Em março de 2013, a Clínica São Domingos, na Rua Doutor Ávila, Bairro Paineiras, região central, foi fechada. Já em janeiro de 2014, foi o Hospital Aragão Villar, na Rua Goiás, Bairro São Bernardo, Zona Leste de Juiz de Fora. As interdições aconteceram no contexto da Reforma Psiquiátrica no Brasil, após denúncias de precariedade e de desrespeito aos direitos humanos, muitas delas trazidas à tona pela Tribuna.
Agora, os prédios estão abandonados, tomados por pichações, vegetação e lixo. Quando a Tribuna chegou ao Aragão, um homem estava sentado na entrada. Ele recebe um trocado de moradores do entorno para fazer algumas limpezas e tentar manter minimamente a ordem. Ele, inclusive, alertou para que a reportagem não entrasse no local, pois há “moradores”, com cachorros bravos – que se anunciaram –, e que não gostam de receber visitas.
Heloísa Neves, de 81 anos, é uma das vizinhas do antigo hospital, e demonstra verdadeiro desespero com o quadro: “Graças a Deus, não passei por nenhuma situação, porque não saio à noite, mas muitas pessoas já foram assaltadas. Levaram o celular de uma moça, ela saiu gritando. Deu 21h, se a igreja não estiver aberta, até homem fica com medo de passar por aqui”.
Ela mostra que há uma gruta logo em frente ao terreno, onde rezavam o terço às 18h, mas, agora, precisaram passar para a casa de outra fiel: “A dona falou que a casa está pequena, mas o que nós vamos fazer? São cerca de 20 pessoas. Agora, estão indo umas dez, porque ficam com medo de subir a Rua Goiás, também”.
“Eles pegam latinha e vão fumar droga lá na gruta, de noite. Ontem, a moça tirou dois ali e eles voltaram outra vez. A gente limpa a gruta, mas não adianta. Fazem fogueirinha, levam papelão. Até as vassouras que pusemos aqui já carregaram”, relata. Latinhas queimadas também são vistas logo na entrada do Aragão, onde, segundo ela, também havia manilhas em que pessoas em situação de rua dormiam dentro, mas que alguém colocou fogo.
A senhora também repassa relatos de vizinhos que ouvem gritos e tiros, “mas não mata ninguém, não, só atiram para o alto”. Ela também reclama do policiamento que não passa das 18h, da falta de iluminação no local e das árvores na entrada, “que estão em tempo de derrubar os fios”. “Há pouco tempo, caiu um galho grande, a Prefeitura veio buscar, mas falam que não podem fazer nada porque é área particular”.
Heloísa acrescenta que, à luz do dia, mesmo, já roubaram as panelas, fogão, e até os basculantes que tinham no hospital. “Nasci aqui, moro aqui, nunca vi umas coisas dessas, como estou vendo. (…) Agora fica essa nojeira, essa sujeira. O pessoal faz obra, não paga caçamba, joga tudo ali”.
Muros altos e câmeras
Já a entrada da Clínica São Domingos estava trancada, na visita da reportagem, mas havia um carro no interior do local. Mesmo assim, os problemas são os mesmos. A casa de João Luiz de Paiva, de 65 anos, faz divisa com o prédio, nos fundos. Já entraram três vezes na casa dele e de outros vizinhos: “Uma vez roubaram a casa da minha irmã. Em outra, pegaram a nossa escada, passaram pelo muro do outro vizinho, que deixou a janela aberta, pegaram a carteira dele e saíram correndo por aqui”.
Quando entraram na casa da irmã, Luiz colocou duas câmeras na frente de casa e outra nos fundos, além de suspender o muro e colocar uma grade em cima. Ele acredita que o muro já tenha cerca de cinco metros de altura.
Além desse, também teve gastos em outras situações muito semelhantes às do Aragão: “Eu tenho um problema com a Clínica São Domingos que são as árvores que tem ali, com galhos muitos grandes, e está com erva-de-passarinho caindo em cima do meu telhado. Já quebrou várias telhas minhas. Aí vieram e só fizeram a limpeza, nem pagar as telhas, pagaram. Eu já pedi para eles podarem muitas vezes. Cheguei até a procurar um advogado – porque fui na Prefeitura duas vezes e eles disseram que é área particular e não podem interferir –, paguei R$ 500 para o advogado notificar eles, mas não deu em nada”.
Ele afirma que colocaram vigia no local, após um abaixo-assinado da vizinhança, mas que, agora, só fica durante o dia. Quando fecharam o local, mais uma vez de forma semelhante ao Aragão, não retiraram os pertences. “O pessoal limpou ali. Roubaram fio, computador, panela, até o banco da sala de espera. Saíram carregando o banco pela rua aqui.”
Prefeitura lista histórico de fiscalizações
A Tribuna questionou à Prefeitura:
- Se há algum processo administrativo em andamento para notificar ou responsabilizar os donos dos prédios;
- Se existe previsão de intervenção do Poder Público para reparar os danos causados às vizinhanças pelo abandono;
- Se existe possibilidade de parceria público-privada ou convênios para dar nova destinação aos espaços;
- E qual o prazo previsto para uma solução concreta em relação a esses imóveis.
Confira a nota enviada pelo Executivo, na íntegra:
“A Prefeitura de Juiz de Fora informa que ambos os imóveis citados possuem histórico de fiscalizações e registros administrativos relacionados à manutenção de suas condições externas.
No caso da Clínica São Domingos, desde 2010 foram emitidos diversos termos de intimação para serviços de capina, limpeza e recomposição de passeio, além de intimações para fechamento e cercamento do imóvel. Consta também a lavratura de autos de infração diante do não cumprimento de determinações anteriores, bem como diligências fiscais e notificações recentes para manutenção.
Em relação à Casa de Saúde Dr. Aragão Villar, há registros de termos de intimação para manutenção geral do imóvel, autos de infração em decorrência do descumprimento das medidas exigidas, além de diligência fiscal apontando intervenção da própria Prefeitura para limpeza em 2023. Mais recentemente, também foi emitida notificação sobre a manutenção fitossanitária das árvores de grande porte existentes no terreno.
Esses procedimentos se inserem no conjunto de medidas administrativas aplicáveis pelo Município para garantir a conservação mínima das edificações e resguardar o espaço urbano e a vizinhança de impactos”.
Para OAB, Município pode intervir para proteger a coletividade
O presidente da Comissão de Direito Administrativo da OAB/JF, Alexandre Duque, explica que a Prefeitura tem condições de intervir para proteger a coletividade e estimular que os proprietários assumam a responsabilidade de cuidar do próprio imóvel: “a Constituição determina que toda propriedade deve cumprir a sua função social. Quando um imóvel está abandonado, a Prefeitura tem instrumentos legais para agir. Inicialmente, ela notifica o proprietário e, caso não haja providências, pode aplicar multas e até realizar serviços como limpeza e cercamento, cobrando depois esses custos do dono do imóvel”.
“Além disso”, prossegue, “existem mecanismos mais severos previstos no Estatuto da Cidade, como o IPTU progressivo no tempo – que aumenta a alíquota do imposto até que o imóvel seja utilizado adequadamente – e, em situações extremas, até a desapropriação. Tudo isso visa a evitar que o imóvel se torne foco de insegurança, doenças ou degradação da área urbana”.
A Tribuna também pediu à Prefeitura os dados dos proprietários, para entrar em contato em busca de um posicionamento. A resposta foi de que, “por força da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), não é possível disponibilizar à imprensa informações pessoais ou sensíveis dos proprietários ou responsáveis legais pelos imóveis”.
A reportagem tentou encontrar os proprietários de diversas formas: por meio de consulta por CNPJ na base de dados do Governo, por meio de citações das clínicas em quaisquer ações desenvolvidas pela Prefeitura, disponibilizadas na internet, e por meio do Sindicato dos Médicos, entre outros. A única informação obtida foi de que o antigo diretor da Clínica São Domingos está muito idoso e afastado de suas atividades. O espaço segue aberto para manifestação.