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HU inicia credenciamento para fazer atendimento trans

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Foto: Fernando Priamo

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“Com 5 anos de idade, a professora chamou minha mãe na escola para dizer que eu era muito feminina e só tinha amigas meninas. Mas a primeira memória que eu tenho de ser uma mulher trans foi quando tinha mais ou menos 8 anos de idade e passava a novela Tieta. Na época, eu não sabia o que a personagem era, mas eu queria ser a Tieta. Ela mudou de uma figura masculinizada que trabalhava com o pai na cidade, para uma figura extremamente feminina e empoderada. Óbvio que não basta ter essa certeza para se aceitar uma pessoa trans, isso levou bastante tempo”, conta a juiz-forana Dandara Oliveira, mulher trans de 38 anos.

Militante no movimento gay, além de líder sindical, Dandara entrou em transição pela primeira vez aos 26 anos, mas interrompeu o processo pela transfobia que a levou a perder seu emprego. “Isso é algo que afeta muito nossa saúde mental.” Há um ano, a técnica em saúde iniciou novamente seu processo transexualizador, fazendo tratamento com hormônios no ambulatório do Hospital Universitário (HU) da UFJF. Ela tem agendada uma cirurgia para receber prótese de seios, mas fará por serviço particular, já que Juiz de Fora e região não possuem um centro de referência para atendimento trans pelo SUS. Hoje, como funcionária pública, Dandara poderá fazer as mudanças que deseja.

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“Ficou relegado aos trangêneros o trabalho informal ou da prostituição (…) Isso faz com que o convívio em sociedade seja reduzido e, consequentemente, as pessoas te tratam diferente ou olham com insignificância.” Dandara Oliveira. (Foto: Fernando Priamo)

Atualmente, existem 15 instituições de saúde habilitadas pelo Ministério da Saúde para realizar o processo transexualizador, sendo cinco hospitalares (com procedimentos cirúrgicos) e 12 ambulatoriais. Em Minas Gerais, apenas o Hospital das Clínicas de Uberlândia é credenciado como ambulatório e, fora do estado, o mais próximo à Zona da Mata é o Hospital Universitário Pedro Ernesto, Universidade Estadual do Rio de Janeiro, que pode fazer cirurgias. No entanto, ele não está recebendo novos pacientes desde 2011, por excesso de demanda. Os municípios e estados, porém, também têm autonomia para fazer seus próprios credenciamentos, financiando os procedimentos das instituições cadastradas. Esse é o caso do Ambulatório Trans do Hospital Eduardo de Menezes, da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig), em Belo Horizonte.

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Em Juiz de Fora, após perceber um aumento da demanda da população trans nos últimos anos, o HU está iniciando processo de credenciamento junto ao Município e ao Estado, para se tornar um centro de referência nesse atendimento. O pedido, que já foi aprovado pela instância municipal, está em tramitação na capital mineira, para depois seguir ao Ministério da Saúde. A regularização permitirá que o hospital tenha ambulatório e centro cirúrgico no processo transexualizador. Com isso, será possível fazer a compra de equipamentos, materiais e medicamentos, além de receber investimentos de infraestrutura e capacitação. A intenção é de que o atendimento beneficie a Macrorregião Sudeste de Minas.

Atendimento centralizado

Segundo o médico e superintendente do HU, Dimas Augusto Carvalho de Araújo, a ideia é de que o atendimento seja centralizado, facilitando o acesso à população.

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“Não há na região um sistema organizado para atender a essa população. Uma hora, eles procuram o urologista; outra hora, o psicólogo ou o cirurgião, e isso dificulta o processo. Se quiserem uma cirurgia plástica, por exemplo, eles têm que entrar na fila. Com um ambulatório multiprofissional, o atendimento é mais rápido”, destaca Dimas.

Nesse caso, são oferecidos serviços de endocrinologia, cirurgia plástica, urologia, ginecologia, psicologia, assistência social e enfermagem. Além do atendimento clínico e tratamento de hormonização, os pacientes também terão acesso a procedimentos cirúrgicos, como colocação de prótese mamária e mastectomia, além da readequação sexual, todos pelo SUS. Mesmo sem o ambulatório, o HU atende hoje a cerca de oito pacientes, e a expectativa é de que esse número aumente com o credenciamento.

Além de oferecer um atendimento digno, o credenciamento permitirá regular o fluxo de pacientes, para que, através das unidades básicas de saúde (UBSs), eles sejam encaminhados para o HU. Como porta de entrada, as UBSs também receberão treinamento para atendimento humanizado. Outra ponta de atendimento deve ser o Centro de Referência em Direitos Humanos Juiz de Fora/Zona da Mata, que atende hoje a cerca de 35 pacientes em tratamento hormonal, com acompanhamento médico e psicológico, segundo Dandara Oliveira. O espaço, porém, por não ser ambulatório, não disponibiliza exames para checar, por exemplo, como os sistemas reprodutivos estão reagindo aos hormônios que o corpo está recebendo, o que poderia ser feito no HU.

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Segundo o superintendente do HU, o processo de credenciamento pode demorar de seis meses a um ano, mas a primeira parte, que ocorreu em Juiz de Fora, teve aprovação em cerca de 15 dias. Enquanto o pedido está em andamento, o hospital deve implantar o uso do nome social, tanto no cartão do SUS, como nos prontuários dos pacientes trans e nas fichas dos internos. A instituição também se prepara para um processo de conscientização junto aos usuários e servidores, para além dos profissionais da saúde, com objetivo de combater a violência e o preconceito. “Como hospital de ensino, esperamos que, no futuro, os alunos e residentes possam construir novos centros, em cidades menores que não têm atendimento”, diz Dimas.

Dificuldade de acesso

“Pessoas trans não se veem no sexo e gênero atribuídos a nós no nascimento, então em determinado momento você percebe que não se entende nesse gênero em que foi registrado. O processo transexualizador vem ao encontro dessas pessoas de adquirirem caracteres sexuais secundários: músculos, barba e pelos, no caso dos homens; e cabelo longo e distribuição da gordura corporal, como nádegas e pernas, além de seios, no caso das mulheres. Há pessoas trans que se satisfazem com esses caracteres, e a hormonização possibilita essa adequação ao gênero em que a pessoa se entende. Para as pessoas transexuais, que não conseguem também se adaptar à genitália de nascimento, o processo também inclui a readequação sexual, que permite saúde física e mental para que a pessoa viva de forma saudável com o próprio corpo”, explica a travesti Dandara Oliveira.

Em função dos altos custos dos procedimentos pelo serviço particular – segundo Dandara, a cirurgia de redesignação sexual custa cerca de R$ 40 mil na rede privada – o SUS se torna a única ou melhor opção para muitos brasileiros. Porém, a quantidade de centros de referência existentes, sobretudo para cirurgias, e os recursos disponíveis não dão conta da demanda. “No Brasil, como é uma fila imensa e cada hospital tem sua própria fila, a espera é de cerca de seis a oito anos”, explica. Como a maioria está concentrada nas capitais, muitos pessoas precisam viajar para ter acesso ao atendimento. Thiago Nery da Silva, 49 anos, é um desses exemplos. Morador de Santos Dumont, Thiago fez sua última cirurgia há quatro anos, tendo feito a maior parte do acompanhamento na capital do Rio de Janeiro, há cerca de três horas de casa. Caso o atendimento fosse oferecido em Juiz de Fora, seu tempo de deslocamento seria de cerca de uma hora.

Thiago começou o processo transexualizador com cerca de 39 anos, no Hospital Moncovo Filho, no Rio. “Meu corpo respondeu muito rápido aos hormônios masculinos, inclusive porque meu útero não era muito desenvolvido. Isso foi um alívio muito grande, porque incomodava muito a região do tronco, pois queria ficar sem camisa ou usar uma camiseta e não podia.” Depois de dois anos de tratamento, ele foi encaminhado para o Hospital Universitário Pedro Ernesto. Lá, a primeira cirurgia de mastectomia foi em 2009. Em 2011, fez a retirada do útero e ovários, e finalizou o processo com a cirurgia de readequação sexual em 2015. No entanto, se deslocar de Santos Dumont ao Rio de Janeiro com frequência era uma atividade cansativa. “Geralmente, minha consulta era marcada às 7h da manhã e tinha que sair de Santos Dumont às 2h ou 3h da manhã, e ia no carro da Prefeitura, isso quando não tinha que ir de ônibus e passava a noite na rodoviária esperando. Tinha muitos gastos, porque tem que ficar lá o dia todo.”

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Antes de poder passar pela transição, Thiago teve sua vida limitada pela transfobia. “Desde que comecei a me entender, sempre me vi como menino e gostava de tudo do gênero. Deixei a escola no segundo ano do fundamental, porque não queria usar uniforme de menina e ser chamado pelo nome feminino, além de sofrer bullying. Tirei o segundo grau com laudo psicológico. A minha infância e adolescência foi praticamente perdida”, lamenta. Muito apoiado sobretudo pelo pai adotivo e por uma amiga também trans, hoje Thiago afirma se sentir bem com o próprio corpo. “Com meu nome mudado, não fico preocupado em pensar: quando eu morrer, quem vai ser enterrado, a fulana ou eu? A mudança do meu nome demorou cinco anos para sair com processo na Justiça. Agora posso consultar pelo SUS sem precisar pedir para me chamarem pelo nome social, só entrego os documentos. Também melhorou um pouco em relação à transfobia.” Atualmente, Thiago faz acompanhamento em Santos Dumont e Juiz de Fora. Ele deseja colocar próteses testiculares, que ainda não são oferecidas pelo sistema público. Ele acredita que seja um dos poucos homens trans operados na região.

Mais de 300 cirurgias em 2018

Para o superintendente do HU, Dimas Augusto Carvalho de Araújo, não oferecer atendimento especializado à população trans pelo SUS é colocar pacientes em risco, sobretudo em caso de procedimentos clandestinos ou automedicação. “O tratamento hormonal necessita de profissionais capacitados, que conheçam efeitos, benefícios e complicações. E alguns (trans) também procuram silicones artificiais. Ter atendimento capacitado em uma instituição de ensino (hospitais universitários) é a segurança do atendimento, porque fora de um centro de referência é muito risco, com complicações que podem levar até ao óbito. É uma questão de saúde pública e é preciso enfrentar essas necessidades que não são novas. A portaria (número 1.707/GM/MS/2008) existe há mais de uma década, e o SUS tem várias demandas.”

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“Não há na região um sistema organizado para atender a essa população. Uma hora, eles procuram o urologista ; outra hora, o psicólogo ou o cirurgião e isso dificulta processo” Dimas Araújo (Foto: Olavo Prazeres)

Segundo o Ministério da Saúde, antes de realizar a cirurgia de readequação sexual é exigido um acompanhamento médico e psicológico por, pelo menos, dois anos, para que o paciente tenha segurança e certeza de suas vontades. Para ambos os gêneros, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais é de 18 anos, enquanto os cirúrgicos podem ser feitos a partir dos 21 anos. Após a cirurgia, deve ser realizado um ano de acompanhamento pós-cirúrgico e, após esse período, os atendimentos são prestados pela rede de saúde de acordo com a necessidade do usuário. O Ministério da Saúde financia os procedimentos. Em 2018, foram realizadas 333 cirurgias de readequação sexual, retirada de mama, plástica mamária reconstrutiva e cirurgia de troca de timbre de voz, histerectomia (retirada do útero) e colpectomia (retirada da vagina).

Transfobia como característica cultural

Para Dandara, a sociedade ainda não aprendeu a conviver com as pessoas trans, que são marginalizadas. “A MC Xuxú fala que ‘onde eu chego, as pessoas se assustam e se chocam’. Acho que é um pouco isso. Ficou relegado aos transgêneros o trabalho informal ou da prostituição. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais, cerca de 90% da nossa população trabalha nessa área. Isso faz com que o convívio na sociedade seja reduzido e, consequentemente, as pessoas te tratam diferente ou olham com insignificância. Além disso, vivemos em um país fundamentalista, onde as pessoas, independentemente de suas crenças, não conseguem separar o público do privado e levam seus preconceitos para o trabalho”, destaca.

Para Marco José do CER- LGBTQI+ é importante discutir a saúde dos trans e entender os processos culturais e sociais envolvidos (Foto: Fernando Priamo)

Para o coordenador do Centro de Referência de Promoção da Cidadania de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros, transexuais, não-binários e intersexuais (CeR-LGBTQI+), Marco José Duarte, gênero é uma performatividade: uma reprodução de hábitos desse lugar chamado gênero feminino e masculino, que, no entanto, não são rígidos ou fixos. “Gênero é como você se mostra. Há uma cultura sexista, patriarcal, cis-heteronormativa que faz todos sofrerem, porque isso é uma imposição que está na cultura, na família, na escola, na religião, em todos os lugares. Estamos em 2019 e continuamos ouvindo discursos da Idade Média, de caça às bruxas”, lamenta.

Apesar da maior visibilidade da população LGBTQI+, ainda não há muitos espaços abertos a receber os trans, observa Marco. “Realizamos um seminário recentemente tratando de políticas públicas e direitos humanos, e foi um espaço em que muitas pessoas denunciaram várias transfobias, mais do que homofobia. Essa população já sofre processo de exclusão, porque não se encaixa no corpo, não se identifica, e a própria sociedade identifica esses corpos como estranhos. Isso prejudica a autoestima. Boa parte dessas pessoas sofrem depressão e tentam suicídio”, ressalta.

A transfobia está em diversos lugares, explica o coordenador. Além de a família ser um espaço de exclusão, as instituições de ensino e as unidades de saúde também fazem o mesmo. E quando essa população sofre violência, ela também tem receio de procurar o serviço de segurança, onde pode ser revitimizado. São os amigos a maior fonte de confiança. “O trans quer ser chamado pelo seu nome social, que é o um direito. Hoje, eles podem mudar o prenome e o gênero, sem precisar de laudos ou processos judiciais. Por outro lado, há um projeto de lei que tenta ir contra essa decisão da corte (Supremo). Estamos em um embate de conservadorismo que impõe uma moral”, avalia Marco José, defendendo que discutir saúde da população LGBT é entender que a saúde dessas pessoas envolve processos culturais e sociais para além do processo transexualizador.

* Estagiária sob supervisão da editora Luciane Faquini

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