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Discussão científica sobre Lei de Drogas mobiliza escola em JF

debate drogas
O pesquisador Marcelo Campos, ao centro, com a professora Ludmilla (à esquerda) e os alunos da Escola Estadual Batista de Oliveira (Foto: Divulgação UFJF/ Marcella Victer)
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Menos de três meses depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) descriminalizar o porte de maconha para consumo pessoal, o projeto de extensão da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) “A ciência que fazemos” levou a Lei de Drogas (Lei nº 11.343) e as mudanças recentes como tema de bate-papo com alunos do ensino médio da Escola Estadual Batista de Oliveira, no Bairro Costa Carvalho, Zona Sudeste. O objetivo é debater como essas políticas são capazes de impactar a vida dos estudantes. No cerne da questão, estão as desigualdades e o hiperencarceramento provocados pela norma, que não estipulava quantidade máxima de entorpecente para o usuário ser considerado como tal. Com isso, acabavam sendo presas pessoas jovens, periféricas, pobres, pretas e com baixíssima escolaridade.

Só em Minas Gerais, houve 362.565 ocorrências registradas como tráfico de drogas entre 2012 e 2023. Entre 2022 e 2023, ocorreu aumento de 9,1%, saltando de 27.081 para 29.546 casos. O uso e consumo de drogas, por sua vez, apresentou um perfil de ascensão substantiva entre 2019 e 2021, pulando de 25.042 para 41.942. Já entre 2022 e 2023, houve acréscimo de 29,8%, indo de 34.976 para 45.410 registros. Os dados são do Anuário de Segurança Pública, publicado nesta semana pelo Governo de Minas.

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Apesar de o perfil dos presos nessas situações não ter sido divulgado, dá para se ter uma ideia de como a desigualdade acontece ainda antes da vida adulta pelas características dos adolescentes apreendidos por atos infracionais no estado. O tráfico de drogas corresponde a 29,11% das apreensões, representadas contra 1.311 jovens no ano passado. O delito de tráfico lidera a lista, seguida por roubo à mão armada (17,47%), roubo (12,01%), homicídio qualificado (11,92%), homicídio (6,11%), outros (18,65%) e sem informação (4,73%). Conforme o documento, 97% dos infratores são do sexo masculino e 80% tinham entre 15 e 17 anos na data de admissão. Entre aqueles que cumpriam medida socioeducativa de semiliberdade e internação por tempo indeterminado, apenas 50% declararam sua raça/cor, sendo 81% pretos e pardos. Sobre a faixa de renda, quanto menor a média familiar, maior o número de adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa, conforme o Anuário.

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Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFJF, Marcelo Campos concedeu entrevista à Tribuna após a visita na Escola Estadual Batista de Oliveira, no dia 5.

“O debate com os estudantes foi excelente, eles sentem muito na pele essas questões, vivenciam em seus bairros, algumas vezes em suas famílias. Foi muito importante discutir para eles conhecerem a lei, seus direitos, saberem a legislação do país e as recentes mudanças que impactam as vidas deles, de suas famílias e de suas redes.”

Autor de “Pela Metade: a Lei de Drogas do Brasil” (Editora Annablume), fruto de sua tese de doutorado na Universidade de São Paulo (USP), em sanduíche com a Universidade de Ottawa, no Canadá, Marcelo dispara que a Lei de Drogas gerou desigualdades, pelo menos desde 2006, quando foi aprovada. “Intensificou o encarceramento por drogas de um perfil social bastante definido, sendo 80% de homens, embora o crescimento de mulheres incriminadas por drogas nos últimos tempos seja muito significativo: chegou a 60% da população de presas e está, hoje, em torno de 50%.”

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A predominância é de jovens, sobretudo até 30 anos. “Trabalham em ocupações bastante precárias. Analisei, cientificamente, que pelo menos 70% não tinham emprego ou trabalhavam em profissões de menores escolaridades, como serviços e comércio. No primeiro escalão da ocupação estão os trabalhadores de bens industriais.” Sobre a escolaridade, 70% têm até a educação primária e só 2,7% cursaram ou estavam cursando o ensino superior. “São majoritariamente da periferia. O bairro pesa muito”, conclui. O especialista ainda cita a última pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), lançada em 2023, a qual aponta que 68% dessas pessoas detidas por drogas são negras.

De 32 mil a 180 mil presos por drogas no Brasil

O professor da UFJF, Marcelo Campos, destaca que a Lei nº 11.343, portanto, reforçou as desigualdades ao prender uma população jovem, periférica, pobre e com baixíssima escolaridade, com as ocupações mais precárias da sociedade brasileira e de grande maioria negra. “A Lei de Drogas intensificou muito o número dessas prisões: até 2005 eram 32 mil pessoas presas por drogas no Brasil, hoje são, aproximadamente, 180 mil.”

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Para ele, a própria lei foi feita em desigualdade: “Ela mesma diz, no artigo para determinar o uso, que não há nenhuma quantidade ou tipo de droga específica, mas que as autoridades atenderão as chamadas ‘circunstâncias sociais e pessoais do agente’. É uma lei desigual na sua formulação e na sua aplicação.” O argumento central da tese dele é que as pessoas não foram deslocadas, como dispõe a lei, ainda que sem quantidade e tipo específico de droga, para o sistema de saúde pública, para a rede de atendimento aos usuários de drogas fora da prisão. “Então, nesses anos, intensificou-se o encarceramento, e não necessariamente de pessoas que seriam consideradas grandes traficantes. Muito pelo contrário.” Com isso, ele avalia, o impacto no sistema prisional é total, por conta da superpopulação carcerária e do déficit de vagas.

“Em Juiz de Fora acontece o mesmo cenário. Claro que há variações nos estados, mas, no geral, podemos dizer que a cidade só reflete essa tendência nacional do hiperencarceramento por drogas. A especificidade municipal é só reflexo do cenário nacional.”

Mudanças

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O autor de “Pela Metade: a Lei de Drogas do Brasil”, Marcelo Campos, lembra que a discussão sobre o tema chegou ao STF em 2015 e só teve conclusão neste ano, com o Recurso Extraordinário. Para ele, isso mostra “o quanto há de polêmica no tema”. “Finalmente, obteve-se um critério quantitativo, apenas referente à cannabis (sativa), com a proposta de até 40g ou seis plantas fêmeas (para usuário). Acreditamos que isso avance em termos de garantias e direitos fundamentais, sobretudo se tomar a discussão que é feita pelo mundo sobre o potencial científico da chamada cannabis medicinal e as mudanças feitas também no uso recreativo ao longo do mundo, como nos EUA, Canadá e Portugal.”

No Brasil, entretanto, ele acredita que essas mudanças podem ter pouco impacto. “Claro que são bem-vindas e representam avanço em garantias e direitos fundamentais, em termos do uso ser considerado uma questão de saúde pública e de ter um quantitativo. Ao mesmo tempo, como permanece uma ideia de um critério valorizado subjetivo, acreditamos que no sistema prisional essa mudança trará pouco efeito. Continuará o encarceramento em massa e a continuidade da desigualdade.”

Além disso, a situação pode ser agravada pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/23, que tramita no Congresso Nacional. O projeto altera o artigo 5º da Constituição Federal, para prever como mandado de criminalização a posse e o porte de entorpecentes e drogas afins sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar. “Os retrocessos da PEC de 2023/45 são enormes. Em termos de saúde pública, perde-se muito voltando a ser crime. Em 2006, o Congresso Nacional aprovou a lei (11.343) que tira o uso de drogas da esfera da pena de prisão e de multa. A PEC volta parecida com a lei anterior, de 1976”, aponta o pesquisador.

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