Juiz de Fora ultrapassou a marca de duas mil vidas perdidas para a Covid-19 nesta sexta-feira (15). Após um ano e sete meses do início da pandemia, o município perdeu, pelo menos, dois mil de seus moradores em decorrência da pior crise sanitária mundial. A cidade é a quarta de Minas Gerais, e a terceira na Zona da Mata e região, em número de óbitos a cada 100 mil habitantes, conforme levantamento realizado pelo JF em Dados.
Apesar da triste marca, do fim de agosto para cá, o número de falecimentos causados pela doença registrou queda e apresenta-se estável. Até o momento, setembro é o mês com menor ocorrência de óbitos relacionados à Covid-19 desde o início da pandemia. Levantamento feito pela Tribuna mostra que, até o último dia 30, foram registradas 48 mortes na cidade. A verificação feita pela reportagem considerou os falecimentos com base nas datas de ocorrência, e não de confirmação da morte.
O avanço da vacinação contra a doença é apontado por autoridades em saúde e especialistas como o principal fator para a diminuição do número de falecimentos, não só em Juiz de Fora, mas também no país. Levantamento realizado pelo JF em Dados, com base nas informações disponibilizadas pela Prefeitura (PJF), mostra que a evolução da imunização na cidade está diretamente relacionada à queda na média móvel de mortes. Em abril, pior mês da pandemia na cidade, a média móvel de óbitos chegou a 16 mortes por dia. Com a evolução da imunização, a média caiu para duas mortes/dia ao fim de setembro e se estabilizou abaixo deste parâmetro na primeira semana de outubro.
“A gente teve uma mortalidade que não foi pequena, mas ela não variou muito em relação ao Brasil, e foi bem menor que em outras cidades e estados. Agora, está em decréscimo (a mortalidade)”, analisa o pediatra e infectologista Mário Novaes. Para o médico, não há dúvidas sobre os efeitos da vacinação. “Ainda não há remédios (eficazes contra a Covid-19). Então não tem outra coisa, é efeito da vacinação.” Por outro lado, o infectologista analisa que a completa ausência de mortes pela doença ainda demora a ocorrer.
“Eu não creio que a gente chegue a morte zero por Covid a curto tempo. As mortes vão continuar ocorrendo, reduzidas. Embora a variante Delta esteja circulando, há uma população muito mais vacinada. Mas dizer que vai ter morte zero por Covid-19, não vai acontecer. Para isso, teria que haver a transformação da doença em doença endêmica, e a gente está muito longe disso”.
Por outro lado, Novaes aponta as medidas de flexibilização como um fator que pode aumentar a circulação do coronavírus. “Agora temos um percentual um pouco maior da população vacinada, mas também há a circulação da variante Delta, que é mais transmissível. Há também as medidas de flexibilização, que aumentam a circulação do vírus. Então, não dá para imaginar que o número de mortes vá continuar caindo, por agora. Acho que vai chegar a um ponto de estabilização. Até porque ainda temos parte da população não vacinada e sem a imunização completa.”
Dessa forma, as medidas protetivas continuam essenciais, como alerta o médico. “A vacinação reduz a mortalidade, claro, mas não reduz a circulação do vírus. Alguns estudos mais recentes até mostram que a vacina reduz a transmissão do coronavírus. Mas, na verdade, o que a gente tem de conhecimento básico é que mesmo o indivíduo vacinado transmite o coronavírus para outra pessoa. Ele pode ser um portador assintomático”, diz. Assim, o uso de máscara e medidas de higiene, como lavagem das mãos e uso de álcool 70º, ainda são fundamentais, além do distanciamento social.
Por trás dos números
Por trás dos números, existem mais de duas mil histórias e mais de duas mil famílias enlutadas na cidade, que ainda tentam ressignificar a perda, apesar da tristeza. “É uma coisa totalmente inesperada, você pega o vírus e pode morrer. Não entra na cabeça da gente. É uma doença que veio para desestruturar muitas famílias, e a nossa foi uma delas”, desabafa a confeiteira Ester Nascimento da Silva Motta, 49 anos. Ela perdeu o padrasto Roberto da Silva, 74, em abril, após ele contrair o coronavírus na mesma época que a mãe de Ester, Maria das Graças do Nascimento Silva, 73. Ambos tinham recebido apenas um dose da vacinação contra a Covid-19, à época.
“Minha mãe teve os sintomas primeiro e precisou ir para o hospital, ficou 15 dias internada. Nesse período, ele começou a ficar mal, a gente testou, deu positivo, e o quadro dele foi agravando. Então ele foi para a unidade de pronto atendimento e, depois, foi transferido para o hospital. Ficou apenas um dia lá e faleceu”, conta. Segundo Ester, sua mãe e Roberto estavam juntos há mais de 20 anos, e a relação dela com o padrasto era “muito próxima”.
“Até chegar na sua família, você fica triste e tudo, mas não sente tanto. Mas quando é na sua casa, na sua família, que você vê o quanto é difícil e sério. Tá sendo bem complicado para a nossa família, lembramos o tempo todo dele, e para minha mãe ainda mais, porque ela saiu daqui e, quando voltou, só estavam as cinzas dele”.
O corpo de Roberto foi cremado. A última conversa que Maria das Graças teve com o esposo foi por uma videochamada, feita no hospital durante sua internação. “Nesse dia, ele já estava mal e nem conversou com ela direito. Ela virou para mim e perguntou o que estava acontecendo, por que ele estava tristinho. Eu falei, ‘mãe, ele está com Covid também, mas vai melhorar’. Foi a última vez que ela o viu. A última visão que ela teve dele foi essa: ele na cama, virado. Ela ainda falou com ele ‘ô, Roberto, tudo bem?’. Ele só levantou a mão e respondeu que estava tudo bem. Ela ainda disse: ‘estou te esperando'”.
‘Perdi dois irmãos no mesmo dia’
“Eu perdi dois irmãos no mesmo dia, 15 de janeiro. Uma irmã e um irmão. Foram cinco horas entre uma morte e outra”, conta o aposentado Wanderlei Jorge da Silva, 70. Os irmãos, a quem ele se refere, eram Eneuza Aparecida da Silva, 63, e Edson José da Silva, 67. Os três moravam próximo, no Bairro Milho Branco, e Eneuza e Edson moravam na mesma casa.
De acordo com o aposentado, os dois começaram a apresentar sintomas da Covid-19 ao mesmo tempo e ambos tiveram de ser internados em hospitais. “Foi uma perda muito dura, ninguém esperava que isso poderia acontecer. A gente nunca espera o pior, o ser humano é assim mesmo. Acontece com outras pessoas, e achamos que nunca vai acontecer com a gente. Mas nós éramos seis e, agora, somos em três irmãs e eu. Na época, eu também estava com Covid e fiquei preocupado, mas procurei, pelo menos, aceitar”, diz Wanderlei, que afirma encontrar forças na espiritualidade. Ambos os irmãos não tiveram a oportunidade de serem vacinados contra a Covid-19.
‘Fiquei sem chão, mas consegui seguir’
Vinte e três dias separam a data de morte da mãe e do pai da técnica de enfermagem aposentada Ângela Maria Fernandes Almeida, 61. Ela conta que a mãe Maria das Dores de Almeida, 81, contraiu o coronavírus em meados de março, de forma, a princípio, leve. “Ela não chegou a apresentar falta de ar expressiva, nem febre alta, não teve esse quadro. Por isso, acho importante passar isso para as pessoas. Muita gente pode estar em quadro grave e não apresentar sintomas fortes. Com minha mãe foi assim, e ela faleceu em casa”, conta.
No mesmo dia em que a mãe de Ângela faleceu e foi enterrada, seu pai, Sebastião Fernandes de Almeida, 84, também começou a apresentar alguns sintomas. Ele foi para o hospital e lá testou positivo para a Covid-19. “Não sabemos se foi alguma interação emocional com o fato de ele ter percebido a ausência da minha mãe. Até porque nós não contamos diretamente para ele, mas acreditamos que ele tenha percebido. Ele tinha estágios entre demência e lucidez.” Conforme Ângela, o pai teve de ser intubado e não resistiu às complicações causadas pela doença. Ele faleceu em 18 de abril.
“Quando acontece conosco, o que você achava que sabia, você descobre que não sabe mais nada. Estou tentando digerir até agora. Nós somos em nove irmãos, mas eu, por ser da área da saúde e mais velha, não sei, parece que a gente tem de ser o esteio. Quando perdi meu pais, fiquei com uma sensação oca. Indescritível. Perdi meu chão”.
Apesar de suas perdas, Ângela conta que conseguiu seguir em frente. Já aposentada, ela voltou a trabalhar em prol da saúde pública em Juiz de Fora e atua como vacinadora na Campanha de Imunização contra a Covid-19. A profissional foi uma das entrevistadas para a reportagem Quem Vacina, publicada na Tribuna no último dia 19. A publicação ouviu trabalhadores por trás da aplicação das doses na cidade. “Para mim, essa campanha é uma bênção, porque eu queria empregar meu tempo em algo útil, ainda mais após a perda dos meus pais. Eu queria fazer algo pelas pessoas e, de alguma forma, ajudar para evitar mais mortes por esta doença. Porque eu sei o quanto é difícil. É uma dor que eu consigo entender, quando alguém chega para se vacinar comigo e chora porque perdeu algum ente.”