Domingo, 15 de março de 2020. Dois dias após a confirmação preliminar do primeiro caso suspeito de infecção pelo novo coronavírus em Juiz de Fora, a médica Sanny Alves Henriques, 43 anos, assumiu o plantão na Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Norte com a máscara N95 que ela já possuía por sempre se prevenir diante de casos infecciosos, como tuberculose ou meningite, já que atua no setor vermelho (casos graves). Mesmo com as notas técnicas emitidas pela Anvisa e pelo Ministério da Saúde recomendando a paramentação diante da pandemia, o comportamento dela foi estranhado por alguns profissionais de saúde. Porém, instruídos por ela, que estava ligada nas notícias ao redor do mundo, trataram logo de também garantirem suas máscaras, além de outros EPIs disponíveis na farmácia da unidade e dispensados conforme necessidade. A grande demanda, no entanto, teria resultado em algumas regras restritivas para a retirada dos materiais e, conforme Sanny, muitos dos cerca dos 180 funcionários da unidade acabaram ficando expostos naqueles primeiros dias de trabalho atípico.
Segundo a médica, a triagem de pacientes com sintomas gripais também não seguiu os protocolos de isolamento naquela primeira semana na UPA Norte. “Na segunda-feira (16 de março), fui fazer outro plantão, porque estava devendo horas, e outra médica ficou desesperada porque foi atender paciente com sintomas gripais característico de Covid, que não foi recebido com prioridade, nem isolado, e ainda entrou sem máscara.” A soma dos fatores de risco às equipes de saúde e à própria população diante de um vírus extremamente contagioso a levou a tomar providências. Além de fazer uma denúncia ao Conselho Regional de Medicina (CRM) pela falta de disponibilização dos EPIs, no dia 19 do mês passado, ela criou um grupo no WhatsApp para reunir quem trabalhava ali e também queria se proteger. Com outras voluntárias, a médica conseguiu contribuições que resultaram na doação de centenas de kits de EPIs não só para a UPA Norte, mas também para outras unidades de pronto atendimento, Regional Leste, Hospital Regional Doutor João Penido e equipes de transporte inter-hospitalar.
Técnico estaria em estado grave
Quinta-feira, 26 de março de 2020. Após sua atitude ter sido classificada como “motim” pela administração da UPA, como contou Sanny, ela nem levou seu uniforme para assumir o plantão naquele dia. Já sabia o que a esperava, porque uma colega médica, também à frente da iniciativa, já havia sido demitida na véspera. No entanto, para maior surpresa dela, a carta de demissão era por justa causa, apontando as razões de ato de improbidade; incontinência de conduta ou mau procedimento; desídia no desempenho das respectivas funções; ato de indisciplina ou de insubordinação. “Sem advertência, sem nada que me desabone nos seis anos que estava na unidade. Estou em contato com advogada e vou entrar na Justiça. Como vou concordar com justa causa?”
Outras duas médicas que eram contratadas como pessoa jurídica (PJ) também foram desligadas, sendo que uma delas optou por sair devido à insegurança encontrada. Os casos também são acompanhados pelo Sindicato dos Médicos, que em 21 de março havia expedido nota falando que a falta de álcool gel e máscaras cirúrgicas em algumas unidades de saúde, incluindo a UPA Norte, estava se tornando um problema a mais para os profissionais da saúde em Juiz de Fora. “Esta situação acendeu o alerta vermelho, pois há aumento do número de casos confirmados e suspeitos de pessoas infectadas com coronavírus, destacou o presidente Gilson Salomão na época, que também encaminhou relato ao CRM e fez denúncia junto ao Conselho Municipal de Saúde. “Como os profissionais estão na linha de frente, acabam se contaminando”, disse Salomão naquela oportunidade, sem saber que estava prevendo o quadro atual: conforme relatos das médicas ouvidas pela Tribuna entre quarta e esta quinta-feira (16), pelo menos cinco profissionais de saúde da UPA Norte teriam sido afastados por sintomas da Covid-19. O caso mais grave é de uma técnico em enfermagem que estaria entubado no CTI do HPS.
Sintomas da doença
Outra técnica em enfermagem que também apresentou sinais de infecção pelo novo coronavírus, de 52 anos, conversou com a Tribuna. “Os sintomas começaram dia 7, fui ao hospital (particular) dia 8, fiz raio X da face e do pulmão, e medicada como se fosse sinusite. Não tendo melhoras, sem paladar e mal-estar, retornei ao hospital na segunda. Foi realizada uma tomografia que deu turva e outros exames. Agora estou sendo medicada para Covid-19. Fiz o teste, mas ainda não saiu o resultado.” Afastada do trabalho desde o dia 8, ela segue seu isolamento em casa, onde tenta manter distância do marido, 60, dos três filhos, de 23, 27 e 29 anos, e da neta, 6.
“Sei também de outras duas técnicas em enfermagem, de uma médica e do técnico que está grave no HPS. Todos trabalham na UPA Norte. Sou do setor vermelho e acho sim que faltaram EPIs para nós. Chegamos ao plantão à noite e só tinha máscara transparente. Aí toda equipe cruzou os braços junto com alguns médicos, que nos apoiaram e foram mandados embora. Fomos coagidos, pegaram todos os nomes para demitirem, só que agora não vão fazer mais isto, porque estão com medo, já que muitos funcionários estão afastados.” A profissional de saúde acrescentou que chegaram a ser feitas fiscalizações por denúncias de falta de EPIs na UPA Norte, mas sempre acompanhadas da direção. “Vão atrás perguntando se acontece algo, e lógico que (os funcionários) vão falar que não, porque têm medo de serem mandados embora.”
Modelo ideal teria sido adotado após reivindicação
Apesar de os problemas apontados pelas profissionais de saúde, a médica que acabou sendo demitida por justa causa da UPA Norte, Sanny Alves Henriques, ponderou que a situação atual de EPIs e de triagem na unidade melhorou: “O modelo ideal de atendimento começou a ser implantado após nossas reivindicações.” No entanto, ela lembra que, desde final de janeiro, a Anvisa emitiu nota técnica sobre a pandemia e já falava sobre os uso de EPIs por profissionais de saúde. Em fevereiro, outra nota confirmou. E, em março, o Ministério da Saúde também orientou. “E não basta ter todos os EPIs, como máscara, face shield (protetores faciais), óculos, capote com touca e luvas. O profissional tem que ser treinado para ser paramentado e para desparamentar. Na Itália, por exemplo, a maior contaminação era nesse momento. Os cuidados diante dessa pandemia virulenta, de contágio fácil, são maiores e diferentes do que já estávamos acostumados com outras doenças contagiosas, como tuberculose. Outro agravante é que, a partir do momento em que o profissional se contamina, se torna um vetor, inclusive para outros pacientes”, avaliou a médica, acrescentando que apenas as máscaras cirúrgicas distribuídas naqueles primeiros dias não eram suficientes. “UPA não é hospital, não tem os mesmos equipamentos e nem lavanderia para esterilização. Mas é porta de entrada para paciente SUS. Até a técnica de trabalho estranhou que eu estava usando máscara.” O problema foi maior, segundo Sanny, porque a UPA estaria sem diretor técnico, a quem poderiam recorrer, desde agosto do ano passado, quando o profissional precisou se afastar por problemas de saúde. “Nosso medo era a doença estourar e explodir na UPA, porque a Zona Norte tem praticamente a metade da população de Juiz de Fora.”
Outra médica que trabalhava há cinco anos na UPA Norte, e que foi demitida no fim de março, chegou a atuar como diretora clínica, mas deixou o cargo pouco antes de ser desligada, no dia 25 de março. “A UPA tem vários problemas como qualquer outra unidade, sabemos como é o serviço público. Mas é uma sobrecarga muito grande, e a administração interfere muito na conduta médica. Também vou fazer uma denúncia ao CRM”, disse a profissional de 34 anos, que preferiu ter a identidade preservada. “Os EPIs são imprescindíveis para o atendimento dos pacientes com Covid, porque, se você se infectar, vai contaminar a equipe inteira. E não podemos colocar em risco os outros pacientes também. Mas começamos a ter que brigar para conseguir uma máscara para fazer atendimento dos pacientes, porque não estavam fornecendo para a gente, nem para a enfermagem, no setor vermelho, que estava em contato direto com pacientes graves, nem para a equipe da triagem e nem para o médico que estava atendendo na porta.” Ainda conforme ela, a máscara disponibilizada não era cirúrgica, mas de TNT. “Cheguei a falar que se não trocassem minha máscara eu não atenderia mais, sem equipamento de proteção. Acabou que a enfermagem também se rebelou contra a direção e falou que só iria para o setor com equipamento adequado. Por conta do questionamento da equipe inteira, foi disponibilizado. Só desse jeito que conseguimos os EPIs.”
Treinamento
Ela também reclamou da falta de treinamento para lidar com a pandemia. “Sempre apoiei muito a Sanny, e entramos nesse movimento, que se tornou muito grande, para conseguir os equipamentos, pedindo doações, não só para a gente. E para minha surpresa, começamos a ser demitidas. No caso da Sanny, ainda tentaram colocar justa causa, o que eu, como diretora clínica, falo que nunca existiram. Faço questão de testemunhar a favor dela. Ficou muito claro que a demissão foi por conta desse movimento. Porque em tempos de contratações, demitir médicas como nós, de tempo de casa e com experiência, prontas para serem linha de frente? Foi muita coincidência ser justamente aquelas que estavam brigando pelos EPIs e que fizeram a denúncia. Claro que nunca vão admitir isso, mas ficou muito nítido para a gente.” Segundo ela, justamente parte da equipe que lutou, é que está contaminada. “Fiquei muito triste. Inclusive tem um deles que está no HPS com suspeita de Covid e, pelo que fiquei sabendo, está muito grave. Chorei por pensar que poderia ser evitado. Sabemos que existe o risco da contaminação, por erro de uso de EPI ou qualquer outro motivo, mas não por não ter ali direito o que usar. A equipe estava muito exposta. Para mim também estão sendo coagidos de cobrar pelo medo de serem demitidos. A primeira recomendação é a nossa proteção. Mas como fazer isso se a gente cobra e é mandado embora?”
Uma terceira médica à frente da mobilização na UPA Norte optou por se desligar do trabalho no dia 22 de março, antes de ser demitida. “A situação lá ficou crítica já desde o início pelo não fornecimento de EPIs. Pedi para sair. Eu e a Sanny fizemos o que estava ao nosso alcance, mas em vão”, desabafou a profissional, de 47 anos, preocupada também com o despreparo por precisar cuidar de sua mãe, do grupo de risco, e de três filhos. “Alguns profissionais estão contaminados por lá. Um grave no HPS. Não tivemos diálogo com a direção em momento algum, que recusou qualquer tipo de reunião”, lamentou.
A quarta médica prejudicada após a mobilização, 35, corroborou que a escassez de EPIs na UPA Norte as levou a buscar outras formas de paramentação. “Não nos deram nenhum retorno sobre a compra ou busca para adquirir esses equipamentos. Então fizemos pesquisas e publicamos nas redes sociais manifestação sobre essa falta. Nos incluímos em outros movimentos para conseguirmos os capotes e máscaras. Montamos grupo no WhatsApp com os profissionais para não fazerem atendimentos sem EPIs, explicando a necessidade de falarmos sobre isso. Começamos o movimento numa semana e, na outra, fomos demitidas.”
Direção de UPA Norte diz que uso de EPI sempre foi prioridade
Em nota enviada pela assessoria, a direção da UPA Norte, ligada ao grupo do Hospital São Vicente de Paulo, informou que o uso correto do EPI entre seus colaboradores sempre foi uma das prioridades, atendendo as determinações da Organização Mundial de Saúde (OMS). “Quando se instalou o risco de pandemia, houve o empenho, tanto dos gestores da UPA Norte, como dos órgãos públicos no sentido de se adequar ao novo momento, seguindo as orientações dos serviços públicos de saúde contidos na nota técnica da Anvisa, n° 04/2020, de 30 de janeiro de 2020, e suas atualizações. No que tange à alegada falta de qualidade dos EPIs, temos a salientar que a UPA Norte sempre usou equipamentos registrados pela Anvisa, órgão responsável por tal controle.”
Quanto aos questionamentos à administração pela ausência de EPIs, a diretoria garantiu que sempre disponibilizou tais equipamentos aos funcionários, contudo, de acordo com as normativas do Ministério da Saúde, houve adequação de seu uso conforme a necessidade. “Prova dessa afirmativa é materializada através das fichas de controle de distribuição de equipamentos de proteção individual, devidamente assinada por cada profissional.”
A administração da UPA Norte também garantiu ter se adequado quanto à triagem e isolamento dos pacientes, instalando uma tenda em espaço externo da unidade para maior segurança dos usuários e funcionários. A medida foi tomada com base na orientação das normativas do Grupo Brasileiro de Classificação de Risco, responsáveis pela implantação do Protocolo de Classificação de Manchester, publicado em 24 de março, diante da Covid-19. “A unidade é a única de pronto atendimento no município de que possui leito de isolamento, segundo as normativas da OMS”, ressaltou.
Sobre o grupo de WhatsApp criado pelas médicas, a diretoria da UPA Norte declarou não ter ingerência sobre os assuntos nele tratados, por não fazer parte do mesmo e não fez qualquer ligação do movimento de arrecadação de EPIs com as demissões. “Toda dispensa de profissionais da unidade são realizadas pela filosofia de trabalho da empresa, respeitando as leis trabalhistas.” A UPA Norte reforçou que “a assertiva das médicas no que tange à falta de explicações quanto aos EPIs é deveras contraditória, visto que diariamente as orientações técnicas eram repassadas pela segurança do trabalho, segundo as normativas da Anvisa, não havendo, em momento algum, falta de EPIs.”
Administração nega casos confirmados
Já em relação à contaminação de profissionais da saúde pelo coronavírus, a administração da unidade disse que, conforme dados epidemiológicos da Vigilância Sanitária de Juiz de Fora, não houve até o momento nenhum caso confirmado de paciente com Covid-19 atendido na UPA Norte, “não tendo como vincular o contágio dos funcionários aludidos com a unidade, visto que o vírus é de disseminação comunitária, além de que vários funcionários prestam serviço em outros estabelecimentos de saúde”. “É importante frisar que a UPA Norte está sendo periodicamente fiscalizada pelas autoridades, tanto do Executivo, quanto do Legislativo municipal, não havendo qualquer reclamação de falta de equipamento de proteção, de sua qualidade, nem tampouco da assistência prestada no tocante aos usuários suspeitos de Covid-19.”
CRM apura denúncias
O delegado do Conselho Regional de Medicina (CRM), José Nalon, confirmou ter sido contatado pela médica Sanny Alves Henriques em março. “Ela mencionou que faria a denúncia (sobre a falta de EPIs na UPA Norte) e que a protocolou lá na delegacia. Mas pelo fato da quarentena, não tive acesso. Como não depende de despacho, a denúncia já deve estar na Corregedoria em Belo Horizonte para instauração de sindincância e averiguação.”
Sobre as demissões das médicas da UPA Norte que lideraram um movimento para aquisição de EPIs, incluindo a de Sanny por justa causa, Nalon disse ter sido informado da situação pela reportagem. “Questão administrativa trabalhista é de responsabilidade da empresa contratante. Mas considerar justa causa é meio complicado. Se a decisão unilateral não tiver algo muito flagrante de desrespeito às normas ou de prejuízo às instruções cabe um procedimento administrativo prévio. O patrão tem direito de mandar embora indenizando o empregado, mas acho que toda demissão por justa causa deve ter procedimento prévio. Sugiro que ela constitua advogado, e vamos acompanhar essa sindicância também.”
Presidente da Comissão de Saúde Pública e Bem-Estar Social da Câmara Municipal, o vereador Adriano Miranda (PRTB) não tinha conhecimento das demissões de médicas ocorridas na UPA Norte, mas disse que a contaminação de profissionais de saúde já era esperada com a evolução da Covid-19 em Juiz de Fora. “Por mais que os profissionais usem os EPIs, estão mais expostos, e o risco de contaminação é maior, mesmo que tomem todos os cuidados. Por isso, a disponibilização dos EPIs é fundamental e inquestionável. A falta desses equipamentos não pode acontecer em hipótese alguma, e a Prefeitura deve fiscalizar isso.” Segundo ele, a comissão tem procurado estar mais próxima da Secretaria de Saúde para saber as medidas efetivas no enfrentamento ao novo coronavírus.
Questionado sobre a falta de EPIs nas UPAs durante audiência pública na tarde desta quinta-feira (16), o secretário interino de Saúde, Rodrigo Almeida, destacou que a administração das unidades é terceirizada e que a falta dos equipamentos é um descumprimento contratual. “As UPAs têm que fornecer, está nos contratos.”
Campanha consegue 500 kits em fim de semana
Parceira do Rotary Club Passaporte Estrela Sul, a empresária Andréa Creston foi uma das idealizadoras da campanha para arrecadação de materiais e confecção de EPIs, após ser procurada por duas das médicas desligadas da UPA Norte. “Falaram do problema que estavam enfrentando e que estavam muito preocupadas pela falta de equipamentos de segurança para trabalharem junto à rede de hospitais e UPAs da cidade. A Sanny disse que, inclusive na véspera, tinha feito denúncia no CRM.”
Com a experiência adquirida em campanha voluntária de vacinação contra febre amarela em 2018, quando seu marido foi gravemente acometido pela doença, Andréa decidiu abraçar a ideia. “Liguei para o Guilherme (Côrtes) para saber a demanda, como infectologista. A esposa dele também já havia iniciado campanha. Fomos atrás de todos os insumos necessários para a fabricação dos capotes. A Faculdade de Engenharia da UFJF ajudou com a produção em larga escala dos protetores faciais. Fui atrás de mais costureiras e confecções que pudessem abrir suas portas e entrar com trabalho voluntário no fechamento dos kits. Consegui, em um final de semana, que uma confecção produzisse 500 kits de EPIs, com capotes e toucas, e isso deu uma alavancada muito grande. Foi tomando proporção e assumimos a responsabilidade da distribuição também.”
A doação foi estendida a profissionais da segurança pública. “Mas o principal foco sempre foi o pessoal que estava na linha de frente para atender a demanda da Covid-19. Tivemos apoio de várias empresas e queremos agregar outras, porque é um material que vamos precisar muito ainda. A Covid-19 não entrou no ápice aqui. Como são materiais descartáveis, quanto mais é melhor.”