Ícone do site Tribuna de Minas

Racismo ambiental: onde estão as vítimas de desastres naturais?

linhares fernando priamo arquivo tm
Pesquisador aponta soma de riscos no Linhares, com construções muito próximas e, em alguns casos, dentro da calha do Córrego do Yung (Foto: Fernando Priamo/Arquivo TM)
PUBLICIDADE

“É preferível morar no alto do morro do que não ter casa”, diz Sônia Sousa Mota sobre os desastres ambientais que atingem o Bairro Linhares, localizado na Zona Leste de Juiz de Fora, no qual ela reside há 59 anos. O local em que ela nasceu, cresceu e criou os filhos é, por vezes, cenário de tragédias ligadas a enchentes e desabamentos de terra.

Em dias de chuvas fortes, as casas da parte baixa do bairro, próximas ao Córrego do Yung, que corta o lugar, ficavam tomadas pela água. Quando a terra que era empurrada das encostas, o medo era de desabamentos, que já tinha precedente. Conforme relembra Sônia, foi em 2012 que o bairro testemunhou uma de suas maiores tragédias.

PUBLICIDADE

Um deslizamento de terra atingiu uma residência em que estavam duas jovens, ambas de 19 anos. Elas morreram soterradas e, na parte da casa em que os corpos foram encontrados, a lama já alcançava o teto. Sônia conhecia uma das vítimas, que era sobrinha de uma amiga. Comumente, ela se deparava com a jovem no ônibus, sempre sorridente e com belos cabelos encaracolados, como ela mesmo define.

PUBLICIDADE

De acordo com a Defesa Civil, em Juiz de Fora existem 142 áreas de risco geológico (como de deslizamentos de terra) e 27 de risco hidrológico (como as inundações). Conforme matéria publicada na Coluna Biosfera, da Tribuna de Minas, deste sábado (10), a Região Leste – onde fica o Bairro Linhares – é o ambiente em que predomina o risco de escorregamento de encostas, devido ao relevo e ao solo do local. De maneira similar, também é ali um dos pontos de maior risco de inundação no município, haja vista a proximidade com os cursos d água.

A morte das jovens soterradas deixou uma lacuna na vida dos conhecidos, mas, também, a memória de um desastre no bairro. Ainda que diferentes locais possam estar suscetíveis a fenômenos ambientais, são determinadas populações que sofrem com mais intensidade e frequência essas mazelas – e não é coincidência, é racismo ambiental.

PUBLICIDADE

Conforme observa o doutorando em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Leo Biage, pesquisador com enfoque em injustiças ambientais e segregação urbana associadas aos riscos de escorregamento de encostas, a história do bairro remonta a uma ocupação feita pela população negra. A associação entre o perfil dos moradores do local ser majoritariamente negro e o bairro apresentar riscos geológicos por ser um vale com encostas íngremes é feita por Leo para apresentar o que seria, na prática, o racismo ambiental. “É evidente uma soma dos riscos nesse bairro, com construções muito próximas e, em alguns casos, dentro da calha do Córrego do Yung”, aponta.

Clarice Cassab, professora do Departamento de Geociências da UFJF e coordenadora do Núcleo de Pesquisa Geografia Espaço e Ação – NuGea/UFJF, explica também como isso pode ser visto pela população.”Cotidianamente percebemos isso em situações ligadas a enchentes, inundações, deslizamentos de terras e depósito de lixo. Não é coincidência que as populações mais vulnerabilizadas são as mais afetadas por isso”. Ela acrescenta uma percepção sobre quem formam esses grupos. “Se considerarmos que são compostos sobretudo pela população negra, entendemos que o racismo ambiental é expressão, consequência e (re) produtor do próprio racismo estrutural de nossa sociedade.”

PUBLICIDADE

Para ilustrar essa perspectiva, ela cita a fala da ministra Anielle Franco a cerca do tema e as críticas diante disso.  “Há um falso entendimento que os desastres ambientais (que são socioambientais) são “democraticamente” distribuídos. O que não é verdade. Como mencionei, eles recaem fortemente sobre determinados grupos étnicos e mais vulneráveis. Reconhecer sua existência, penso ser um passo fundamental.” Nesse caminho, estratégias de combates são pautadas. “Outro aspecto é adoção de medidas rigorosas de controle e punição a empresas com forte capacidade de gerar impactos ambientais. Campanhas educativas e de conscientização. Investimento em saneamento básico. Participação efetiva das comunidades atingidas em políticas e ações direcionadas ao enfrentamento dos impactos ambientais”, ela enumera.

Pesquisa expõe o racismo ambiental em JF

Na pesquisa de doutorado realizada por ele, o racismo ambiental está associado a indicadores como raça, classe social e segregação urbana. Ele chama atenção para que o debate sobre as áreas de risco seja atravessado também por uma abordagem étnico racial de quem ocupa esses locais. O objetivo, segundo ele, é jogar luz nessas questões, “que não podem ser vistas exclusivamente como naturais”.

“O próprio mapeamento desenvolvido pela Defesa Civil, em que são considerados fatores como: número de ocorrências registradas, tipo de solo, declividade e grau de ocupação revelam algo marcante. Quando o mapa é observado, há diferença entre a região central de Juiz de Fora e os bairros do entorno, localizados na margem direita do Rio Paraibuna, com os bairros da Zona Leste, que estão na margem esquerda. No último caso, ele aponta que a ocupação das áreas de risco é historicamente realizada pela população majoritariamente negra.

PUBLICIDADE

Articulação entre setores

A doutora em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos Nathalia Roland reitera a necessidade de uma interlocução entre a engenharia e as demais áreas das ciências humanas em que o conceito de “racismo ambiental” é debatido. “Na área de engenharia é muito comum uma abordagem tecnocêntrica, bastante voltada à execução de obras físicas. No entanto, além das obras, são necessárias também medidas de gestão, relacionadas à sustentabilidade das políticas públicas”, explica, sobre um possível caminho para que as populações mais vulneráveis sejam atendidas pelos serviços públicos.

No que tange a ação de órgãos públicos, a identificação das particularidades dos locais, bem como as pessoas em áreas de vulnerabilidade social serem prioritárias são alguns dos aspectos apresentados pela professora de Engenharia Sanitária e Ambiental, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Ela indica o reconhecimento dos déficits como um pilar para que as políticas públicas sejam desenvolvidas a partir disso.

 

PUBLICIDADE
Sair da versão mobile