Elas foram chegando ao encontro marcado para a entrevista, uma a uma, com cabelos, peles, estaturas, roupas e trejeitos variadíssimos. Um detalhe, perceptível talvez somente a outra mulher, como a repórter, era gritante, ainda que silencioso: o olhar que trazia uma ansiedade boa, acalentado por uma certeza: seremos ouvidas. E foram. É exatamente esta uma das premissas do Coletivo Marielle Franco, formado por professoras, técnicas-administrativas em educação (TAEs) e alunas da UFJF, romper com o silenciamento de violências, abusos e desigualdades de gênero, sobretudo cometidos no ambiente acadêmico, conforme explica a professora do João XXIII Carolina Bezerra, uma das que iniciou a mobilização do grupo, que atualmente tem cerca de 17 integrantes.
“A universidade já vinha realizando campanhas sobre diversidade, contra violências de gênero, racismo e diversas outras questões. Ao mesmo tempo percebíamos que havia muitos, muitos casos de alunas que vinham sofrendo assédio de professores, um professor em especial, e que se sentiam acuadas para fazer denúncias por medo de represália em sua vida acadêmica e profissional, apesar de a instituição ter uma ouvidoria especializada para isso. Mas percebemos uma falta de capacitação para o acolhimento, tanto que as alunas se sentiam mais à vontade para romper o silêncio com professoras do que com um órgão institucional, o que é perfeitamente compreensível. Mas com a grande quantidade de casos e de reincidência, foi aí que percebemos que precisávamos fazer alguma coisa.”
Do ponto de partida que motivou a mobilização, os casos de assédio, que culminaram na ação “A universidade é pública, meu corpo, não”, lançada no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, novas demandas foram sendo identificadas e foram incorporadas na elaboração do coletivo. “Convidamos professoras de diversos departamentos, e o coletivo tem sido também um espaço de acolhimento para nós, enquanto acadêmicas, porque vivenciamos diversas violências dentro deste espaço: em relação a licença maternidade, à distribuição de carga horária, ao direito de voz, em vários níveis”, destaca Carolina.
Joana Machado, professora da Faculdade de Direito, acrescenta, neste sentido, que uma das preocupações do coletivo é ter coerência entre discurso e ação. “As ações afirmativas da universidade têm um alcance muito relevante junto à sociedade, mas ainda assim, acontecem abusos no interior do ambiente acadêmico. Uma das nossas frentes é capacitar pessoas, começando por nós mesmas e procurando multiplicar isso para os mais diversos setores da instituição, para acolher e encaminhar devidamente as vítimas de qualquer tipo de abuso, não só os que saltam mais aos olhos como estupros e assédios, mas também aquelas que acabam tendo conexão e alimentando essas outras: interrupções de sala em sala de aula, por exemplo, coisas que ameaçam a permanência da mulher na universidade, que acaba se manifestando como um ambiente de machismo, em que ela não se sente à vontade”, explica a docente. “Nosso trabalho como coletivo passa pela desconstrução disso. Para não reproduzirmos o que combatemos, que é o distanciamento, barreiras institucionais, legais e emocionais, a arrogância que permeia meio acadêmico, da humilhação, do desmerecimento, e vários outros entraves.”
A institucionalização do coletivo também tem, segundo a TAE Flávia Lopes, um papel importante no levantamento de dados sobre abusos (de todas as naturezas) contra mulheres no cenário da universidade. “Não só da UFJF em si, mas de uma forma mais ampla mesmo. No país inteiro, há relatos parecidos de violência de gênero, mas os dados são muito escassos. É muito difícil ter acesso a eles porque o que vemos acontecer no Brasil é que as universidades têm medo de ‘se sujarem’ ao fazerem estes levantamentos. A capacitação e a organização do coletivo em grupos de trabalho, por exemplo, permitirão que criemos rotinas para quantificar, mapear e discutir o cenário atual, para podermos direcionar as ações de maneira efetiva e mais importante, preventiva.”
Além dos portões da universidade
Atualmente, as discentes que participam do coletivo são pesquisadoras da área de gênero, para dar um aporte teórico às ações e também para fomentar grupos de pesquisa sobre o tema, ampliando a discussão, inclusive para além da UFJF. “Os currículos escolares não trazem a história das mulheres, não falam que a história do Brasil é permeada de estupros, de como a mulher, ao longo de todos esses séculos, foi tratada com uma dimensão privada e pública ao mesmo tempo. Há, ainda a expectativa de que precisamos nos casar, precisamos ser mães e parâmetros sobre como isso deve acontecer, estabelecendo o que acreditam ser nosso papel social. É preciso trabalhar para desconstruir essa dimensão no nível da educação, sobretudo no ensino de base, porque estas concepções são formadas desde a infância. E é na universidade que estamos formando os educadores”, diz a pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade, Educação e Diversidade (Gesed).
As integrantes estão mobilizadas, no momento, para transformar o coletivo em um projeto de extensão da UFJF, para assim poderem abrir grupos de estudos e trabalho específicos, promoverem eventos e, de forma geral, potencializar o alcance das atividades. “Aí sim poderemos falar em capacitação, porque teremos ferramentas para detectar qual tipo de acolhimento é necessário e também para formar pessoas que sejam capazes de atuar neste sentido de forma eficaz, dar o encaminhamento jurídico necessário e juntar a nossa expertise com pessoas que vêm de fora da universidade e podem contribuir muito neste processo, porque atualmente, por falhas no sistema, a vítima é posta em uma condição que tem que provar várias vezes tudo que aconteceu, além de se sentir sozinha. A formação de grupos de pessoas com as mesmas experiências também fortalece muito essas mulheres, e unir a academia à universidade acrescenta muito também neste sentido”, pondera Joana.
“Além disso, é imprescindível que atuemos na instância municipal também, combatendo absurdos como a retirada de qualquer abordagem de gênero do Plano Municipal de Educação, como foi aprovado pela Câmara Municipal”, acrescenta Carolina Bezerra, destacando que outra importante iniciativa relacionada ao grupo é a criação da especialização “Relações de gênero e sexualidades UFJF”, que tem inscrições abertas até o dia 30 de junho.
O coletivo não se furta em reconhecer a diversidade da população de mulheres da UFJF e preocupa-se com a possibilidade de representá-las genuinamente. “Mas talvez a questão não seja exatamente a representatividade neste primeiro momento. É a escuta e o reconhecimento de que cada uma vem de contextos diferentes que precisam ser compreendidos, ouvidos e incorporados, em um processo de avaliação constante inclusive da nossa conduta como mulheres”, pontua a também pesquisadora do Gesed Iuli Melo.
‘Nossa força está cada vez maior e mais rápida’
Apesar do muito trabalho, das dificuldades de conciliação de rotinas e de barreiras históricas para desenvolverem a ação a que se propõe, o coletivo Marielle Franco já obteve um importante aval da irmã da vereadora carioca executada no dia 14 de março, Anielle Silva. “Ela entrou em contato conosco e foi muito emocionante para todas nós, porque ela relatou que essa seria uma causa pela qual a Marielle militaria, uma homenagem que a honraria. E foi pensando na importância da figura dela que Iuli sugeriu este nome, uma mulher que era de periferia, negra, LGBT, e que ocupou um espaço de poder e ação e por isso foi executada, exatamente o tipo de violência que buscamos combater, prevenir e debater”, pontua Carolina Bezerra.
Na semana em que as mulheres argentinas deram um passo importante contra a violência de gênero, com a aprovação da descriminalização do aborto junto à Câmara dos Deputados do país, Joana Machado fala sobre a importância da mobilização popular para tomadas de decisão no Judiciário. “Temos um Congresso que é o mais conservador dos últimos tempos e de lá surgem propostas que acabam provocando o acirramento da violência contra as mulheres. Ainda que esta instituição, formada por homens brancos, heterossexuais e de classe média tomassem decisões – como a que foi tomada na Argentina – em prol do combate a esta violência, isto poderia criar uma rejeição junto à população. Por isso é importante que estes movimentos venham da base para o topo, com a conscientização popular caminhando junto, e é por isso que procuramos estruturar o coletivo da maneira mais horizontal possível, pontua.
Para a pesquisadora Iuli Melo, é importante dialogar com o contexto nacional e mundial, até porque a mobilização de coletivos de mulheres, sobretudo via internet, tem proporcionado avanços importantes. “O que não significa que vamos dar qualquer grande passo rapidamente, mas estamos em diálogo constante com o que acontece, o que é fundamental. O termo ‘cultura do estupro’ existe desde 1970, mas o conhecimento amplo dele e a aplicação dele para o fenômeno de violência contra a mulher só veio à tona com aquele caso do estupro coletivo que ocorreu no Rio de Janeiro em 2016, com a mobilização dos movimentos sociais na internet. Então, gente tem que pensar que existe, sim, um avanço conservador e reacionário, mas nossa força de mobilização também está cada vez maior e mais rápida, já caminhamos muito.”