LGBT é a dificuldade de lidar com o imprevisível.”

Essa sugestão de caminho, que passa pelo acolhimento e pelo aprendizado mútuo, é algo que Regina, Rosângela, Júnior e as demais participantes do “Mães pela Diversidade” ajudam a fortalecer em outros núcleos familiares. Apesar da trajetória individual de cada um, eles dividem o abraço, o respeito e o orgulho pela trajetória de seus filhos. Para que isso aconteça, no entanto, é preciso que os familiares estejam dispostos a se abrir para o conhecimento.

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“O caminho do acolhimento é o caminho do conhecimento. Lidamos mal com as questões LGBTs porque a gente sabe pouco. O saber que sustenta essas relações é o senso comum. Que é o saber que liga qualquer expressão LGBT à doença, ao pecado, aos saberes religiosos. Sempre investimos no Gesed na construção do saber. Tentando entender o que as homossexualidades dizem de uma construção de identidade, desde o século XIX. Esse conhecimento coloca a homossexualidade em um caminho muito melhor” pontua Anderson Ferrari.

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Iniciando a caminhada

Há mais de 20 anos, Rosângela Gonzaga e Wander do Carmo Júnior se casaram. O plano era construir uma família, o que vem sendo realizado com muito sucesso. Os anos foram passando e seus quatro filhos foram crescendo e assumindo suas identidades. Do quarteto, três são LGBT: um gay, uma lésbica e uma bissexual. Apesar dos comentários alheios e algumas frustrações quanto aos planos futuros pensados para eles, Rosângela e Júnior entenderam que fechar as portas só deixaria a caminhada ainda mais longa, triste e solitária.

“O preconceito não pode começar dentro de casa. A família é o abrigo, é o primeiro lugar onde eles devem se sentir protegidos. O fato de ser gay, lésbica, trans, bi, não muda nada. Quando você coloca seu filho para fora de casa, você o mata, o criminaliza, faz ele se prostituir, parar de estudar, tudo fica mais difícil. A família é lugar de proteção e não está relacionada ao gênero, mesmo porquê, isso não é uma escolha. A falta de apoio da família é uma ferida que não fecha”, destaca Rosângela.

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Para o marido, porém, o processo não foi tão fácil, mas precisou tocar em seu íntimo para que a barra não ficasse pesada. Para ele, o momento crucial foi no olhar, na forma como você enxerga o próprio filho. “Tive muito medo e sofri pensando no que meus pais, meus irmãos e meus amigos iriam dizer de mim. Eu não pensava nos meus filhos, eu pensava em mim. Isso estava acabando comigo e com a minha família. Tive que reaprender a construir a minha família e, por meio desse processo, aprendi a amar o ser humano”, pontua.

A vontade de repassar essa experiência a outras famílias, no intuito de promover este acolhimento, fez com que Rosângela e Júnior conhecessem o “Mães pela diversidade”, um grupo que existe em pelo menos 23 estados brasileiros e que, há quase um ano, passou a contar com um braço em Juiz de Fora. Entres as causas defendidas pelo grupo está a luta pela manutenção dos direitos conquistados pelos LGBTs e no avanço destas pautas, além de promover o acolhimento, mostrando que pessoas LGBT têm pai e têm mãe, e, como Rosângela mesma gosta de dizer, “não são filhos de chocadeira”.

Abraço familiar

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A necessidade desse abraço familiar e desse posicionamento político é fundamental, como reitera o professor Anderson Ferrari, porque esse é o primeiro núcleo em que o indivíduo se encontra. “Muitas vezes a família é o lugar da discriminação, é o primeiro ambiente em que a pessoa sofre agressões. Grupos LGBTs já tinham se organizado para criar locais de acolhimento para adolescentes, que são insistentemente expulsos de casa.”

Nesse sentido, a abertura experimentada pelas mães, quando aderem a uma organização como o Mães pela Diversidade, ajuda a fortalecer os laços não só com seus próprios filhos, mas também com outras mães que estão caminhando pela mesma via e precisam de apoio e informação. “A partir do momento que essas organizações existem, outras mães podem se espelhar nelas e procurar ajuda. Seja para conversar sobre os processos que viveram, ou refletir sobre o que estão passando. Essa reunião também proporciona a existência de ações mais efetivas, em diversas demandas, como as escolares, ou ligadas a outras instituições. Esse coletivo faz com que elas se fortaleçam”, pontua Anderson Ferrari.

Encurtando os caminhos

Graças à filha Júlia, uma mulher trans, Regina aprendeu a ser forte, a enfrentar as dificuldades e a construir sua autoestima (Foto: Leonardo Costa)

Diferente de Rosângela e Júnior, a família de Regina Célia Medeiros precisou lidar com a transexualidade. E foi a pedido da Júlia – sua filha, uma mulher trans – que Regina encontrou o grupo. Mas o objetivo não era compreender o seu momento em particular, e sim somar, ajudando outras famílias a encararem o processo de transição de gênero como algo menos dolorido e traumático. Para ela, o que torna esse caminho mais curto, e menos sofrido, é a aceitação, a conversa e o diálogo. “Em vez de criarmos distâncias, devemos criar proximidade. Se você não dá abertura para ouvir o que o seu filho tem a dizer, ouvir o que ele está sentindo, ninguém se escuta. A partir do momento que você está disponível para ouvir o que o seu filho tem a dizer, as coisas ficam mais fáceis. É uma construção em conjunto”, explica.

Dar a oportunidade de ouvir, para ela, é um jeito de nos livrarmos de certos preconceitos e dificuldades. “A família é o primeiro lugar onde há uma diversidade enorme. Cada um pensa de um jeito, age de um jeito e ninguém escreve na testa o que é. A mensagem que queremos mostrar é: devemos criar pontes, não muros. A não aceitação da família causa uma ferida muito profunda. É um preço muito alto que você faz o outro pagar pelo seu egoísmo, por não querer ouvir o que o outro tem a dizer.”

E foi superando os trechos mais áridos e penosos desse percurso que Regina ampliou seus conhecimentos. “O sofrimento não está relacionado à questão social. Há muitas pessoas tidas como mais humildes, mais simples, mais pobres, sem estudo, faculdade ou doutorado, que conseguem acolher seu filho, manter uma relação de amizade, aceitação e alegria com eles, enquanto há muitas pessoas que, apesar de uma posição social muito boa, com grau de instrução alto, passa por todo esse sofrimento, humilhação, agressividade.” Segundo Regina, os medos, geralmente, pairam sobre qual ideia ou imagem as pessoas de fora fazem a respeito da relação dos pais com os filhos LGBTs.

“Todo mundo idealiza filho, marido, casamento. Tudo o que foge desse ideal é diferente e, portanto, inaceitável, o que dificulta a convivência. Por isso, mudar a forma como a família responde é um ponto chave”, afirma. Quando ao contrário do que aconteceu com Regina e Júlia ocorre, as consequências são drásticas. “O não acolhimento gera adoecimento, depressão. No limite, pode até mesmo levar a uma tentativa de suicídio. É um quadro muito doloroso. Porque é esperar que os filhos correspondam às expectativas dos pais. A primeira coisa é olhar os filhos pelos olhos deles e não pelos olhos dos pais. Todos nós temos o direito de sermos o que quisermos ser. Não temos que ser o que os nossos pais querem que sejamos. É preciso lembrar que são filhos, independente de serem ou não LGBTS. Esse é o convite e o desafio”, considera Ferrari.

Chegando juntos e indo em frente

Todo trajeto pressupõe diferentes paisagens, passagens altas e baixas, o dia que segue a noite e, muitas vezes, surgem curvas que exigem cuidado redobrado. Todas essas nuances podem se manifestar na vida de qualquer pessoa, não marcando exclusivamente a história de grupos familiares diversos. “Famílias que possuem alguém do público LGBT são associadas a tudo o que é errado, permissivo. Não é assim que funciona. Às vezes, um filho heterossexual te dá muito mais trabalho que um filho gay. Isso acontece porque somos seres humanos”, assegura Rosângela Gonzaga.

Para ela, a abertura de visão de mundo que toda esse percurso provoca ajuda a melhorar as relações. “Quando a pessoa não precisa esconder quem ela é, tudo fica melhor. Nosso filho era agressivo na adolescência e a gente não conseguia entender. Quando ele falou, relaxou, mudou e entendeu que não precisava ser um ator.” Ainda de acordo com Rosângela, a aceitação e o acolhimento não significam o fim das dúvidas, incertezas e ansiedades. “Todos temos inseguranças todos os dias, o tempo todo. Isso não é privilégio da comunidade LGBT. Isso é igual para todo mundo.”

Já Regina reforça que, quando as pegadas ficam no chão, lado a lado, é possível ganhar muito mais, inclusive, a reinvenção da própria maneira de ver a si próprio. “Aprendi com a Júlia o enfrentamento, mas também com a autoestima que ela ganhou. Porque a partir do momento que ela formou a autoestima dela, fui tendo a minha também. É uma construção compartilhada. Aprendemos juntas, nos fortalecemos. Ela traz uma energia tão boa, a casa ganha mais leveza, mais alegria e mais cor.” A sugestão que ela deixa, para quem deseja investir em uma relação de diálogo, é se questionar o que, de fato, as pessoas entendem como amor. Entendendo a importância desse sentimento, todas as pedras que se puserem no caminho, vão ser retiradas com mais facilidade.

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