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Casos de obesidade infantil grave triplicam em 13 anos em JF

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O Ministério da Saúde registrou, em 2021, crescimento de 236% nos casos de obesidade grave e 129,5% nos casos de obesidade entre crianças de 5 a 10 anos, levando em conta os dados de 2008. Em treze anos, os especialistas notam que os hábitos alimentares e comportamentais das famílias mudaram muito – cada vez mais, passou a ser comum o consumo de alimentos industriais e ultraprocessados no dia a dia, a substituição de ‘brincadeiras de rua’ pelo uso das telas eletrônicas e a falta de exercícios na rotina das crianças. Com o cenário da pandemia de Covid-19, a situação foi agravada pela obrigatoriedade do isolamento social e o encerramento das atividades escolares presenciais, gerando um aumento acelerado, que pode deixar sérios impactos para o futuro das crianças.

A Tribuna trabalhou com dados compilados pela Piauí e pela agência de dados públicos Fiquem Sabendo, com base no Sistema de Vigilância Alimentar e Nutricional (Sisvan), analisando especialmente o panorama de Juiz de Fora. No caso da obesidade grave, dentre o público analisado, as taxas subiram de 2,63% em 2008 para 8,86% em 2021; enquanto na obesidade, na mesma faixa etária de 5 a 10 anos, as taxas subiram de 4,44% em 2008 para 10,19% em 2021. Dentro deste universo da pesquisa, que avaliou 1.648 crianças na cidade, foi possível identificar cerca de 19% delas com obesidade ou obesidade grave.

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Na cidade, o aumento durante a pandemia dos casos de obesidade dessa população foi de 48%, enquanto de obesidade grave de 32%. Gabriele, de 9 anos, filha de Romilda Luzia Andrade, é uma prova disso. Ela chegou a pesar mais de 70kg durante a pandemia, e a mãe decidiu procurar médicos assim que percebeu que a filha estava tendo dificuldades para respirar e teve um aumento de peso rápido. Durante as consultas, também foi constatado que a criança estava com colesterol alto e precisava mudar os hábitos alimentares. “Eu trabalhei a pandemia inteira como gari e estando em casa ela acabava comendo ‘sem regras'”, diz Romilda.

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Em sua casa, Romilda conta que acabava sendo recorrente a presença de “refrigerantes, biscoitos recheados e ‘suco de saquinho'”, que acabavam atrapalhando a alimentação da filha. Algo similar aconteceu com Davi Lucas, de 10 anos, filho de Ana Paula Mendes dos Reis Costas, que, com a falta de escola e atividades físicas, acabou ganhando peso durante a pandemia e sendo diagnosticado com colesterol alto. A mãe, que é técnica em enfermagem, conta que outros hábitos também colaboraram para que ele tivesse mudanças durante este período. “Ele é um menino tímido, fala muito pouco e se socializa muito pouco. Na pandemia, isso piorou bastante. Só fez ele ficar mais retraído e ligado ao celular, jogando jogos e vendo vídeos”, diz.

A mãe de Willian Sergio, de 8 anos, também notou que o comportamento do filho estava relacionado com sua alimentação e, consequentemente, com seu ganho de peso. A pedagoga Gisele Silva diz que viu seu filho ter dificuldade com a adaptação às aulas on-line e ao isolamento imposto. “Logo que começou a pandemia e tudo parou, percebemos que o Willian ficava muito ansioso durante essas aulas. Ele não conseguia se expressar direito. Notamos que ele começou a comer mais e beliscar mais”, diz. Em casa, no jantar, a mãe também notou que o menino “nunca parecia estar saciado”. Ao consultar o médico, eles consideraram diversos fatores, dentre eles genéticos e, inclusive, a quantidade de horas que Willian ficava na frente de eletrônicos. “Só de aula eram 4h, e na parte da manhã assistia desenho, à noite celular ou videogame. Era uma média de 9h por dia em frente às telas”, diz.

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Implicações para a saúde das crianças

De acordo com cálculos da Organização Mundial da Saúde (OMS), já existem mais de 2 bilhões de pessoas com excesso de peso ou obesidade no planeta. No Brasil, o excesso de peso atinge mais da metade da população, e de acordo com um levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre 2003 e 2019, a incidência de obesidade mais que dobrou entre indivíduos com 20 anos ou mais. Pela definição da Organização Mundial da Saúde, obesidade é o excesso de gordura corporal, em quantidade que determina prejuízos à saúde. Uma pessoa é considerada obesa quando seu Índice de Massa Corporal (IMC) é maior ou igual a 30 kg/m2. Os especialistas revelam que esse dado pode estar relacionado com o crescimento entre os mais jovens.

Para o endocrinologista do Departamento da Saúde da Criança e do Adolescente, Marcelo Alves Brittes, é notável que houve um aumento da obesidade infantil devido à diminuição da prática de atividade física, aumento de ansiedade e depressão, diminuição do poder aquisitivo das pessoas, o crescente número de horas que as crianças e adolescentes estão ficando em frente às telas e o aumento de consumo de alimentos ultraprocessados. No caso das crianças, o mais grave, em sua experiência, é que “cerca de 50% ou 70% das crianças e adolescentes obesas podem se tornar adultos obesos”. A consequência disso, na visão do especialista, é que as crianças e adolescentes também passam a ter doenças cardiovasculares típicas da vida adulta – além de aumentar as chances de desenvolverem problemas sérios precocemente.

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Além do aumento da obesidade na cidade, também foi notado um aumento de 17% nos casos de sobrepeso em Juiz de Fora. Apesar do índice ser relativamente baixo, levando em conta o crescimento da obesidade e a obesidade grave, o médico explica que isso indica que cada vez menos crianças estão distantes do peso ideal e “há uma chance maior de se desenvolver obesidade no futuro”.

Esses dados podem gerar impactos negativos para a qualidade de vida dos indivíduos, e o médico também aponta a “sobrecarga que isso pode gerar futuramente no sistema de saúde”. Os casos de colesterol alto e dificuldades respiratórias, assim como foram citados nos relatos das famílias, acendem o alerta justamente para esse cenário.

Para o endocrinologista Marcelo Alves Brittes, o aumento da obesidade infantil também pode ser explicado pela queda do poder aquisitivo, horas passadas frente às telas e consumo de ultraprocessados (Foto: Arquivo pessoal)

Alimentos ultraprocessados e relação sócio-econômica da obesidade

Para o professor associado do departamento de Nutrição da escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Rafael Moreira, essa tendência revela uma mudança nos padrões alimentares e comportamentais que está acontecendo no mundo inteiro. “Isso faz parte de uma transição nutricional, que tem a ver com a mudança na alimentação e no gasto energético”, explica. Os desdobramentos disso, em sua visão, são em relação ao desenvolvimento de doenças crônicas, doenças cardiovasculares, diabetes, câncer, etc. “No mundo, 70% dos óbitos estão relacionados com essas doenças. Não podemos evitar a morte, mas precisamos evitar a mortalidade precoce, diz.

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Para ele, o ‘ingrediente novo’ que tem agravado a situação, principalmente a partir do século XXI, são os alimentos processados. Esta categoria é definida por itens que têm em sua formulação uma carga de açúcar muito grande, baixos índices nutritivos e que fazem com que as pessoas consumam calorias em excesso. “São alimentos que só poderíamos comer realmente com moderação”, ele diz. No entanto, o que o especialista nota é que, principalmente nos últimos anos, esses alimentos se tornaram mais populares e passaram a ser fixos na dieta dos brasileiros. Durante muito tempo, Rafael explica que, no Brasil, era vantajoso consumir alimentos naturais e baratos, como “frutas, legumes e verduras”, mas que, ao longo dos anos, esses alimentos foram encarecendo e o seu preparo foi se tornando mais difícil para famílias com rotinas muito apertadas.

Para ele, no momento atual, a vantagem do preço deixa de existir, pois “consumir alimentos de má qualidade passou a ser mais barato”. Isso fez com que, inclusive, esses alimentos ultraprocessados e não saudáveis deixassem de ser um ‘luxo’ reservado para momentos de prazer dos mais ricos, para se tornarem extremamente populares entre as classes desfavorecidas. “A obesidade começa a virar um problema nos países ricos, sendo observada em um nível socioeconômico elevado. Mas, à medida que o tempo foi passando, aconteceu uma inversão”, diz.

Durante a pandemia, os alimentos ultraprocessados reforçaram suas vantagens sobre os demais, principalmente considerando que a inflação “aumentou ainda mais os preços dos alimentos saudáveis”. O professor cita, como exemplo, que é bem mais comum ver legumes subindo disparadamente o preço do que refrigerantes. “Isso acaba incentivando que a população mantenha altas taxas de consumo”, diz. Além disso, ele esclarece que a restrição em relação à mobilidade também se torna um agravante, tanto para o momento de fazer compras, em que o uso de ultraprocessados também oferece a vantagem de exigir menos idas ao mercado, quanto para a prática de atividades físicas.

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Mesmo antes da pandemia, em 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) revela que 78% das crianças brasileiras estão propensas ao sedentarismo por não fazerem o mínimo de atividade física que é indicado por dia. Para o pesquisador, é notável que esse quadro tenha piorado com o isolamento e a necessidade de interromper as aulas presenciais, que “estimulavam a prática de brincadeiras e de atividades físicas”.

Fatores psicológicos e consequências para a saúde mental

Para a psicóloga e professora Alana Andrade, a saúde mental está claramente relacionada com a obesidade – tanto como consequência quanto como causa. A doença está associada a transtornos mentais, como depressão, ansiedade e compulsão alimentar, mas não é um transtorno mental. “Uma pessoa pode, por exemplo, comer demais porque está ansiosa e, assim, engordar, ou ela pode ficar ansiosa porque está com excesso de peso, gerando desconforto e vergonha com a própria imagem corporal. Trata-se de uma influência recíproca”, diz.

Contudo, muitos estudos têm sido desenvolvidos no Brasil e fora do país sobre o fenômeno coletivo de obesidade durante a pandemia de Covid-19 e algumas variáveis comportamentais, emocionais e até cognitivas podem elucidar os fatores psicológicos desse aumento. Durante a pandemia a rotina mudou, e as pessoas sofreram perturbações na movimentação diária, fazendo com que a psicóloga também percebesse que os novos hábitos “afetaram toda a família ou todas as pessoas que residiam na mesma casa”.

Para ela, as movimentações diárias são essenciais para ajudar na regulação do humor e, sem elas, as pessoas ficaram mais angustiadas. “Comer de forma desregrada, beliscar e fazer lanchinhos pouco saudáveis são comportamentos adotados para melhorar essa angústia, pois a comida, principalmente aquelas ricas em carboidratos, açúcar e gordura, ativam as vias dopaminérgicas no cérebro, ou seja, geram prazer e alegria”, diz. O momento, portanto, também piorou o estresse e a ansiedade, algo que, para alguns, “parece poder ser aplacada com a comida”.

Além disso, ela ressalta que já há diversos estudos que mostram que uma alta quantidade de tempo em frente às telas gera diversos impactos negativos para a saúde mental das crianças e afeta nitidamente suas habilidades sociais, fazendo com que a OMS, inclusive, já tenha fixado um tempo máximo de 2 horas por dia para crianças de 6 a 10. Para ela, nessa faixa, com tantos aspectos atrativos que as telas e os jogos trazem, ficar em frente às telas também se torna quase um vício que acaba atrapalhando outras vivências. “Fica muito difícil para a criança abandonar ou trocar o celular por uma atividade mais física da qual os demais colegas não querem participar e cujo retorno de prazer não é tão fácil e imediato como no celular”, diz.

A psicóloga clínica e hospitalar Elenir Carvalho, que também atua no Departamento da Saúde da Criança e do Adolescente, explica que há impactos na saúde mental que também podem ser trazidos por conta da obesidade. “Podem aparecer sintomas como a timidez em decorrência do medo de rejeição social e do bullying, além da baixa autoestima relacionada à imagem corporal que se distancia dos padrões sociais mesmo na infância”, diz. Para ela, se esses sintomas não forem percebidos e tratados, podem levar a crises de ansiedade, fobia social e depressão, transtornos psicológicos mais comuns ligados ao impacto da obesidade no desenvolvimento humano.

Na sua visão, enquanto especialista, um tratamento aliado à psicologia no combate à obesidade deveria contar com “atividades físicas, artísticas, esportivas, lúdicas e de contato com a natureza, disponibilizando esse acesso para que as crianças sejam encorajadas a expressar suas emoções e vivenciar suas possibilidades.” Para ela, essas atividades também facilitam a canalização da energia de forma mais saudável e consciente.

A psicóloga clínica e hospitalar Elenir Carvalho explica que sintomas, como timidez, quando não tratados podem levar a crises de ansiedade, fobia social e depressão, que são transtornos ligados à obesidade (Foto: Arquivo Pessoal)

Dificuldade de acesso ao tratamento adequado

Para Marcelo e Elenir, o tratamento adequado para crianças e adolescentes com obesidade precisa ser aliado a uma equipe multidisciplinar de atendimento, pois o médico revela que é desse modo que se tem “maior chance do tratamento ser efetivo”. De acordo com a experiência de Elenir, no entanto, a classe socioeconômica não é só uma variável que predispõe à obesidade atualmente, mas também um fator que de fato dificulta o acesso a esse cuidado adequado. “Isso afeta tanto do ponto de vista de arcar com uma dieta, quanto do ponto de vista psicológico. Se há um outro transtorno além da obesidade que precisa ser tratado, é necessário haver acompanhamento com um profissional mais qualificado, e, às vezes, até tratamentos mais demorados”, explica.

Para ela, o SUS ainda não disponibiliza acesso suficiente a esses serviços de psicologia, ficando as classes menos favorecidas desprovidas desse atendimento integral. “Tem casos também em que, mesmo conseguindo a vaga para atendimento no SUS, os pais não têm condição de pagar passagem de ônibus ou não têm como levar a criança até o atendimento”, diz.

O pesquisador Rafael Moreira explica que esse mesmo cenário econômico acaba gerando dois casos graves e quase opostos na área da nutrição: o das pessoas que estão sofrendo com um quadro de insegurança alimentar por não terem condições para se alimentar (o que foi agravado na pandemia), e o das pessoas que estão se alimentando com ultraprocessados que de fato não nutrem, gerando ganho de peso descontrolado.

A solução, para Elenir, não pode se concentrar em jogar a responsabilidade por esse quadro cada vez mais grave exclusivamente sobre as próprias pessoas que já foram afetadas pelos problemas apontados e que, inclusive, já estão sofrendo vários danos. Ao contrário, ela conclui que: “É preciso ter políticas públicas para que a pessoa tenha alternativas”.

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