Quase nove anos depois do assassinato da esposa Jomara Amaral, 38 anos, o comerciante Marcos André Canavellas Pereira, 49, será novamente julgado nesta terça-feira (17) no Tribunal do Júri, podendo pôr fim à angústia da família da vítima. A sessão conduzida pelo juiz Paulo Tristão está marcada para 9h30 e será precedida de um ato contra o feminicídio, organizado pelo coletivo Maria Maria, em frente ao Fórum Benjamin Colucci. Na época do crime, ainda não estava em vigor a lei 13.104 de 2015, que tornou hediondo o homicídio no contexto da violência doméstica e menosprezo à condição de mulher, com reclusão de 12 a 30 anos. Após o adiamento de quatro júris, Marcos chegou a ser condenado em 2015 a dez anos. No entanto, o Ministério Público recorreu da pena, considerada baixa diante da gravidade do delito, e conseguiu anular o julgamento, com base na tese de que a decisão do Conselho de Sentença foi manifestamente contrária à prova dos autos.
Jomara tinha 38 anos quando foi atacada pelo marido, inconformado com o pedido de separação, sendo assassinada com golpes de arma branca, como faca ou canivete, no corredor de acesso à residência onde morava, na Avenida Olegário Maciel, no Bairro Paineiras, região central. O crime brutal aconteceu às vésperas do Réveillon, no dia 29 de dezembro de 2009. As filhas do casal, de 10 e 12 anos na época, estariam se preparando para viajar para Cabo Frio (RJ) com a mãe. Elas chegaram a ver Jomara ensanguentada, com pelo menos seis perfurações cortantes. Duas delas atingiram o pulmão e o coração, causando a hemorragia que levou ao óbito. “Vamos ver se desta vez acabam com isso, porque são tantos anos de sofrimento, e ele nunca chegou a ser preso. Não passou nem um dia na cadeia pela morte da minha irmã”, desabafa a despachante Denise Amaral, 49 anos.
A última notícia que a família teve é de que o réu estava morando em Uberlândia, no Triângulo Mineiro. De acordo com a assessoria da Secretaria de Estado de Administração Prisional (Seap), Marcos ficou detido entre os dias 16 de novembro e 21 de dezembro de 2010 no Hospital Toxicômanos Padre Wilson Vale da Costa, em Juiz de Fora, para a realização de exame de sanidade mental. Já em 2016, ele teria sido preso por outro crime e permaneceu entre os dias 2 e 10 de maio no Presídio Professor Jacy de Assis, em Uberlândia, sendo libertado mediante alvará de soltura.
Caso Marina
Segundo uma das integrantes do Maria Maria, Laiz Perrut, o assassinato de Jomara chamou muito a atenção e chegou ao conhecimento do coletivo no mesmo dia do ato de repúdio à soltura do empresário, 38, que confessou a morte da esposa, a psicóloga Marina Gonçalves Cunha, 35, estrangulada no dia 21 de maio no apartamento em que morava, no Bairro São Mateus, Zona Sul. O crime foi mais um caso de violência contra a mulher que chocou a cidade, com grande repercussão. O corpo de Marina ainda foi jogado em uma mata, com o rosto desfigurado, sendo encontrado apenas no dia 31 de maio. A vítima foi reconhecida por familiares em 7 de junho, mesmo dia da prisão preventiva do assassino confesso. Uma semana depois, ele teve o alvará de soltura concedido em caráter liminar por um desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). No entanto, o habeas corpus foi derrubado pelo próprio TJ, e o homem voltou ao Ceresp no dia 27 do mesmo mês.
O empresário foi indiciado pela Polícia Civil por homicídio qualificado por motivo torpe, mediante asfixia, com recurso que impediu a defesa da vítima e por feminicídio, além de ocultação de cadáver e fraude processual. Ele foi denunciado pelo Ministério Público na última sexta-feira (13) pelos mesmos crimes e qualificadores. Para o promotor Juvenal Martins Folly, o acusado “agiu livre e conscientemente, mediante emprego de asfixia, conforme confissão”. “Destaca-se que o delito foi cometido na frente do filho mais velho do casal”, diz o promotor, se referindo a um menino de 6 anos. Quando o crime é praticado na presença de descendente ou ascendente da vítima, a pena de feminicídio, que varia de 12 a 30 anos, é aumentada de um terço até a metade. Marina também deixou duas meninas, de 2 e 5 anos na época.
Juvenal ressaltou o fato de o empresário, “de forma voluntária e consciente”, ter alterado as condições do local do crime, limpando o quarto e lavando as roupas, além de ter escondido o corpo em um carrinho de compras para tirá-lo do prédio, ocultando o cadáver em uma mata fechada. Para o promotor, o acusado atuou de “maneira fria e calculista”, retirando a aliança, brincos e roupas da mulher para ela não ser identificada. “Não satisfeito, o denunciado, com o propósito de evitar que o corpo fosse reconhecido, jogou um produto na região da cabeça da vítima, vindo a desfigurar por completo o rosto de Marina.”
Assim como lutou pela prisão do empresário na ocasião da morte da psicóloga, Laiz garante integrar o novo ato contra o feminicídio nesta terça. “A irmã da Jomara entrou em contato conosco e conhecemos o caso chocante. Ele está solto desde 2009 e isso trouxe muita revolta. O primeiro julgamento também foi remarcado várias vezes. Nosso intuito é estar na porta do Fórum, pressionando por justiça. Não vamos aceitar mais nenhum tipo de violência”, afirma a integrante do Maria Maria, prometendo levar cartazes e muita força. “É uma forma de mostrar que queremos um final para esse caso e todos os outros. Sabemos que as mulheres não vão voltar, mas lutamos por justiça.”
Filhas do casal não devem acompanhar júri
As duas filhas do casal Jomara Amaral e Marcos André Canavellas Pereira, atualmente com 18 e 20 anos, não devem comparecer ao julgamento do pai, segundo informou a irmã da vítima, Denise Amaral. De acordo com ela, a mais velha foi a primeira a presenciar a cena do crime. “Minha mãe acabou de criá-las e faleceu no final do ano passado”, lamenta, já que a idosa, 81, não conseguiu ver o acusado atrás das grades. Com o falecimento da matriarca, as jovens passaram a morar com outra tia, 60. Jomara era a segunda mais nova de oito filhos.
“A morte dela trouxe infelicidade para todo mundo, ainda mais do jeito que foi. As meninas cresceram sem pai nem mãe, e ainda vemos esse assassino solto por aí. A pergunta que todo mundo faz é por que ele nunca foi preso. Como minha família não tem dinheiro para correr atrás, vimos que neste país não existe justiça para todo mundo. Lembrar todo dia essa mesma história traz muito sofrimento”
Para ela, o fato de o primeiro julgamento ter sido anulado é considerado bom. “O promotor está tentando aumentar a pena dele. A expectativa é de que saia algemado do Tribunal, para, pelo menos, começar a pagar por esse crime. Mas como está respondendo em liberdade, sabemos que isso será difícil.”
Denise também pretende participar do ato contra o feminicídio, no qual muitas mulheres deverão usar blusas com a foto de Jomara. “Esperamos que desta vez seja tudo resolvido e que ele pague pelo o que fez. As filhas não querem ir ao julgamento porque não querem vê-lo e nem participar disso. A mais nova nunca mais viu o pai. Até tentaram perdoar, mas para elas é muito difícil.”
Família acredita em crime premeditado
Na primeira vez em que foi julgado por matar a esposa, em maio de 2015, Marcos André Canavellas Pereira alegou motivos passionais. Na frente do juiz que presidiu a sessão na época, José Armando Pinheiro da Silveira, ele confessou o crime, alegando já ter sido usuário de cocaína e ter feito uso de grande quantidade do entorpecente na noite que antecedeu o homicídio. O acusado acrescentou ter matado a mãe de suas filhas por ter descoberto que ela o traía com um amigo do casal. No dia do crime, ele teria visto uma conta de telefone com ligações da mulher para o suposto amante e teria procurado a vítima. Ainda conforme suas declarações em juízo, durante a discussão, a esposa teria afirmado estar indo viajar para Cabo Frio, onde encontraria o namorado, momento em que Marcos teria sacado um canivete preso ao chaveiro e desferido os golpes contra ela.
Já a irmã da vítima, Denise Amaral, afirma que Jomara queria se separar há meses. Entretanto, o marido não aceitava o fim da relação e passou a agredir a mulher. Segundo ela, a filha mais velha do casal chegou a presenciar o momento em que a mãe foi golpeada e, junto com a irmã, precisou passar por tratamento psicológico.
Para Denise, Marcos agiu de forma premeditada, já que teria escondido o carro em uma rua próxima para não ser identificado. “Jomara estava pedindo a separação, e ele já tinha já dado uma ‘coça’ nela antes em uma festa. Depois da morte, encontramos uma sacola cheia de roupa dela toda picotada. Acreditamos que foi ele para impedi-la de viajar para Cabo Frio”, diz a irmã. “Quando ela bateu o pé e disse que ia, ele a matou.”
O julgamento ocorrido em 2015, seis anos depois do crime, chegou a ser adiado quatro vezes. Em uma delas, o réu estava sem advogado, o que impedia a realização júri. Em outra, o promotor passou mal e não pôde comparecer. Toda essa morosidade causou sensação de impunidade à família da vítima.
Mais de uma versão dos fatos para os jurados
Segundo informações do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), a primeira condenação de Marcos André Canavellas Pereira foi anulada porque a decisão do corpo de jurados não encontrou respaldo nos elementos probatórios, sendo manifestamente contrária à prova dos autos. Com isso, houve a cassação do veredicto e submissão do réu a novo julgamento, diante da análise da pena imposta, de dez anos de reclusão. “É cabível a anulação do julgamento quando a decisão do Conselho de Sentença for manifestamente contrária à prova dos autos, pois não basta que os jurados simplesmente acolham uma das versões apresentadas em plenário, é necessário que a versão escolhida tenha o mínimo de plausibilidade diante das provas produzidas.”
Marcos foi denunciado por homicídio qualificado por motivo torpe, meio cruel e recurso que dificultou ou tornou impossível a defesa da vítima, sendo condenado em 2015 a dez anos de reclusão em regime inicial fechado. O Ministério Público apelou e pediu a cassação da sentença e a submissão do réu a nova sessão no Tribunal do Júri, pela majoração da pena-base do acusado e pela adoção de uma menor redução na pena. “Nota-se que, em plenário, realmente foram apresentadas mais de uma versão dos fatos para os jurados: a primeira, sustentada pela acusação, de que o réu praticou o delito pelo qual foi pronunciado; e as demais, apresentadas pela defesa, de que o réu teve perda temporária dos sentidos cognitivos, de que o crime deve ser desclassificado para lesão corporal seguida de morte, de que deve ser reconhecida a semi-imputabilidade do acusado ou o privilégio no crime de homicídio”, coloca o TJ ao avaliar o pedido.
O Tribunal também explicita depoimentos de que o réu dizia que “se a vítima não ficasse com ele, não ficaria com mais ninguém”, sugerindo o sentimento de posse dele sobre a mulher, constantemente ameaçada e agredida por ele. Em seguida, o desembargador conclui: “No caso dos autos, pode ser que o réu estivesse absorvido por um choque emocional, mas, definitivamente, não houve injusta provocação da vítima, além de não estar presente o requisito da imediatidade. O réu e as testemunhas não relataram nenhuma discussão entre o casal na ocasião dos fatos, de modo que não há como sustentar a ocorrência de injusta provocação da ofendida. O próprio acusado também relatou em plenário as agressões anteriores praticadas contra a vítima e que ela inclusive propôs a separação antes dos fatos narrados.”
Ainda conforme o TJ, nos autos há indícios de crime premeditado. “A ação delituosa teria sido planejada pelo acusado, que teria dispensado a empregada do casal para evitar testemunha da execução da ofendida, que morreu assim que chegou à sua casa.” Desta forma, concluiu o Tribunal, “a decisão do Conselho de Sentença, que reconheceu a prática de homicídio privilegiado, não encontra respaldo nos elementos de convicção colhidos, ou seja, é totalmente contrária à prova dos autos”.
A anulação do primeiro julgamento foi publicada em julho do ano passado. A família de Jomara espera que outra sentença, com uma pena superior, seja emitida na nova sessão desta terça-feira (16), quando Marcos volta a sentar no banco dos réus do Tribunal do Júri.