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A escola ‘abraça’ a comunidade, a comunidade ‘abraça’ a escola

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Uma das oficinas do Polivalente de Benfica abertas à comunidade é a de karatê, com o professor Emerson Gonçalves (Foto: Marcelo Ribeiro)
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Por trás dos portões azuis da Escola Estadual Presidente Costa e Silva, o Polivalente de Benfica, na Zona Norte, alguns sons se destacam nas manhãs de sábado. São comandos e golpes do karatê entoados em uníssono, batidas rítmicas do hip-hop, músicas usadas para a prática da zumba, percussão da roda de capoeira e apito usado nas aulas de futsal que “delatam” mais do que simples sons. Eles revelam que ali há uma escola aberta para a comunidade.

A abertura é possível por meio do projeto Recrear, fruto dos esforços de estudantes pertencentes ao Grêmio Estudantil Polivalente (GEP). A ideia partiu da necessidade identificada pelos próprios alunos de tirar crianças e adolescentes das ruas e evitar o contato com as drogas e a criminalidade. Naquele momento, era preciso pensar algo que atraísse essas pessoas para o espaço escolar. O estudante do terceiro ano do ensino médio Weberthon de Carvalho trouxe a proposta a partir de outro projeto da cidade de Volta Redonda (RJ), onde morava. O jovem sentia a necessidade de fazer algo que envolvesse a comunidade e os estudantes ao mesmo tempo e encontrou apoio no GEP.

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De início, houve resistência. O projeto parecia ambicioso demais para a escola. Do outro lado, a comunidade precisava ser convencida de que era algo bom e confiável. “O que passava pela nossa cabeça era ‘como vamos fazer isso?’, ‘como conseguir que as pessoas disponibilizem tempo e experiência de graça, para dar aulas para alunos que elas não conhecem?’, isso especialmente no sábado, dia de descanso para a maioria das pessoas. De início, era muito difícil acreditar”, afirma Werberthon.

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Todas essas barreiras foram derrubadas com o trabalho e a conquista do respeito. “Percebemos que houve uma mudança da relação das pessoas com a escola. Elas passaram a respeitar ainda mais o espaço e as atividades. Os participantes viram que era gostoso estar aqui. Os oficineiros são muito bons, eles sabem o que estão fazendo, e isso tudo atribuiu mais responsabilidade aos meninos”, relata orgulhosa a diretora Elizete Faria. Ela ainda destaca que, além da ideia, toda a execução é feita e pensada pelos jovens. “Eles são responsáveis por tudo. Nossas intervenções são muito pequenas e pontuais. Os meninos chegam cedo aos sábados, organizam os espaços para as oficinas, depois voltam com tudo para o lugar. Eles cuidam bem de tudo.”

Quem participa da iniciativa garante que o impacto vai além. Thayná Moreira, inscrita na oficina de hip-hop e participante ocasional das aulas de zumba, é estudante de outro colégio, a Escola Estadual Professor Lopes. “O projeto mudou meu dia a dia, porque eles nos acolhem de uma maneira diferente. Aqui, desde o início, nos familiarizamos. As pessoas são bem companheiras e nos acolhem com alegria.” Ela comenta que se tornou mais disciplinada desde que teve contato com o Recrear e que isso a ajuda em outros campos da vida.

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O impacto também chega a quem oferece tempo e esforço para a iniciativa. O oficineiro voluntário e professor de karatê Emerson Gonçalves levou o conhecimento adquirido na Academia Comunitária de Apoio Infantojuvenil (Acaij), do Bairro Santa Rita, Zona Leste, para dentro do Recrear. “É uma oportunidade interessante, porque conseguimos fazer a diferença. Conseguimos ensinar não só a arte marcial, mas o respeito, a disciplina, a concentração, e a resposta das crianças é muito positiva.”

‘Eu sou o que nós somos’

Grupo dança hip-hop nos sábados pela manhã, utilizando o espaço de uma sala de aula do Polivalente (Foto: Ricardo Ribeiro)

Os estudantes ligados ao Grêmio Estudantil Polivalente (GEP) começaram a lidar não só com a necessidade de oferecer oficinas para recreação, mas com outras carências percebidas. De maneira paralela, lançaram o projeto Ubuntu. O estudante Kayo Rodrigo, que também faz parte do grêmio, afirma que a iniciativa nasceu da percepção da necessidade de fortalecer a comunidade. “Ubuntu, de uma maneira mais simples, significa ‘eu sou o que nós somos’, então, como eu posso ficar bem sabendo que o meu próximo está mal? Isso vai além do Governo, do Estado ou de qualquer outra coisa. Parte de mim (o indivíduo). Sou um ser humano e reconheço algo em que posso ajudar.” Por meio do Ubuntu, os estudantes captam demandas mais urgentes e se mobilizam para conseguir resolvê-las.

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As famílias de alguns alunos passavam por problemas financeiros graves, a ponto de faltar comida em casa. Os participantes do GEP captaram essa necessidade e fizeram um baile na escola. A entrada era 1kg de alimento não perecível. Com o que arrecadaram, foram montadas 37 cestas básicas, que foram doadas às famílias. Desde então, a partir da necessidade apresentada, seja de alimentos, roupas ou qualquer insumo, eles se organizam e tentam resolver.

“Quando começamos tudo isso, queríamos atrair cerca de 20 alunos para a escola. Fomos finalistas em um prêmio que envolve todo o país, representando Minas Gerais, impactamos cerca de cem famílias, e isso é algo que só tende a crescer e a beneficiar mais pessoas. Estamos sempre abertos a novas ideias”, traduz Kayo sobre a trajetória do grupo, que não para de maquinar meios de melhorar a realidade.
Kayo refere-se ao Prêmio Construindo a Nação, do Instituto Cidadania Brasil. O Recrear foi o único de Minas Gerais a figurar entre os finalistas, de um total de 519 inscrições. Na final, divulgada na última semana, ficou entre os 18 melhores do país.

 

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Participação no Grêmio Estudantil

O encontro da equipe da Tribuna com os representantes do projeto aconteceu na biblioteca da escola. Alunos, oficineiros sentados lado a lado em meia-lua em volta de uma mesa. Thayná Moreira, Gabriel Pires, Deivid Nicácio, Breno Lopes, Kayo, Weberthon e os oficineiros Emerson Gonçalves e Victor Mendes. Todos eles com idades entre 14 e 24 anos. A conversa era de igual para igual com a diretora. Eles falavam com empolgação sobre novas ideias e até sobre os possíveis nomes para as próximas iniciativas que planejam. Elizete Faria fazia o contraponto. Eles já entenderam que têm força para mobilizar e agir. Ela os convencia a adequar o querer ao poder, sem desencorajar o ímpeto de fazer.

O projeto, segundo a diretora, ganhou contornos muito maiores que o idealizado. Além de beneficiar os participantes, contribuiu para o combate a crimes, como invasões, arrombamentos e furtos. “Nós tínhamos um problema gravíssimo. A escola era furtada uma semana sim, outra não. Eram muitos casos de depredação à estrutura e de roubos. Desde que o projeto começou, não tivemos mais registros.”

Ficou clara, também, uma preocupação com a continuidade de todas as ideias. Weberthon, por exemplo, termina a formação no ensino médio neste fim de ano. Mas eles já se preocupam em preparar outros estudantes, para que sigam envolvidos com as atividades. “Somos muito ligados ao Recrear. Particularmente, ele mexe muito com o meu psicológico, é algo que me movimenta. Ano que vem, mesmo rompendo o vínculo de aluno, sei que outras pessoas com os mesmos objetivos vão dar continuidade. Eu vou me fazer presente, com todo o suporte que puder, mesmo sem estar tão diretamente presente como gostaria”, diz o coordenador da iniciativa.

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Fala legitimada

O Grêmio Estudantil Polivalente (GEP) foi oficializado nos primeiros meses de 2016. Desde então, os estudantes tiveram o espaço de fala legitimado, passaram a participar de reuniões de colegiado e das decisões tomadas pela direção. “Eles participam de tudo. Sempre consultamos os meninos quando vamos tomar alguma decisão sobre a escola. Eles estão junto comigo até na hora das compras”, diz a diretora.

Essa participação é vista de maneira positiva pela Superintendência Regional de Ensino, porque cria uma gestão mais participativa e democrática. “A escola está com outra cara, está mais aberta ao diálogo, os problemas com crimes, que eram muito frequentes, acabaram. É um processo muito interessante e muito positivo. Que é exemplo para outras unidades. Eles não cruzaram os braços e esperaram as coisas caírem do céu, buscaram a mudança que eles queriam”, explica a superintendente regional de Ensino, Fernanda Moura. Ela destaca que os estudantes pertencentes ao GEP visitam outras escolas, participam das reuniões da rede regional de representantes e de rodas de conversas com outros alunos.

O processo de dar voz aos estudantes é visto como uma possibilidade de ganho para a administração das escolas. “Eles se tornam protagonistas nesse processo. Estimulam a reflexão dos professores, dividem responsabilidades com a direção. Isso traz um processo de amadurecimento notável a esses estudantes. Temos, além do GEP, outras iniciativas que renderam resultados muito positivos na cidade”, considera a superintendente.

Laços criados a partir da ação em grupo

Alunos, oficineiros e coordenadoras do projeto Recear se reúnem na biblioteca para debater os avanços conseguidos (Foto: Marcelo Ribeiro)

A participação em grêmios e em movimentos estudantis de forma geral tem um caráter educativo importante na construção dos jovens, segundo a professora da Faculdade de Educação da UFJF Angélica Cosenza. Ela ajuda a construir o sentido de cidadania, que está para além dos direitos e deveres, deslocando-se para o sentido da participação política. “A presença deles nesses ambientes se torna muito importante, porque compõe uma participação cidadã.”

De acordo com a professora, há diferentes formas de produzir educabilidade por meio desses laços criados a partir do trabalho em grupo. Um delas é de fortalecer a relação comunidade/escola. “O que precisa ser transformado? Quais são as lutas e como a escola pode atuar para a resolução desses problemas? As lutas comunitárias existem e, à medida que o grêmio se insere nesse processo, conhecendo melhor o bairro e suas lutas, oferece uma contribuição muito forte.”

Outro ponto de educabilidade vem das construções de coletivos de jovens. “Sabemos da força desses grupos e o quanto isso tem valor para dar e identidade a esse espaço da juventude, que muitos tomam apenas como local de passagem. No senso comum, o jovem não é criança, com direitos da infância, e também não é adulto, com seus direitos e deveres. É como se nada existisse nessa fase. Os grupos ajudam a combater esse preconceito e tirá-los desse lugar comum, em que eles são tão menosprezados injustamente.”

Por meio da participação, conforme Angélica, os jovens se empoderam e trabalham, entre outros aspectos, o pertencimento e o senso de adesão comunitária. “Os grêmios são espaços de representação, e, a partir do momento em que são fortalecidos, dão a possibilidade a esses e outros jovens de exercer a democracia, algo que anda em falta no nosso país.”

Protagonismo em questões políticas

De acordo com a professora Angélica Cosenza, é preciso reforçar os lugares de fala da juventude. “Eles têm sim o seu protagonismo, seus anseios e suas demandas que precisam ser respeitados e considerados, principalmente por políticas públicas.” Nesse momento, os grêmios possuem um papel muito importante de se fortalecer a partir do direito de se posicionar. “Em tempos em que a escola é massacrada e fiscalizada por setores e discursos tão conservadores, que de alguma forma querem calar professores e alunos, e diminuir o poder de fala deles, os grêmios reforçam a democracia dentro das escolas.”

Os coletivos, em suas diversas pautas, que abordam desde questões culturais, etno-raciais, sexuais, trabalho e de gênero, são atingidos e precisam levar esses assuntos para a escola, conforme Angélica. “Temas que, no âmbito do escola sem partido, espera-se que não sejam abordados. É função desses coletivos trazer as pautas relacionadas à vida, sobre a circulação, o direito à cidade.”

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