O avanço da ciência já possibilita aos portadores do HIV levar uma vida semelhante a quem não tem o vírus. Se o tratamento for seguido corretamente, o soropositivo pode nunca desenvolver a Aids ou levar anos para chegar a essa condição. Ainda assim, as pessoas que vivem com HIV enfrentam resistência nas empresas privadas e até no setor público. O atual edital do concurso para o Curso de Formação de Soldados da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG), por exemplo, exige a realização de exame anti-HIV. Os candidatos aprovados na primeira fase, que acontece no próximo domingo (13), deverão ser submetidos aos testes de saúde até meados do ano que vem. O candidato que for portador do vírus pode ser considerado inapto e será eliminado do processo seletivo (ver fac-símile), conforme o edital.
“Trata-se de uma exigência descabida. Já existe jurisprudência em torno desse assunto, considerado um constrangimento ilegal. Essa também é a visão do Conselho Federal de Medicina. O HIV positivo não traz risco adicional no convívio social de ninguém, nem mesmo no desempenho de função burocrática ou militar. Já a doença (a Aids) é outra história”, defende o delegado do Conselho Regional de Medicina (CRM), José Nalon. Ele orienta que os candidatos que se sentirem prejudicados pelo edital busquem seus direitos na Justiça.
A mesma orientação é dada pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), que recebeu uma denúncia e irá apurar a exigência prevista no edital. Conforme a assessoria de comunicação do órgão, os candidatos que se sentirem prejudicados com a obrigatoriedade do exame podem entrar com mandado de segurança, independentemente de denúncia feita ao MPMG.
[Relaciondas_post] O edital do concurso contraria a própria legislação estadual. A lei 14.582, de 2003, considera discriminação a exigência de exame para a detecção do vírus HIV para inscrição em concurso ou seleção para ingresso no serviço público estadual. Na esfera federal, a portaria interministerial nº 869, de 11 de agosto de 1992, dos ministérios da Saúde e do Trabalho, proíbe a exigência de teste para detecção do HIV, tanto nos exames pré-admissionais quanto nos exames periódicos de saúde dos servidores públicos federais.
Sanidade física
Para exigir a testagem do HIV nos candidatos a soldado, a Polícia Militar se baseia na resolução nº 4.278, de 2013, redigida conjuntamente pelos comandos-gerais da PM e do Corpo de Bombeiros. O documento traz a relação das “doenças e alterações incapacitantes e fatores de contra-indicação para admissão” nos quadros militares. Além do HIV, chama atenção na lista doenças e alterações, como acne, diabetes, vitiligo e até a presença de pelos encravados na barba como fatores impeditivos para o ingresso na PM e nos Bombeiros.
Em nota, a assessoria de comunicação da PMMG alegou que “cumpre o que está disposto na Lei 5.301/69 em seu artigo 5º, o qual prevê que o candidato deverá ter plena sanidade física e mental. A sanidade física é averiguada por meio de exames médicos, conforme preconiza o parágrafo 8º do mesmo artigo”.
Portadores têm direito ao sigilo
De acordo com o Ministério da Saúde, o portador do vírus da Aids tem direito de manter em sigilo sua condição sorológica no ambiente de trabalho, como também em exames admissionais, periódicos ou demissionais. “Ninguém é obrigado a contar sua sorologia, senão em virtude da lei. A lei, por sua vez, só obriga a realização do teste nos casos de doação de sangue, órgãos e esperma. A exigência de exame para admissão, permanência ou demissão por razão da sorologia positiva para o HIV é ilegal e constitui ato de discriminação”, diz uma orientação no site do ministério.
A Lei federal 12.984, de 2014, define como crime a discriminação dos portadores de HIV e os doentes de Aids. Negar emprego ou trabalho ou segregar no ambiente de trabalho o portador do HIV e o doente de Aids em razão da sua condição de portador ou de doente é crime punível com prisão de um a quatro anos, além de multa. Já o artigo 4º da resolução nº 1665/2003, do Conselho Federal de Medicina, veda a realização compulsória de sorologia para HIV.
Exército
Conforme o advogado Fernando Junqueira Marques, a legislação do servidor público tem diferenças em relação à dos militares, e as restrições de soropositivos em cargos militares vêm sendo discutida há alguns anos. Uma das ações mais recentes diz respeito às exigências relacionadas à altura de candidatos e restrições a portadores do vírus HIV e outras doenças infecciosas incuráveis para ingresso nas escolas do Exército.
Em meados deste ano, a Advocacia-Geral da União (AGU) conseguiu suspender, via Supremo Tribunal Federal (STF), uma decisão que impedia a União de incluir tais exigências no edital de concurso para as escolas do Exército. Enquanto o STF não julga o mérito da questão, os editais continuam com a restrição aos soropositivos.
“A Justiça do Trabalho, por sua vez, já se manifestou em situação envolvendo portadores do vírus HIV ou de doenças graves. O resultado de anos de avaliação do Tribunal Superior do Trabalho gerou a Súmula nº 443, cujos precedentes envolvem julgamentos desde 1999. No enunciado, fixou-se o entendimento de que a dispensa de empregado portador de doença grave é tida por discriminatória e, portanto, vedada pelo ordenamento jurídico nacional”, explica.
Direitos humanos
Soropositivo há nove anos, o juiz-forano Diego Callisto, 26, um dos principais nomes do ativismo em prol dos direitos dos portadores do vírus no país, considera a exigência da PM de Minas como desrespeito aos direitos humanos. “Isso configura um desconhecimento por parte de quem elabora o edital do concurso, no sentido de que a pessoa associa o HIV à sentença de morte dos anos iniciais da epidemia, na década de 1980. Mais de 34 anos após a descoberta do HIV, hoje já sabemos como se pega e como não se pega. Independente de qualquer cenário que imaginamos o PM atuando, em nenhum deles o enxergamos como transmissor de HIV, por estar atuando nessa atividade laboral.”
Discriminação na iniciativa privada
No mercado de trabalho privado, a discriminação é um dos fatores que levam os portadores do vírus a esconderem sua sorologia. Quem está fora do mercado teme nem mesmo conseguir uma vaga de emprego, embora existam leis que protejam o portador do vírus contra a discriminação.
Formado em relações internacionais, Diego Callisto não chegou a enfrentar problemas nas empresas em que trabalhou. Mas o ativista é constantemente procurado por pessoas que já foram discriminadas. No último ano, pelo menos dois juiz-foranos buscaram orientação com ele: um recebeu ameaças de demissão por conta do HIV e outro estava na iminência de ser demitido após voltar de um afastamento por auxílio-doença.
“Se uma empresa demite alguém por ser soropositivo, ela sabe que pode responder a uma ação judicial. Então, as empresas que fazem isso acabam usando de subterfúgios, como demissão por corte de gastos, para desligar o funcionário do quadro de colaboradores. A empregabilidade para o soropositivo, quando ele abre sua condição, é delicada. As pessoas ainda têm um conhecimento muito limitado sobre HIV.”
No Centro de Apoio e Solidaried’Aids (Grupo Casa), em Juiz de Fora, além de alimentação, atendimento de saúde e oficinas, a ONG oferece apoio jurídico aos soropositivos. Uma das maiores demandas nesse ramo é em relação à discriminação no ambiente corporativo.
“Muitas pessoas que se infectaram há mais tempo foram aposentadas. Mas hoje não se aposenta mais tanto por conta do HIV. As pessoas que se tratam conseguem levar uma vida normal e adoecem menos, o que é a grande preocupação dos empregadores. Eles precisam entender que uma pessoa que tem o vírus não necessariamente vai mais ao médico do que uma que não tem”, esclarece a presidente da ONG, Rachel Renault.
No caso de discriminação no trabalho, por parte de empresa privada, o Ministério da Saúde recomenda que o trabalhador registre o ocorrido na Delegacia do Trabalho mais próxima.