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A difícil convivência entre moradores em situação de rua e suas vizinhanças

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Moradores em situação de rua se abrigam com frequência em frente à agência Caixa, na Rua Padre Café (Foto: Fernando Priamo)
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Colchão, peças de roupas, papelão, garrafas e outras embalagens misturadas a sacolas tomam toda a calçada na esquina das ruas Barão de São Marcelino com Melo Franco, no Bairro São Mateus, na Zona Sul. Sem ter como seguir pelo passeio, pedestres precisam andar pela rua, correndo o risco de serem atingidos por carros. A situação, que se repete dezenas de vezes ao longo do dia, mostra a dificuldade de convivência entre moradores e um grupo de pessoas que se instalou no local e tem passado dias e noites na calçada, onde faz todas as rotinas diárias, como trocar de roupa, fazer as necessidades físicas, comer, beber e dormir. A cena flagrada nesse trecho também é testemunhada em outros pontos do mesmo bairro, como no entorno da igreja católica na Rua São Mateus e na Rua Padre Café, ao lado da Caixa Econômica Federal. No caso da ocupação deste trecho, houve até mesmo um boato de que a agência seria fechada no local por conta da fixação de um grupo no entorno. A assessoria confirmou que a mudança de lugar vai ocorrer, mas negou que seja por conta das pessoas em situação de rua, mas sim devido a adequações estruturais do imóvel exigidas pelo Corpo de Bombeiros.

O que se vê em São Mateus, se repete em outros pontos de Juiz de Fora. Ao percorrer a área central, é possível encontrar pessoas em situação de rua em vários pontos, como sob as pontes ao longo do Rio Paraibuna. As ações testemunhadas pela reportagem ajudam a entender a complexidade da situação do atendimento a esses cidadãos. Sem ter uma política pública efetiva, o que se vê é a presença desta população de rua cada vez em mais locais. No entanto, a cidade não tem um levantamento atual deste público. A última iniciativa neste sentido é um diagnóstico realizado em 2015, que apontava 879 pessoas em situação de rua no município.

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Agora a expectativa é de que haja mudanças no setor, já que a Prefeitura deixará de ter convênios de assistência e passará a ter parceiros. Ao mesmo tempo, em nível estadual, um fórum técnico, que será realizado nesta quarta e quinta-feira na cidade, assume a missão de buscar uma inédita política para lidar com os desafios de atender esta população. Até lá, muitas das pessoas que vivem nas ruas não demonstram intenção de aderir aos serviços oferecidos atualmente pelo município, como os pernoites em abrigo.

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Difícil convivência

Enquanto a reportagem estava na Rua Barão de São Marcelino, parte dos materiais espalhados era recolhida pelos funcionários do Demlurb. O grupo que estava no trevo era formado por quatro homens e uma mulher, mas os moradores do entorno disseram que há dias em que outros se aproximam, principalmente nos fins de semana. Além do lixo e de todos os objetos que impedem a passagem, os moradores reclamam do mau cheiro e do incômodo causado por fezes deixadas em frente às suas moradias. “Elas tiram as roupas e fazem suas necessidades fisiológicas na frente das nossas casas. De pé, na frente de quem passar”, contava a moradora Cláudia Seccadio, enquanto a mulher que faz parte do grupo que ocupa o trevo trocava de roupa na rua, vestida somente com a roupa intima por alguns momentos. “Quando chega à noite, eles montam uma espécie de acampamento. A esquina onde fica o colchão vira uma cabana improvisada, aí é que ninguém consegue passar pela calçada mesmo.”

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A irmã dela, Lígia Rosa Seccadio, disse que já passou de casa em casa instruindo os vizinhos a não oferecer alimentação e nem meios para que eles se fixem no local. “Mas é muito difícil, porque, além de moradores que dizem não ter coração para negar comida, eles descem para pedir comida nos restaurantes do bairro. Eles alimentam essas pessoas, e aí elas têm tudo o que precisam para se fixar. Comida, dinheiro para comprar suas bebidas alcoólicas e ainda ganham colchões, roupas e tudo mais.”

Segundo a secretária de Desenvolvimento Social da Prefeitura de Juiz de Fora, Tammy Claret, esse é um dos fatores que favorece a não adesão à rede de assistência do município.

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“A mesma população que fica incomodada com aquela situação, com razão, porque é impedida de transitar, é a que alimenta, troca o colchão, dá ração para o cachorro. Precisamos, sim, ajudar, disponibilizar comida para quem não tem, e essa população precisa. Mas é preciso que essas pessoas conheçam os serviços oferecidos pelo município.”

Tammy afirma que esse contato com as equipes de abordagem e com os serviços é o que vai ajudar a criar o vínculo. “Falamos que esse é o primeiro ponto para criarmos uma relação com essa pessoa em situação de rua. Precisamos propor algo para construirmos uma saída que seja boa para eles, mas que também seja possível para o poder público. Fortalecendo-os enquanto cidadãos, enquanto pessoas.”

Emancipação

Ao mesmo tempo, há uma cobrança por uma política mais forte para a população em situação de rua, que trabalhe e fortaleça todos os eixos da vida, como explica a coordenadora do Centro de Referência em Direitos Humanos de Juiz de Fora e regional Zona da Mata, Fabiana Rabelo dos Santos. “Precisamos de meios e estruturas para que essas pessoas sejam emancipadas. Oferecer o local para dormir e o tíquete do restaurante popular tem efeito pontual, não há uma continuidade. As pessoas não vivem só de comer e dormir. Precisamos fortalecer a política de assistência social para garantir de forma integral a proteção dos direitos desses cidadãos.”

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Uma das pessoas em situação de rua que ocupam a rotatória da Melo Franco com a Barão de São Marcelino é um homem de 45 anos, natural de Rio Novo. Ele contou que vive há muitos anos nessa situação e já esteve na Casa da Cidadania por quatro meses, mas não quis permanecer no local, porque não gostava das regras. “Eles não queriam deixar eu passear, ai eu fiquei triste, saí fora.”

Desafio de manter o diálogo

Os vizinhos do cruzamento relatam que se sentem inseguros, porque, em alguns momentos, são abordados com certa agressividade pelas pessoas. Uma ocorrência inclusive foi registrada pela Polícia Militar, porque um deles entrou sem autorização em uma casa para pedir dinheiro. A negativa e o pedido de saída que foram feitos não teriam sido acatados pelo cidadão, que ainda teria xingado a moradora e se revoltado. “Já tive o vidro do carro quebrado e o carro riscado também. Quando ele entrou na casa, nos sentimos ameaçadas. Isso é muito sério, por isso, chamamos a polícia”, relata a moradora.

Espaço como a Ponte Wilson Jabor Coury, na altura do Terreirão do Samba, vêm sendo usados como pontos de fixação da população no Centro (Foto: Fernando Priamo)

Alguns dos moradores dizem se sentir inseguros por conta de algumas atitudes. Eles já testemunharam uso de entorpecentes, sexo entre outros atos na via. “Nesse trecho moram muitas pessoas idosas, muitos adolescentes e crianças que acabam não usufruindo dos espaços por medo. Não tem mais como usar a pracinha. Eles a ocupam inteira e te cercam para pedir as coisas. Evitamos sair sozinhos durante a noite, outro dia quis ir à missa, mas não fui por medo”, explica outra moradora, Solange Nascimento. Ela diz que a filha adolescente faz a volta para não ter que passar pela praça, onde foi seguida após negar dinheiro.

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A secretária de Desenvolvimento Social, Tammy Claret, explica que as pessoas em situação de rua no São Mateus encontram um quadro mais favorável. “Em alguns casos, as pessoas querem que tiremos eles do caminho, não podemos fazer isso. Há uma política, uma linha ética e filosófica que nos conduz. Eles são cidadãos de direito. Quando fazemos as abordagens, elas visam o resgate.”

Tammy destaca que a vivência da rua pode deixar as pessoas mais agressivas ou resistentes ao contato, devido à situação de grave vulnerabilidade em que se encontra. “Eles nem sempre são tratados com generosidade e docilidade pelas outras pessoas. Muitos deles já sofreram algum tipo de violência física. Por isso, alguns desenvolvem essa resistência, que é mais de defesa do que de ataque. Esse manejo não é fácil. Não podemos chegar com tudo. Essa abordagem tem que ser muito cuidadosa, estabelecendo o diálogo. Temos esse desafio de estabelecer esse contato e fazer com que eles usem o serviço, e os trabalhadores que vão até a população em situação de rua têm expertise para isso.”

Projeto de lei engavetado

Um projeto de lei encaminhado à Câmara Municipal em 2016 tem como proposta a criação da política de inclusão social da população em situação de rua, mas continua engavetado. Entre os objetivos do plano composto pelo Comitê Intersetorial de Políticas para Pessoas em Situação de Rua estão a estruturação da rede de promoção, proteção e defesa dessa faixa da população, assegurando acesso a serviços e programas, que envolvem alimentação, assistência social, habitação, educação, segurança, esporte, lazer, cultura, saúde e trabalho e geração de renda. Além da mudança de cultura em relação a uma série de direitos, incentivando a organização e participação da população nesse processo.

Ocupar praças e vias públicas não é crime, no entanto, falta de políticas evidencia abandono de várias pessoas que vivem nesta situação (Foto: Fernando Priamo)

O Comitê cobrou uma resposta e recebeu a informação de que a Procuradoria Geral do Município apontou necessidades de mudança, mas até hoje não foi possível passar esses pontos com a Secretaria de Desenvolvimento Social, conforme Fabiana Rabelo dos Santos, coordenadora do Comitê Pop Rua e do Centro de Referência em Direitos Humanos de Juiz de Fora e regional Zona da Mata. “Enquanto isso, seguimos no aguardo, sem política e sem ter como cobrar ou construir. Sabemos que é preciso recurso para dar andamento a muitas coisas, mas também indicamos ações que não demandam investimento. Esse projeto segue parado, e o público continua à margem.” A secretária de Desenvolvimento Social, Tammy Claret, explicou que a proposta do Comitê ainda está em fase de estudo.

‘Não vemos um incentivo para esse cidadão’

Na avaliação do Centro de Referência em Direitos Humanos de Juiz de Fora e regional Zona da Mata, os equipamentos disponíveis são falhos. “Eles não atendem integralmente as necessidades da população. Não porque não querem, mas porque não têm estrutura para isso. O que é oferecido hoje de recurso e de espaço de acolhimento não atende a demanda de Juiz de Fora. Temos que buscar uma política concreta, consistente, multisetorial, transversal, que envolva o trabalho de todas as secretarias.” Para ela, não dá mais para retirá-las de uma praça, ou de uma via sem ter um lugar para oferecer. “Estar em situação de rua é perder tudo. Não ter lugar para deixar uma mochila para tentar trabalhar. Ter que carregar todos os seus pertences. Começar de novo é muito difícil.” Por isso, é preciso oferecer oportunidades.

“Quando uma pessoa em situação de rua vai entregar um currículo, tem que colocar o endereço do Centro de Referência para a População de Rua (Centro Pop). Quando o empregador vê, dá preferência a outro currículo. Não vemos um incentivo para esse cidadão. Não temos uma ação junto aos empregadores para quebrar esse ciclo”, frisa Fabiana. Tammy amplia o contexto em que esse projeto se insere. Ela considera o período de turbulência em diversos setores em nível nacional. “Nesse momento, muitas mudanças no Governo federal refletem sobre nós. O tema é muito complexo. Também estamos passando pela mudança na política de Assistência Social. Tudo isso tem um impacto muito grande no trabalho.”

Alterações

Tammy se refere ao Marco Regulatório das Organizações de Sociedade Civil, Lei 13.019/2014, que passa a reger o regime jurídico das parcerias entre a Administração Municipal e as organizações em 2017. A mudança se dá por meio de novos instrumentos jurídicos de fomento e colaboração, visando a democratização da gestão pública. Juiz de Fora conta nesse momento com 27 instituições conveniadas, mas o modelo deve ser substituído ainda esse ano. Para cumprir a Legislação Federal, conforme a secretária, foram lançados 16 editais via chamamento público. Dessas concorrências devem ser indicados os novos parceiros da Prefeitura.

Para diretora da Sedpac, quebra do preconceito é um dos principais desafios (Foto: Fernando Priamo)

“Todos os serviços que vão atuar na média e na alta complexidade serão indicados pelo chamamento. Ainda não sabemos quem serão nossos parceiros, isso deve alterar toda a dinâmica, mas só sabemos quem serão os prestadores em julho.” Até que essa definição ocorra, a referência para os munícipes continuam sendo os serviços atuais, ou seja, o Centro Pop, que atende cerca de 200 pessoas por dia, a Casa de Passagem de Mulheres com 50 leitos e a Casa de Passagem para Homens, que tem cem leitos. Além desses, há o abrigamento institucional, o acesso ao Restaurante Popular e ao Consultório na Rua. A solicitação da abordagem pode ser feita por qualquer cidadão por meio do telefone 3690-7770, de segunda-feira a sexta-feira, das 7h à meia-noite e aos sábados, domingos e feriados das 7h às 19h.

Realidade de JF debatida em Fórum

Juiz de Fora recebe nessa semana encontros regionais do Fórum Técnico para a criação do Plano Estadual da Política para a População em Situação de Rua. As reuniões ocorrem na terça-feira (24) e quarta-feira (25), no Centro de Referência de Direitos Humanos, na Rua Vitorino Braga 126 B, bairro homônimo. Um dos pontos dessa construção é a regionalização do diálogo. Trabalhando os diversos eixos, que tratam de saúde, emprego e renda, assistência social, educação, entre outros. A discussão é paritária, envolvendo Governo, Sociedade Civil e pessoas em situação de rua ou que tenham tido trajetórias na rua.

A intenção é discutir propostas, estabelecendo caminhos para o melhor atendimento dessa população, levando em consideração as especificidades das regiões do Estado. A composição, inédita em Minas Gerais, deve ser a base para as políticas públicas do Estado, que devem ser dispostas em um Projeto de Lei, ou em outros instrumentos, de acordo com sua natureza.

“Cada município trata a questão de uma forma, com seus serviços, seus erros, acertos e desafios. Como as realidades são muito distintas, precisamos ter esse momento de escuta para que o plano não fique genérico e acabe engavetado. As sugestões que surgirem serão trabalhadas e alteradas conforme necessário para incorporar todas as questões de Juiz de Fora e região”, explica a diretora de Defesa e Restauração de Direitos Humanos da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Participação Social e Cidadania (Sedpac), Letícia Palma.

Para isso, as pessoas em situação de rua são esperadas no evento, assim como representantes do Legislativo e Executivo municipal e das instituições que lidam com essa população.

“Estamos muito animados, porque estamos consolidando um trabalho participativo, de fato. Esperamos imprimir força nesse documento para criar diretrizes que vão ser cumpridas independente de quem estiver no Governo”, ressaltou Letícia.

Letícia também reforça que a participação de vereadores é importante porque pode dar encaminhamento de questões via Câmara, algo que já aconteceu em outras regiões por onde o Fórum já passou.

Entre os principais desafios, segundo ela, estão serviços básicos, como abrigamento noturno, em que a oferta é menor que a demanda em todo o estado; a falta de políticas para moradia, mas especialmente a quebra do preconceito. “Um dos companheiros do movimento nacional diz que não adianta criar políticas públicas sem combater o preconceito, porque elas já nascem equivocadas. As ações governamentais nascem com aquela roupagem de boa intenção, mas escondem uma série de violações. Precisamos oferecer saídas para quem não quer mais estar em situação de rua e, ao mesmo tempo, garantir que quem quer permanecer na rua- uma minoria- viva ali com dignidade.” Além das sugestões, os encontros acolhem casos que precisam de ações mais urgentes. Demandas que acabam sendo encaminhadas pela equipe. Concluídos os encontros, o Fórum elegerá seis representantes para avaliar a proposta final e dar encaminhamento ao Plano.

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