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Vídeo de drag queen em escola provoca polêmica

abraao capa
Femmenino
Vídeo com a drag queen Femmenino foi compartilhado milhares de vezes na internet (Foto: Reprodução)
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Uma grande polêmica envolvendo a UFJF, o Colégio de Aplicação João XXIII, a drag queen Femmenino e um conselheiro tutelar de Juiz de Fora mobilizou a internet, causando reação de movimentos sociais, da OAB Juiz de Fora, da Câmara Municipal e da Prefeitura. Tudo começou depois que um vídeo publicado pela universidade em homenagem ao Dia das Crianças foi ao ar. Na gravação intitulada “Na hora do lanche”, o artista performático Nino de Barros, que incorpora a drag queen Femmenino, vai até o Colégio de Aplicação João XXIII saber dos alunos como estava a expectativa para o 12 de outubro e o que os estudantes estavam levando na merendeira. Em determinado trecho do vídeo, a personagem fala sobre não existir separação entre coisas e brinquedos de menino e de menina, fazendo um coro com os pequenos de que isso é preconceito. Apesar de ocupar menos de 15 segundos da produção de pouco mais de 4 minutos, o trecho da conversa foi suficiente para gerar discursos inflamados contra a iniciativa. Três dias depois da publicação oficial, ocorrida no dia 11, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC) editou o vídeo e o postou em sua página no Facebook, colocando tarjas pretas com os dizeres: “Prestem atenção na canalhice que estão fazendo com nossas crianças”. Até a manhã desta segunda-feira (16), a postagem já tinha 719 mil visualizações, 13 mil curtidas, 6,8 mil comentários e 13 mil compartilhamentos. Enquanto isso, o vídeo na página da UFJF havia sido assistido em torno de 180 mil vezes.

Diante da repercussão do caso, a universidade se posicionou em sua página oficial no Facebook: “Prezados e prezadas, apreciamos a discussão de ideias. As manifestações a respeito do vídeo certamente serão objeto de discussão e análise pelos responsáveis. Mas comentários homofóbicos, que contenham palavrões, injúria ou firam a política de comentários da página serão excluídos. Temos cópia de todos eles para não haver dúvidas sobre o procedimento adotado, como a exclusão das manifestações ‘tem de fuzilar’, ‘poderia jogar gasolina no próprio corpo’. #VaiTerDragSim.”

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Já Nino de Barros não se deixou intimidar pelos comentários hostis, e, na página do Femmenino, divulgou, no sábado, outro vídeo rebatendo as críticas, acompanhado de um texto: “Queremos acabar com a família? Sim, mas apenas com um tipo de família, que mantém homens e mulheres presos em padrões do passado.” A drag esclareceu ter dito no vídeo “Na hora do lanche” sobre não existir separação entre brinquedos de meninos e de meninas e não sobre não existir meninos e meninas. Ela questionou por que isso seria um ataque à família tradicional brasileira e traçou um panorama histórico sobre os antigos padrões. “A gente quer que meninos brinquem de boneca e cresçam para ser pais carinhosos, queremos que eles brinquem de vassourinha e dividam as tarefas da casa com suas mulheres. A gente quer que as meninas brinquem de carrinho, gritem, corram e tenham liberdade corporal para crescerem mulheres fortes e donas de si, que não continuem reproduzindo o papel da mulher indefesa que precisa de um macho alfa para protegê-la e sustentá-la. Nós queremos mostrar para as crianças que elas podem ser do jeito que elas quiserem, sem necessidade de continuar replicando as performances de gênero tão quadradas e sufocantes”, diz a nota. Uma das ícones da luta pelas causas LGBTTI no meio acadêmico e na cidade, a drag queen desabafou: “Difícil responder esse tanto de ódio, mas a gente não pode recuar nesse momento!”.

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Conselheiro entra com representação no Ministério

Nesta segunda-feira, o conselheiro tutelar Abraão Fernandes entrou com uma representação no Ministério Público Federal pedindo que seja verificada a conduta da drag queen e da direção do colégio de Aplicação João XXIII. Em sua página oficial no Facebook, Abraão afirma que o vídeo faz apologia à ideologia de gênero e seu conteúdo deseja desconstruir o que foi ensinado pelos pais, “ferindo de morte um dos direitos fundamentais dos pais e responsáveis”. O conselheiro diz, ainda, que, quando Nino se refere à família brasileira de forma pejorativa, irônica e desrespeitosa, a drag não apenas fere as famílias, mas também as crianças que ali estão, já que estas são integrantes da família e, como sujeitos de direitos, devem ser reconhecidos e respeitados.

Abraão defende que “aos pais incumbe o dever de sustento, guarda e educação dos filhos menores” e que educar é bem mais amplo do que simplesmente sustentar, ultrapassa a esfera econômica atingindo questões psicológicas, sociais, religiosas, afetivas, implicando a formação integral do ser como uma pessoa crítica, participativa, política e valorizada em todas as suas potencialidades, sendo responsabilidade da família repassar para as crianças informações sobre os temas mencionados. “A promoção da cidadania e dos princípios do respeito aos direitos humanos e à diversidade não poderá se sobrepor aos direitos dos pais à formação moral de seus filhos, nem interferir nos princípios e valores adotados ao ambiente familiar, conforme assegurado pela Convenção Americana dos Direitos Humanos, Constituição Federal de 1988, Código Civil Brasileiro e demais normas infraconstitucionais. ” (…) Vejo com extrema preocupação essa ingerência estatal crescente no seio da família, entretanto algo que precisa ser esclarecido é que existem leis aprovadas que vão à contramão desta “evolução cultural”, e que garante aos pais o direito de educar os seus filhos e de recorrer judicialmente caso o Estado extrapole os limites legais. Assim, é urgente o combate à ideologia de gênero que, com a noção de igualdade de gênero e o incentivo às relações homoparentais, coloca em risco as diferenças sexuais que possuem função estruturante no desenvolvimento psíquico da criança. O grande dano provocado pela ideologia de gênero consiste em subverter os papéis sociais atribuídos a cada sexo, que reafirmam e consolidam a identidade sexual. Esse dano vai muito além de um desvio dos desejos heterossexuais, de uma estética corporal ou até mesmo de uma revolução dos costumes. Ele chega, na verdade, às raias de uma confusão mental deliberada. Ora, assim como não cabe exigir de uma criança que ela corra antes da fase do engatinhar, também não se deve esperar que uma criança compreenda e assimile a homossexualidade num momento em que ela ainda está construindo a sua identidade sexual por meio da elaboração das diferenças entre os sexos”, afirmou.

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Moções de apoio

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Ainda na segunda-feira, uma moção de apoio à UFJF e ao Colégio de Aplicação João XXIII foi publicada pelo Sindicato dos Trabalhadores Técnico-Administrativos em Educação das Instituições Federais de Ensino de Juiz de Fora (Sintufejuf). “O Sintufejuf vem a público manifestar seu integral apoio à UFJF, ao João XXIII e ao aluno da UFJF, Nino de Barros, e aqueles e aquelas que idealizaram e produziram o vídeo intitulado “Na hora do lanche – especial Dia das Crianças” gravado nas dependências do colégio. Na avaliação do Sintufejuf e de sua base, o referido conteúdo audiovisual sinaliza que a Universidade vem cumprindo seu papel de instituição educadora, cujo objetivo é oferecer educação pública de qualidade e socialmente referenciada. Ao conferir visibilidade a um de seus talentosos estudantes que interpreta a personagem Femmenino, uma drag queen, a UFJF faz-nos refletir sobre a necessidade de desconstrução dos modelos estereotipados de gênero, sobre a cultura do machismo e suas violências contra as mulheres; e, sobretudo, a cerca da necessidade de combate às discriminações sofridas por lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais, a LGBTfobia.”

As Comissões de Direitos Humanos e Cidadania da OAB/JF e de Defesa dos Direitos das Crianças, Adolescentes e Jovens da OAB/JF também se manifestaram a favor da UFJF, do Colégio João XXIII e do artista. “Fomentar reflexão sobre gênero nas escolas é contribuir para a desconstrução da cultura do machismo, que produz das mais diversas violências contra as mulheres, desde a mais tenra idade; para o combate à LGBTfobia, que mata diariamente seres humanos no Brasil; é contribuir para o reconhecimento da diversidade e respeito aos direitos humanos. Trata-se de construir uma educação socialmente referenciada; de observar normas constitucionais como o art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. (…) Omitir-se quanto aos domínios inteiros da vida, quanto à diversidade que marca as vivências humanas é uma escolha, ideológica (na medida em que não há neutralidade), perigosa, ofensiva ao pluralismo, ao direito de aprender a partir de variadas perspectivas”, diz a nota.

Câmara debate moções de repúdio

A polêmica envolvendo o vídeo divulgado com a drag queen Femmenino também ecoou na Câmara Municipal nesta segunda-feira (16). Durante a primeira reunião ordinária do período legislativo de outubro, duas moções de repúdio apresentadas pelos vereadores André Mariano (PSC) e José Fiorilo (PTC) foram lidas e colocadas para apreciação do plenário. A votação, no entanto, acabou não ocorrendo por pedido de avulso de Roberto Cupolillo (Betão, PT), o que faz com que as propostas voltem a ser debatidas individualmente na ordem do dia desta terça-feira. Para justificar o adiamento da apreciação, Betão ressaltou a necessidade de se aprofundar os debates.

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A moção de repúdio apresentado por Mariano é mais concisa e direcionada à direção do Colégio João XXIII. De acordo com o texto do dispositivo, o vereador considera que a instituição escarneceu e desrespeitou a família tradicional. Segundo ele, o desrespeito se justifica pelo uso do que classifica como “ideologia de gênero” e pela desconstrução de “valores éticos e morais das crianças. Já o texto apresentado por Fiorilo é mais longo e traz citações da Constituição Federal, da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), do Código Civil e dos planos nacional e municipal de Educação (PME) para repudiar os eventos realizados na instituição de ensino. Assim como Mariano, Fiorilo revelou entendimento de que houve apologia ao que também chama de “ideologia de gênero”.

Jovem acusa conselheiro de racismo

Mariana Martins, apoiado pela mãe Cristina de Paula, mostra post racista atribuído ao conselheiro Abraão Fernandes (Foto: Fernando Priamo)

Foi em meio a toda essa polêmica que a formanda do curso de Artes e Design da UFJF, Mariana Martins, amiga de Nino, conheceu o perfil do conselheiro tutelar Abraão Fernandes no Facebook. Ela diz que questionou a postura dele quanto a temas da atualidade, como a redução da maioridade penal, e que, diante de suas colocações, teria sido insultada por Abraão Fernandes. Como “prova” da conversa que afirma ter mantido com ele inbox, Mariana mostra um post atribuído ao conselheiro no qual ela o questiona e diz que ele é um “exemplo de bosta” para crianças e adolescentes. Mariana recebeu em resposta o seguinte texto: “Olá, não nos tornamos exemplos de bostas. Quem tem cor de bosta é você. O que mais você esconde nessa cabeça aí? Um monte de coisas, né…menos um pente e champô…vai se cuidar garota.”

A frase causou indignação na família de Mariana, que registrou um boletim de ocorrência contra Abraão por crime de racismo. “Abraão estava incitando a violência, com discurso de ódio, usando a prerrogativa da defesa da família. Para mim, não faz mais diferença se ele é a favor ou não do vídeo do Nino. Um conselheiro tutelar não pode ser racista e nem incitar a violência em relação à diversidade”, afirmou a jovem de 25 anos.

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O conselheiro tutelar, no entanto, negou ter feito o post e sugeriu que ele pode ter sido montado. “Isso nada mais é do que uma manifestação no sentido de me desqualificar, no sentido de dizer: olha quem está criticando a ideologia de gênero: um machista, homofóbico, racista, que é o discurso deles, né? Quem disse que eu falei? Print é construído. Eu não tive, em nenhum momento, diálogo com essa menina, não sei nem quem é, nem o nome dela. Eu jamais, em hipótese nenhuma, iria falar dessa maneira, porque eu nem sabia o teor, estou sabendo agora pela reportagem. Queixa crime qualquer um pode fazer. Vou apresentar minha defesa e mostrar quem está com a verdade. Não disse isso, é uma tentativa de me desqualificar perante a sociedade. Não tive acesso a ela. E, mesmo que tivesse, eu não diria nada semelhante. Eu respeito a diversidade, respeito as religiões de matriz africana, tenho descendência, não tinha porque agir assim”, afirmou, alegando que o público que ele atende, em sua maioria, é exatamente o negro.

 

Procedimento apuratório

Em nota, a Prefeitura informou que repudia toda e qualquer forma de racismo e desrespeito às pessoas e que Abraão pode vir a ser punido. “A Prefeitura de Juiz de Fora repudia toda e qualquer forma de racismo e desrespeito às pessoas. Os conselheiros tutelares são regidos no âmbito municipal pela Lei 9666/99 que, em seu artigo 39, diz: aplicam-se aos conselheiros tutelares, naquilo que não forem contrárias ao disposto nesta Lei ou incompatíveis com a natureza temporária do exercício da função, as disposições do Estatuto dos Servidores Públicos do Município e da legislação correlata referentes ao direito de petição e ao processo administrativo disciplinar”, afirmou. Segundo a administração municipal, os Conselhos Tutelares têm o apoio da Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS) nas áreas logística e administrativa, porém, por serem eleitos democraticamente, por voto direto da população, possuem autonomia no exercício de suas funções. “Diante da publicização do caso em questão, determinou-se a abertura de procedimento apuratório. Em casos gerais de transgressões à lei, denúncias podem ser formalizadas para a SDS, que encaminhará o caso à Secretaria de Administração e Recursos Humanos (SARH) para abertura de sindicância ou até mesmo processo administrativo disciplinar para apuração dos fatos”, informou.

 

Guardião da lei
Para o doutor em educação e consultor em políticas públicas Rudá Ricci, “um conselheiro tutelar não é uma pessoa física, mas representa uma instituição. Ao ser eleito e nomeado conselheiro, ele é pago com recurso público. O que está acontecendo no Brasil é um relaxamento do autocontrole. Estamos nos infantilizando, nos tornando incapazes de nos conter. Um conselheiro é um guardião da lei”, analisa.

Segundo Rudá, o episódio confirma que o Brasil precisa discutir o processo eleitoral em todos os níveis, inclusive na escolha de conselheiros tutelares e até diretores de escolas.

Já Mariana disse que não recuará. “Farei a denúncia na Secretaria de Desenvolvimento Social. Eu tenho os posts. O conselheiro pode dizer o que quiser”, reiterou a jovem.

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