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Metonímia de Juiz de Fora: Calçadão completa 50 anos como foco de encontros, memórias e contradições

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Inauguração do Calçadão aconteceu em novembro de 1975 (Foto: Reprodução/Maria do Resguardo)
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“A margem esquerda da Rua Halfeld marcava o começo de uma cidade mais alegre, mais livre, mais despreocupada e mais revolucionária.” A frase é escrita pelo juiz-forano Pedro Nava, e publicada em 1972 em seu livro de memórias “Baú de ossos”. A imagem central dessa parte da cidade retratada por ele, que também comparava a rua com um rio em movimento, foi formada pouco antes da inauguração do Calçadão, em 1975, que consolidaria esse destino como uma área dos pedestres de segunda a segunda. Mas o que Nava captou em poucas palavras já mostrava tanto a efervescência que o Centro da cidade contém quanto uma divisão que também sempre houve nela. Em meio às pedras portuguesas, lojas sofisticadas, cafés em que os transeuntes bebiam ainda de pé, cinemas, carrocinhas de pipoca com queijinho e livrarias, formaram-se encontros e memórias da cidade. Essa mesma rua também foi ocupada pelo comércio irregular, teve desocupação pelos altos aluguéis e lida com a insegurança, principalmente à noite. Mandando notícias do mundo de cá, 50 anos depois da inauguração, há tantas histórias e contradições preservadas ali que servem quase como metonímia do que é Juiz de Fora. 

A percepção de que a Rua Halfeld continha em si algo que revelava parte de toda a estrutura de JF veio para a professora de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Christina Musse, enquanto ela escrevia sua tese de doutorado, que é sobre o exercício de memória a respeito dos anos 1960 e 1970 na cidade, e escutou depoimentos em que as pessoas relatavam justamente isso. Era quando chegavam ao Calçadão que entendiam que estavam mesmo em Juiz de Fora. “Acredito que o Calçadão veio para consolidar a vocação da Rua Halfeld como coração da cidade de Juiz de Fora, no sentido de ser a rua que reúne mais gente e tem mais movimento”, destaca ela. Essa escolha de criar trechos de circulação exclusiva do pedestre, a fim de valorizar o comércio, como explica Frederico Braida, bolsista de Pesquisa do CNPq e professor da Faculdade de Arquitetura da UFJF, ocorreu em muitas cidades ao longo dos anos 1970, e teve como grandes aliadas às galerias, que funcionam como redes de passagens. “A ideia foi trazer vitalidade urbana e fomentar o comércio. (…) O próprio passear pelas ruas se tornou uma atividade lúdica, como com os ‘footings’, que ganharam com a presença dos pedestres.” 

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A inauguração do Calçadão foi responsável por aumentar a vocação “flâneur” da cidade, mas também mostrava evidentes divisões que existiam dentro da sociedade. “Não era uma rua popular como é hoje. Mostrava uma cidade que já era bastante dividida: se a classe média e média alta frequentavam esse trecho, a parte baixa (que vai da Avenida Getúlio Vargas até a Praça da Estação) era frequentada pelas pessoas mais pobres, pelas pessoas pretas, pelas empregadas domésticas e os operários”, destaca Christina. É o mesmo que percebe a prefeita Margarida Salomão (PT), que reconhece como parte da história da cidade essas contradições. “No passado, o Calçadão era um lugar onde pessoas como eu iam para ir ao cinema e depois percorrê-la com espírito de flerte. A outra parte da população fazia a mesma coisa, mas na Marechal Deodoro. Também era um espaço de segregação racial, e a Rua Halfeld era dos brancos.” 

Essa construção, na percepção da chefe do Executivo, foi o começo de uma mudança que tornaria a Rua Halfeld mais democrática. É esse aspecto, também, que ela entende que precisa ser preservado, diante de todas as transformações pelas quais o Calçadão passou desde as cinco décadas que já atravessou, inclusive, a partir da transformação no perfil do comércio e da chegada dos shoppings centers à cidade. “A Rua Halfeld é um lugar que as pessoas marcam para se encontrar, para conversar, para tomar um café. Nesse sentido ela é o nosso centro histórico, o nosso coração, e precisa ser bem tratada e bem arrumada como toda sala de visita”, diz. 

Circulação exclusiva do pedestre e valorização do comércio viraram diferenciais (Foto: Reprodução/ Maria do Resguardo)

Cidade que pulsa

Apesar de ser o comércio que movimentava a economia da Rua Halfeld, o que garantia o fluxo de pessoas, para os especialistas, estava também muito relacionado à movimentação cultural da cidade: com os cinemas, a Galeria de Arte Celina, a sede do DCE, o carnaval e a Rainbow Fest, que aconteciam no Centro da cidade. Esses elementos reverberavam o ano inteiro. “O Calçadão já foi mais humanizado. Ele ficou um espaço, agora, extremamente funcional, que perdeu parte dos seus espaços de permanência”, explica Braida. 

Para ele, no entanto, é a própria cultura que ainda insiste nessa área como importante para a vida na cidade: “É tamanha a força do espaço que, até mesmo no Carnaval, embora você tenha outros circuitos mais descentralizados, existem vários blocos que querem desfilar pelo Calçadão, porque entendem que ali traz mais visibilidade. Fora os políticos que sempre fazem o corpo a corpo pelo Calçadão”, diz ele. Para Christina Musse, contar parte dessas histórias faz falta para o reconhecimento dessa parte da cidade. “Acho que a Prefeitura deveria fazer placas de rua através das quais tivéssemos acesso a informações sobre a história da cidade, para que as pessoas soubessem o que ocupou os prédios, quando foram criados, quem viveu ali e o que aconteceu naqueles lugares”, acrescenta.

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Entre nostalgia e renovação

Calçadão da Halfeld, em imagem dos anos 1970, mostra movimento da cidade (Foto: Reprodução/Maria do Resguardo)

Na música “O tempo e o lugar”, a também juiz-forana Sueli Costa canta, exemplificando um clima de nostalgia e renovação que persegue a vida em cidade: “Hoje é depois/ Não é mais um passado qualquer/ Você volta ao lugar se quiser/ Mas o tempo passou/ (…) Não dá pra telefonar,/ Nem dizer que não vá/ A cidade mudou,/ Hoje o dia é menor/ Mas a minha saudade é ainda maior”. É com essa percepção que Christina Musse torce para que o uso do Calçadão se amplie nos horários noturnos e se reforce a importância desse espaço ainda com a formação de diversos outros centros dentro da cidade — enquanto também percebe que a saída de aparatos públicos da região pode enfraquecer esse processo.

Para a prefeita Margarida Salomão, tornar o Calçadão espaço de todos e de novos encontros é um compromisso, que se renova também pelo carinho que entende que existe há algumas gerações pelo local, que ela define como um dos cartões de visita de Juiz de Fora. Para isso, também entende como essenciais mais segurança, conforto e um centro comercial mais importante. “Acho que a revitalização do centro histórico não é um processo arquitetônico. Também tem uma dimensão arquitetônica, mas é, fundamentalmente, um processo social, porque temos um esvaziamento da Rua Halfeld, por exemplo, pela cultura dos shoppings. (…) Um grande desafio do nosso projeto é voltar a fazer do Centro um lugar de uso para compras, para tomar uma cerveja ou um café e para participar de um evento cultural”, diz.

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