A etnia Shanenawa vem do Acre, do município de Feijó, na terra indígena Katukina/Kaxinawa, e é conhecida, pelo nome que leva, como o ‘Povo Pássaro Azul’. Alguns dizem que esse tipo de pássaro é difícil de ser visto, mas que seu aparecimento sinaliza algum conflito. Desde pelo menos o século XX, é notável que os povos indígenas, em geral, viveram em meio a uma ocupação violenta e que o extrativismo vindo de fora foi alterando suas vivências. Mesmo muitas décadas depois do início desse processo, a realidade desse povo, que se manteve enraizado nessas terras, foi de buscar formas de manter vivas sua cultura e seus costumes. Também por isso, o cacique Ybá Shanenawa, líder da aldeia Nía Westy, em que vive, está visitando Juiz de Fora acompanhado de seu pai, que é ancião da aldeia, o pajé Shetehu Shanenawa, que é chamado de ‘médico da floresta’, e também de seu irmão, Txaná Shane Shanenawa, músico e aprendiz do pajé, e está apresentando seus saberes ligados à medicina.
Os três vieram para realizar uma cerimônia no Espaço Humaitá, idealizado e dirigido por Ronan Siqueira, em que buscam a cura e a celebração à vida a partir dos saberes tradicionais e da medicina integrativa. “É a nossa primeira vez em Minas Gerais, com a nossa comitiva. Nosso objetivo nessa viagem, de estarmos fora da nossa aldeia, é podermos criar essa parceria e divulgar a nossa cultura indígena do Acre, do povo Shanenawa. Nós queremos mostrar a forma que trabalhamos com a simplicidade, a humildade e o respeito à nossa cultura, trazendo diversas medicinas, rezas tradicionais, pinturas e atrações”, explica ele. Em sua visão, a oportunidade de estar na cidade mineira é também uma chance de mostrar a força da espiritualidade e da cultura Shanenawa, com a palavra da língua nativa deles chamada Nukê Tsãy. “Nossos costumes são simples e normais. Estamos sempre em roda, juntos com a família, tomando café da manhã, almoço e janta. Sempre debatemos a nossa união. No dia a dia, consagramos a nossa medicina, que é chamada de rapé, para dar mais sabedoria e energia”, conta.
O dia a dia na aldeia, como explica, vem do trabalho com artesanato, realizado na maior parte das vezes pelas mulheres, com vasos e pinturas, e da plantação feita pelos homens, cultivando principalmente banana, mandioca e milho. “Quando não temos muita demanda, a gente tem nosso costume tradicional prático da brincadeira. Passamos o dia nos pintando, fazendo brincadeiras tradicionais e tocando com os instrumentos novos, como violão, tambor e flauta. Nosso dia a dia na aldeia tem muita alegria, ficamos juntos, animados, cantando, achando graça e comendo bem”, diz. Além disso, ele destaca a representação política que fazem. “Eu estou aqui, escolhido pela minha comunidade e família, para representar, então apresentamos essa parceria, como podemos fazer projetos e como também podemos ser ajudados. Nós também participamos de reuniões com o ministro do Meio Ambiente e com o ministro do Povo Indígena, fazemos presença pelos nossos direitos e participamos sempre de palestras e conversas”, destaca.
Medicina e língua
A medicina Shanenawa é um dos saberes mais tradicionais e cultivados no dia a dia. Como explica o cacique, são aprendizados trazidos ancestralmente e que servem a diferentes propósitos. “Temos a medicina para banho, feita pelos pajés, que tiram as coisas ruins do corpo, como a preguiça, tontiça, dor no corpo e depressão. E tem a medicina de fumação, que usamos uma resina de uma árvore e queimamos no fogo, para sair fumaça. Esse cheiro defuma a casa quando sentimos energia ruim ou as pessoas estão sonhando coisas ruins, pra espantar os espíritos da casa e as coisas ruins que estão ao redor”, explica. Da mesma forma, também aprendem a medicina chamada de ‘garrafada’, que vem da planta e das cascas e raízes das árvores. “A gente dilui isso e vai bebendo, todo dia bebemos um pouco. Isso serve para diabetes, pedra no rim, gastrite, anemia e outras coisas do estômago que fazem mal ao corpo”, explica.
A outra medicina que aprendem vem de um trabalho espiritual e é chamada de rapé. “Trabalhamos dentro da aldeia o ayahuasca e a sananga, porque a gente usa pra trazer a força para nós e nossos irmãos”, afirma. Essa dedicação por aprender está no dia a dia desse povo, que absorve os saberes dos anciãos através desses ensinamentos e do aprendizado da própria língua nativa, o nu ksutsain. “Nós conversamos na nossa língua, aprendemos no trabalho também, na nossa vida na aldeia. Não é como uma escola, que vai e fica um pouco, é o dia inteiro que aprendemos”, conta. Nas escolas, por sua vez, eles aprendem a língua portuguesa e nativa.
Dificuldades enfrentadas pelos Shanenawa
As dificuldades enfrentadas pelos povos indígenas no Brasil em 2024 são muitas e incluem a luta para manterem suas terras, passarem seus costumes, resistirem ao garimpo e a outros ataques. No cotidiano, o cacique também destaca que esses problemas impactam o dia a dia deles, gerando principalmente dificuldade de se alimentarem, caçarem e terem a estrutura que, séculos antes, conseguiam com facilidade, inclusive para produzirem eles mesmo o suficiente para a própria subsistência. “Temos dificuldade para achar um peixe ou uma carne, antes tinha tudo ao redor de nós, no nosso igarapé, e não temos mais nessa quantidade. (…) Nós temos dificuldade para ter a nossa estrutura e ter sustentabilidade para manter os alimentos pros nossos filhos, pros nossos netos, pra família inteira. Buscamos então um fortalecimento.”
Conexão com espíritos da floresta e sabedoria
Para entender as vivências do povo Shanenawa, também é importante compreender as vivências de cantos tradicionais que os conectam com a própria consciência, nos chamados rezos sagrados. O cacique destaca que, mesmo diante das dificuldades e problemas, eles são pessoas muito alegres e que gostam de brincar. “Isso traz uma força da natureza pra gente poder se conectar com os nossos antepassados e com os espíritos da floresta. A gente leva essa mensagem de como a natureza precisa de nós, das pessoas, pra levar amor e respeito pra ela, no Brasil e no mundo, e ajudamos a levar sabedoria para nossos irmãos brancos pra saber cuidar mais da nossa terra, de onde nós moramos”, destaca.
A vinda em Juiz de Fora, por isso, também é uma oportunidade, para ele, de se apresentarem: “Queremos divulgar o nosso nome, nosso trabalho, para sermos vistos e escutados com bastante amor, carinho e simplicidade. Isso que fazemos é algo sério pra gente. Pra quem acredita e quem tem fé”, diz.