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Imprudência de pedestres se agrava nas ruas

jovem conduz idoso ao mesmo tempo em que faz uso do celular na travessia fernando priamo

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Jovem conduz idoso ao mesmo tempo em que faz uso do celular na travessia (Fernando Priamo)
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Jovem conduz idoso ao mesmo tempo em que faz uso do celular na travessia (Fernando Priamo)

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Pedestre atravessa falando no celular em via movimentada (Fernando Priamo)

Uso de fone de ouvido na passagem de nível (Marcelo Ribeiro)

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“Quando a droga acaba, eu não sei o que está ao meu redor. Só sei que preciso de mais. E, para isso, vou sair correndo, entre os carros, em frente ao trem, o que for. Se preciso, eu vou roubar, o importante é conseguir a pedra.” O relato impressionante é de J., 39 anos, sendo 13 deles nas ruas por causa do vício do crack. Neste tempo, ele conta ter sido atropelado seis vezes, quatro por automóvel, uma por moto e outra pelo vagão de um trem. Saiu vivo desta última, mas destroncou o braço e, até hoje, diz ter dores no ombro. Nas últimas semanas, a Tribuna esteve nas ruas conversando com moradores em situação de rua e usuários do crack sobre o comportamento no trânsito e constatou que a história de J. está longe de ser um fato isolado. Embora seja este um público em potencial risco, não pode ser considerado o único. Pessoas atravessando as ruas ou a linha férrea com fones de ouvido e com os olhos nos aparelhos de telefone celular também são flagrantes comuns na área central. Não é possível conhecer todas as causas de atropelamentos na cidade, mas apenas nos cinco primeiros meses deste ano, 450 homens e mulheres deram entrada nos hospitais vítimas de carros, motos e trens, conforme dados do sistema Datasus, do Ministério da Saúde. Deste total, dez morreram.

J. foi encontrado pela reportagem no Centro de Juiz de Fora, próximo à passagem de nível da Rua Benjamin Constant. Perto dele, na região do Centro de referência especializado para a população adulta (Centro Pop), estava K., 28, três deles vividos sem um teto para chamar de seu. Ela nunca foi atropelada, mas relata situações de perigo relacionadas ao trânsito, desde que saiu de casa, em Três Rios (RJ), após o trauma de ter perdido o pai. “Eu não vim pelas drogas, vim pela dor e aqui encontrei a pedra fundamental. Não uso mais há dois anos, mas é muito difícil ficar sem, porque a tentação é grande. A gente não mata um leão por dia, nesta situação matamos 20”, conta. Mais consciente do risco em que vivia, ela afirma que os usuários do crack fazem de tudo para conseguir mais, até mesmo colocar a própria vida em risco. “O efeito só dura cinco minutos, e depois o usuário quer mais e mais. Tem muito atropelamento por causa disso, sem contar aqueles que se jogam na linha achando que vai dar tempo, e não dá. A fissura é muito forte.”

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M., 40, sendo três na rua por causa do crack, encontrado próximo ao albergue municipal, na Rua José Calil Ahouagi, acrescenta: “A gente perde totalmente a consciência. Deixamos de viver e perceber o que está em nossa volta, só sabemos que precisamos de mais pedra e vamos atrás dela, onde estiver. Se estiver do outro lado da linha e o trem estiver próximo, este detalhe pode passar despercebido. Vai direto. Não adianta te chamarem, gritarem. A onda é mais forte do que nós”, justifica, afirmando ter largado tudo por causa do crack. Foi atropelado uma vez por um carro, há dois anos, e ficou com a perna machucada. Procurou auxílio médico quando o pé começou a doer mais, depois de três dias. “Fugi do posto médico na mesma data, precisava da pedra. A perna, às vezes, dói.”

Consultório de rua

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Quem conhece de perto a realidade desta parcela da população é a psicóloga Tatiana Tavares, do programa Consultório de Rua, cujo objetivo é promover a autonomia e resgatar a cidadania destas pessoas, por meio de equipe multiprofissional. Segundo ela, apesar de a pedra ser uma substância em consumo crescente, o álcool é ainda a droga mais usada. “Nas ruas, está uma maioria de homens, sendo 80% entre pardos e negros, com idade entre 20 e 35 anos. São pessoas com escolaridade de mediana para baixa, e encontramos até algumas com ensino superior.” Para ela, seria ilegítimo qualificar todos os riscos no trânsito e na linha férrea a estes moradores, embora reconheça o fato de elas estarem em risco. “O acidente acaba ocorrendo.”

Adolescente atingido usava fones de ouvidos

Não são apenas pessoas sob efeitos de substâncias químicas que estão em risco de acidentes. Nas ruas, a falta de atenção e a imprudência são inimigas, tanto quanto as drogas. No entorno da linha férrea, na região central, muitos passam sobre os trilhos com os olhos voltados para os smartphones, com fones de ouvidos. Esta é, inclusive, a causa apontada para a morte de um adolescente, 17 anos, no dia 23 de julho. Conforme testemunhas, ele foi atropelado por uma composição férrea na passagem de nível do Mergulhão, na Rua Mariano Procópio, bairro homônimo, região Nordeste, pois não teria percebido a aproximação da locomotiva. Cinco dias depois, um homem, 58, morreu após ser atropelado por outro trem, na passagem de nível da Rua João Luiz de Barros, Bairro Poço Rico, Zona Sudeste. No dia, a família descartou a hipótese de suicídio, e informou que a vítima se locomovia com auxílio de uma muleta, já que usava prótese em uma das pernas.

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Para tratar da segurança na linha férrea e sua relação com os centros urbanos, a MRS criou a gerência de Faixa de Domínio e Interferências. O responsável pelo novo setor, Uascar Carvalho, diz que a imprudência representa 54% dos atropelamentos e abalroamentos registrados em Juiz de Fora, seguida de perto do uso de álcool e drogas associado à linha férrea. Este, no entanto, não pode ser estatisticamente comprovado, pois nem todos os casos em que os exames que comprovariam a relação são feitos pelas autoridades.

Por isso o gerente diz que a companhia trabalha, cada vez mais, na limitação de acesso à faixa de domínio. Mas há consequências: “Quando limita e fecha a linha, o usuário pode ter a impressão que aquele se tornou um ambiente propício ao consumo e à comercialização. Por isso temos ações, também, direcionadas a esta possibilidade”, informou, acrescentando que é frequente a passagem de vigilantes e de ações de limpeza neste entorno.

Palestras

Não foram mencionados trabalhos específicos da companhia no tratamento ou acompanhamento dos dependentes químicos. Com o objetivo de garantir a segurança, Uascar disse que a MRS trabalha em duas linhas de ação: rotineiras e preventivas. As primeiras incluem manutenção das passagens de nível e limpezas da faixa de domínio. Já na prevenção, são feitos trabalhos sociais com a comunidade, inclusive com promoção de palestras ligadas à realidade de cada região. “Recentemente reunimos cinco áreas da companhia e fizemos um workshop mostrando causas e razões de um acidente, tanto os que já aconteceram e aqueles que podem vir a ocorrer. Chegamos a 86 ações de trabalho. Damos nossa contribuição e fazemos a nossa parte, mas a questão das drogas é um problema nacional que envolve diversas esferas.”

Especialista diz que álcool é mais devastador que o crack

O primeiro uso do crack é dito por muitos usuários como a melhor sensação da vida. Esta afirmação é do professor da UFJF Telmo Ronzani, coordenador do Centro de Referência em Pesquisa, Intervenção e Avaliação em Álcool e Outras Drogas (Crepeia). Mas apesar do efeito devastador do entorpecente na vida da pessoa, o especialista afirma que alguns mitos devem ser derrubados. Entre eles, o fato de o usuário não ter controle sobre si. “O grande problema são as pessoas em nível de dependência. Elas precisam usar para tirar o desprazer de ficar sem a droga, que é abstinência. Deixa de ser recreativo e passa a ser uma necessidade.” Há ainda, segundo ele, o consumo da pedra que não é apenas pelo prazer: “Algumas mulheres usam como símbolo, para ganhar respeito perante os outros. Enquanto que uma parcela pode usar para se manter acordada e reduzir os riscos de estupros ou violências. Outros, usam para inibir a fome, enquanto alguns para mascarar algum sofrimento.”

Segundo o pesquisador, que é pós-doutor em Álcool e Drogas, as consequências do uso do crack não podem ser generalizadas. “A pessoa que consome álcool em excesso em uma festa e sai dirigindo pelas ruas é potencialmente mais perigosa que o usuário de crack. A bebida é muito mais penosa, inclusive em termos de impacto social e populacional. Acontece que o mundo não aceita o crack e aceita o álcool, por questões culturais e mercadológicas. Trata-se de uma indústria que gera lucro e move toda uma cadeia.”

Na sua avaliação, o uso de drogas, no contexto urbano, é algo relevante, mas ele salienta que os dependentes químicos não são as únicas vítimas e nem os únicos autores de acidentes. “Não há como negar que o consumo de drogas altera a percepção, a concentração e aumenta o risco de o pedestre se envolver em acidente. Mas é importante, também, entender que este risco aumenta com a questão da mobilidade urbana, como a cidade se organiza. Se estou dirigindo ou andando, sob efeito de drogas, em ruas mal sinalizadas e escuras, com uma linha de trem exposta no Centro, este contexto deve ser levado em consideração.”

Celular no trânsito

Assim como o efeito de uma substância química, a atenção dada às telas dos smartphones também pode interferir na percepção do que está ao seu redor, tanto para motoristas como também para pedestres. Conforme Ronzani, isso acontece porque o cérebro humano não consegue observar tudo ao mesmo tempo sem perder qualidade de percepção. “Com foco no celular, você perde a capacidade de perceber o que está em sua volta. É o mesmo que acontece com as drogas, que faz perder a capacidade de atenção, de diferentes maneiras, dependendo da substância consumida”, argumenta, dizendo que pesquisas recentes estimam em 40% o aumento de riscos de acidentes quando do uso de celular ao volante.

Alerta para abusos nas estradas

O problema dos acidentes provocados por uso de substâncias químicas também se repete nas estradas, onde motoristas embriagados e sob efeito de substâncias inibidoras de sono também são realidade. I., de 54 anos, foi caminhoneiro durante 22 anos. Atuava no eixo São Paulo/Salvador e chegava a ficar até quatro noites sem dormir. A receita? Doses de conhaque e quatro comprimidos de um emagrecedor que tem como efeito colateral manter o usuário acordado, uma substância popularmente conhecida como rebite. “O conhaque era para fazer o rebite dar efeito. No começo, o trabalho não me cansava, mas depois de um tempo você perde a motivação. Usava para continuar no ritmo e poder levar mais dinheiro para casa, pois ganhava no frete. Na primeira vez, fiz duas viagens seguidas do Rio até Brasília e falei: ‘Opa, o negócio é bom’.”

Deixou de ser há cerca de 15 anos, quando um grave acidente o fez rever os conceitos. I. dormiu, de olhos abertos, e tombou a carreta carregada de ácido sulfúrico em um pasto. “Podia ter estourado e me matado na hora. Dei uma sorte danada e só fui acordar quando já estavam me tirando do caminhão. Não pegava no sono há três dias.” Depois disso, o corpo começou a pedir ajuda e mostrava isso por meio de tremores e crises convulsivas, as quais ele trata até hoje.

Relato igualmente importante do aposentado A., 57 anos. Durante 28 anos, trabalhou com manutenção industrial e atendia, a partir de Belo Horizonte, empresas de todo o Brasil, principalmente no interior de São Paulo e no Sul do país. Viajou sempre à noite e afirma que, no início, não fazia uso de álcool. “Nos últimos 18 anos, mais cansado desta rotina, me falaram que cachaça deixava mais atento. Comecei com uma dose, quando vi estava tomando duas, quatro, até um litro, e conhaque. Cheguei ao ponto de estacionar em parada de caminhoneiro, beber e esquecer que estava de carro. Entrava em um ônibus e parava em outro lugar”, disse, acrescentando que, apesar disso, nunca sofreu acidente. “A dica que eu recebi vai na contramão de tudo que é seguro e prudente. Cria coragem, aumenta velocidade e faz ultrapassar os semáforos fechados”, disse, denunciando que ainda hoje é comum motoristas profissionais beberem antes de dirigir.

Caps-AD

I. e A. estão em tratamento no Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps-AD), um programa do Governo federal mantido em parceria com a Prefeitura. E eles não estão sozinhos, são cerca de 850 pessoas acompanhadas atualmente, sendo que seis dormem na unidade, como I.. Para a chefe do Departamento de Saúde Mental da Prefeitura, Andréia Stenner, para eliminar possibilidades de casos como estes, é preciso investir em campanhas de conscientização, como foi no caso do tabaco, que também teve a venda restrita e os impostos inflacionados. “Não temos a mesma política com relação ao álcool. As pessoas bebem sem qualquer noção dos riscos, e a exposição dos adolescentes ainda é altíssima. As propagandas são veiculadas de forma positiva e os eventos esportivos patrocinam a indústria. Enquanto não tiver um trabalho forte de conscientização, e não de proibição, não teremos avanços.”

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