Nem todos têm facilidade na hora de dormir. Pelo contrário: pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) indica que mais de 72% da população brasileira sofre de doenças relacionadas ao sono. Dados coletados pelo Instituto do Sono, por meio do Estudo Epidemiológico do Sono (Episono), especificam que, só em São Paulo, 42% dos paulistanos roncam três ou mais noites por semana e 45% queixam-se de insônia ou dificuldades para dormir, por exemplo. Além disso, cerca de 5% tomam remédios para dormir.
Isabelle Machado, estudante de Direito na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), sabe bem o que é isso. Ela conta que os problemas com sono começaram aos 16 anos, após mudar de casa e de escola. “Ficava até dois dias acordada e comecei a ficar muito estressada, porque não dormia bem, às vezes não pregava o olho. Então comecei a ter paralisia do sono e, às vezes, apneia, quando dormia de mau jeito ou de barriga para cima. Procurei uma neurologista porque comecei a ter ansiedade e pânico, e tudo era agravado pela falta de sono”, relata.
Para melhorar a qualidade do sono, Isabelle iniciou, junto com o tratamento, a prática de atividades físicas e a higiene do sono – mudou hábitos para se preparar para dormir. Mesmo assim, ela conta que, ainda hoje, aos 23 anos, ainda sente dificuldades à noite. “Tenho paralisia do sono quando estou estressada. Tomo medicamento desde 2020. Em uma época, sentia medo de tentar dormir e passar por essas situações mais uma vez”, diz a estudante.
Distúrbios do sono
De acordo com a neurologista e especialista em Medicina do Sono Celeste Negrão, na classificação internacional de doenças existem mais de cem distúrbios de sono listados. Os mais comuns são insônia, apneia do sono, ronco, bruxismo, sonambulismo e despertar confusional, entre outros. “Um caso muito interessante é o distúrbio comportamental do sono REM (movimentos oculares rápidos). Nessa fase, ocorre a maior frequência de sonhos. Quando esse distúrbio está presente, a pessoa faz o que está sonhando: tem atividades motoras, como correr e agredir. Narcolepsia (sonolência excessiva diurna) e síndrome das pernas inquietas são outros distúrbios, mas todos têm diagnóstico relativamente fácil. A maior parte não tem cura, mas o tratamento é bem eficiente”, conta.
Todos os distúrbios do sono levam a uma qualidade de vida ruim, explica Celeste. “Se você não dormir bem, consequentemente, no dia seguinte, fica mais propenso a acidentes de trabalho e de trânsito, diminui a concentração e a memória, aumenta a irritabilidade, causa problemas no relacionamento com familiares e colegas de trabalho e muito mais, tudo em decorrência de uma noite de sono ruim.”
Importância do sono
A neurologista afirma que dormir é tão importante quanto a alimentação e a hidratação durante o dia. “É fundamental para a nossa saúde física e mental. Algumas pessoas tendem a diminuir a importância dele, com ideias como ‘virar a noite’ e compensar no dia seguinte. Mas isso não existe. Criar débitos de sono gera prejuízos na qualidade de vida”, alerta. Celeste explica ainda que, durante a noite, o organismo produz uma série de substâncias que são importantes no funcionamento do corpo humano. “O hormônio do crescimento é produzido no sono profundo, além de cortisol, melanina e várias outras”, exemplifica.
Em entrevista à Tribuna, o presidente da regional Minas Gerais da Associação Brasileira do Sono (ABS), Almir Tavares, complementa que é fácil observar os problemas causados por dormir um pouco menos. “Cito irritação, dificuldade de controlar as emoções, impulsividade, piora na qualidade das decisões, cansaço mais fácil, preguiça, menos energia para a atividade física, sonolência diurna, pior memória, pior capacidade de concentrar-se, dificuldade para fazer as coisas, dor de cabeça, menor capacidade de controlar a alimentação, ganho de barriga, piora dos reflexos, acidentes, quedas e pressão alta, entre outros”, enumera. “A meu ver, sono perdido está perdido. Não há como recuperá-lo e quase nada pode ser feito para se evitar os desgastes. Esta é a dramática verdade.”
Em busca do sono reparador
Segundo Celeste Negrão, a definição de dormir bem é ter um sono reparador, uma sensação de que dormiu, manteve o sono, acordou bem disposto e sem dificuldades, além de, durante o dia, estar sem sonolência e apto para cumprir suas funções. Almir Tavares destaca, também, que cultivar um bom sono ao longo da vida leva muitos anos. “Talvez seja comparável a construir um corpo com bons músculos. Gasta vários anos de trabalho na academia ou na piscina. O número de horas de sono recomendadas varia ao longo da vida. Ao nascer é maior, e na velhice, menor.”
A quantidade necessária de sono é individual. Celeste explica que, em média, para a maioria da população, de sete a oito horas é considerado um bom número.
“Existem os extremos: 5% são os dormidores curtos, que necessitam de menos de seis horas para se sentirem bem, revigorados no dia seguinte; por outro lado, outros 5% são dormidores longos, que precisam às vezes de dez, onze horas de sono. Além da quantidade, importa, também, a qualidade. Ou seja, a pessoa precisa passar pelos ciclos e atingir o sono profundo para estar bem no dia seguinte.”
A médica esclarece que, para ter um sono de qualidade, a primeira coisa é, na hora de acordar, já se preparar para uma boa noite de sono. “São hábitos que você adquire. O sono é dividido em fases de sono REM e não REM. Na fase não REM, há os sonos superficial, intermediário e profundo. Depois entra no sono REM. Isso acontece em ciclos, mais ou menos de quatro a seis por noite, com duração de mais ou menos 60 a 90 minutos cada.”
Além disso, a diferença entre claro e escuro tem impacto. “Os homens das cavernas dormiam na escuridão e durante o dia estavam acordados. Com a evolução e, principalmente, a invenção da lâmpada elétrica, além de televisão, computador e celular, as pessoas começaram a se privar do sono. No momento de preparação para dormir, chegamos em casa, ligamos a TV, navegamos nas redes sociais e, no fim, a noite de sono é ‘empurrada para frente’. Isso leva a um prejuízo na qualidade do sono, fazendo uma privação crônica dele, o inibindo pela relação com as telas”, esclarece Celeste.
A melatonina, fundamental para o sono, é produzida na escuridão. “Enquanto estamos diante de telas, com luminosidade, a secreção do hormônio vai sendo adiada e isso leva ao prejuízo no sono. Para ter uma boa qualidade, a pessoa deve ter hábitos. Dentre eles, evitar, na parte da noite, bebidas com cafeína (refrigerante, café, chá preto e achocolatados), bebidas alcoólicas, fumar, exercícios físicos e deitar com fome ou sede. Além disso, procurar ambientes tranquilos, sem luminosidade e ruídos, temperatura agradável e fazer refeições leves. Também é importante manter horário regular para deitar e levantar, para manter uma rotina.”
Sono deveria ser prioridade
O médico do sono Almir Tavares explica que, além da idade, afetam o sono a estação do ano, a duração da luz solar, o ciclo menstrual, o horário das refeições, o hábito de fumar, o uso de bebidas alcoólicas, o nível de escolaridade, o trabalho, o nível de estresse, a ansiedade e outros fatores. Muitas destas variações são normais e não podem ser corrigidas, explica. Além disso, Almir destaca a necessidade de análise da estrutura de vida de cada um.
“Antigamente não era assim. Mas, nos últimos anos, começamos a reconhecer que o sono é muito importante para a saúde. Sendo assim, é razoável adotar uma estrutura do dia em que seja possível dormir as oito horas de sono recomendadas. ‘Ah, mas, eu não posso. Tenho que trabalhar, estudar, me divertir, conversar, namorar, ver séries e novelas, além de acompanhar as redes sociais. Bom, é uma questão de analisar a estrutura de sua vida e destinar mais tempo para o que for prioridade. Para uma vida longa e com boa saúde, são necessárias essas oito horas de sono”, sentencia.
Diagnóstico e tratamento
Com a ajuda da medicina do sono, é possível obter um diagnóstico correto e realizar o tratamento das doenças associadas. Celeste Negrão explica que isso é possível através do conhecimento da história do paciente através da anamnese, além de um exame físico e a polissonografia. Esta última consiste no monitoramento durante a noite com vários parâmetros: eletroencefalograma, eletrooculograma, eletromiografia, cintas respiratórias abdominais e torácicas, eletrodos de movimentos de perna e cardíacos e oximetria para avaliar saturação de oxigênio. Com isso, é possível diagnosticar distúrbios com maior precisão.
A médica ressalta, ainda, que é muito importante que alguém que durma com o paciente compareça ao exame. “Às vezes, ele não percebe que ronca, que tem apneia, que é sonâmbulo ou tem outros distúrbios. O relato de um parceiro é valioso”, destaca. “Cada distúrbio tem um tratamento diferente. No geral, para todos, é importante praticar atividades físicas ao longo do dia, perder peso e ter uma alimentação saudável à noite. Alguns deles podem ser tratados com medicação, terapia cognitivo-comportamental e até mudanças nos hábitos e no ambiente de sono. Em casos específicos, a cirurgia é recomendada.”
*Bernardo Marchiori, estagiário sob supervisão da editora Fabíola Costa