As orientações das autoridades de saúde sobre a prevenção ao coronavírus fizeram com que a população ficasse mais reclusa, especialmente no primeiro momento da pandemia. Em casa, sem a possibilidade de se encontrar com outras pessoas para ter momentos de lazer e entretenimento, além do impedimento de acesso a determinados serviços e da adoção do trabalho remoto, o tempo que faltava para que as pessoas pudessem olhar para si mesmas ficou mais disponível. Ainda que não seja possível generalizar comportamentos, uma vez que cada indivíduo lida com a situação de uma forma diferente, a percepção de especialistas e das pessoas ouvidas pela Tribuna é de que a relação com a própria imagem pode ter gerado algumas reflexões nos últimos meses, levando a um maior autoconhecimento.
A professora de Psicologia do Centro Universitário Estácio Juiz de Fora, Maira Leon, reforça a ideia de que a experiência é única para cada indivíduo, conforme a criação que recebeu, sua história de vida, suas crenças e vivências. Ela pontua que como seres biopsicossociais, o olhar das outras pessoas influencia muito na construção da autoimagem, por conta, justamente, do componente social. Algumas pessoas podem se sentir mais tranquilas e menos pressionadas, em função da falta desse olhar externo, que pode ser de julgamento ou de reprovação, por conta do isolamento social, mas isso também não é uma regra geral. Contudo, o contrário também acontece.
“Com a pandemia, a gente passa a ter o isolamento social, a não conviver com as pessoas que nos fazem bem. A gente passa a não ter lazer, a ficar isolado, confinado. Isso faz diminuir a presença dos neurotransmissores do bem estar e da felicidade. Temos uma queda de serotonina e dopamina que prejudica, de certa forma, o nosso estado de humor. A nossa tendência é ter uma visão mais negativa sobre a gente mesmo, que vai influenciar na própria autoimagem”, diz a professora.
Ao mesmo tempo, de acordo com Maira, o estar em isolamento pode fazer com que algumas pessoas tenham mais tempo e mais capacidade de olhar para dentro, de se autoconhecer, identificar as próprias emoções e pensamentos. Segundo ela, o conceito de autoimagem é muito complexo, porque envolve muitas coisas, como saber se a pessoa está bem com ela mesma, se está realizada, se tem um trabalho do qual ela gosta, se as relações delas são saudáveis – tanto as familiares quanto a conjugal – e também como está sua espiritualidade. “Uma pessoa que tem autoimagem positiva, na verdade, é uma pessoa que possui uma a saúde mental bem preservada. Ela vai se enxergar como uma pessoa empoderada, capaz de realizar várias coisas, resiliente e, não necessariamente, bonita”, diz a professora.
‘Decidi ficar natural’
A aposentada Madalena Conceição de Oliveira é um exemplo de alguém que passou a perceber novas possibilidades nos meses em que está em casa, em distanciamento social. Neste período, ela decidiu abandonar o hábito de pintar os cabelos. “Eu fazia mais porque as pessoas ficavam falando. ‘O seu cabelo está ficando branco, por que você não pinta?’ Eu ia entrando nessa e via que a tinta faz um mal danado para mim. O cabelo crescia diferente. Decidi ficar natural. Quero que as coisas aconteçam do jeito que são.”
Para ela, estar menos exposta às opiniões das pessoas de fora fez com que ela passasse a pensar mais no que ela quer. “Eu tenho notado que a mim não incomoda, incomoda mais aos outros. Como não estou encontrando com ninguém, não ouço comentários. Estou gostando do que vejo quando eu olho para o espelho. Estou me vendo do jeito que estou e está me fazendo muito bem”. O tempo da quarentena, para a aposentada, é pensado como algo benéfico para uma mudança gradual. “Sinto que quero cada vez menos coisas, e mudanças totais dos hábitos precisam de tempo, para que a gente desapegue. Quero ter menos trabalho, e esse exercício está sendo muito importante para isso”.
Por outro lado, há também as pessoas que precisam de algo da organização anterior à quarentena para se sentir bem. A professora Maira Leon exemplifica essa necessidade por meio de uma paciente dela, que desenvolveu o hábito de se maquiar e se vestir normalmente como se fosse sair de casa para que tenha a sensação do trabalho mesmo permanecendo em home office.
Autoaceitação e autocuidado são palavras-chave
A professora Maira Leon ainda reforça que não há fórmula mágica para lidar com as mudanças pelas quais passamos. Todas as pessoas vão envelhecer, por exemplo. A autoaceitação, então, é a primeira palavra-chave, que também deve ser um compromisso. Se a pessoa tiver alguma dificuldade muito grande com processos como esse, é aconselhável buscar a ajuda de um terapeuta. Fazer o que gosta, o que quer, se colocar como prioridade e dizer não quando é necessário também fazem parte do autocuidado, que é a segunda palavra-chave das mudanças, segundo a professora.
Ela também diz que é necessário não estabelecer comparações com as outras pessoas. “Quando a gente se compara com o outro tendemos a desconsiderar tudo o que vivemos e tudo o que o outro viveu. São coisas incomparáveis. Esse é um processo que prejudica muito a nossa autoestima. É importante a gente se comparar conosco mesmo.”
Quando for seguro voltar às ruas e pudermos voltar a encontrar o olhar dos outros, devemos, segundo ela, voltar a questão para nós mesmos novamente: “Como penso sobre mim? Quais são as crenças referentes a mim mesmo? Sou uma pessoa capaz de vencer os obstáculos? Sou uma pessoa empoderada, que possui qualidades? Se estou com a autoestima bem preservada e com um autoconceito positivo, não vou me importar tanto com o olhar do outro.” Nesse sentido, o autoconhecimento é uma ferramenta para fortalecer a pessoa.
Conforto também no modo de se vestir
Mesmo antes de a pandemia ser anunciada, a jornalista Alice Bettencourt, que se formou em Juiz de Fora e atualmente mora em São Paulo, já estava lidando com o desafio de não comprar roupas, sapatos e acessórios e compartilhando suas vivências e observações sobre essa rotina em suas redes sociais. Primeiro, ela decidiu ficar seis meses sem compras. Em março, quando esse prazo venceu, ela decidiu alongar a experiência para um ano, e a pandemia acabou influenciando essa atividade.
“Nos primeiros meses de quarentena achei que facilitou muito o desafio. É mais fácil não sentir vontade de comprar roupas e sapatos quando você não tem mais vida social. Mas, quando chegou junho e julho, e o frio de São Paulo ficou intenso, comecei a sentir vontade comprar itens que antes não me interessavam, como um conjunto de moletom para ficar em casa quentinha, esses chinelos de pelinhos que esquentam o pé. Também senti vontade de ter mais opções de calças confortáveis (para frio e calor), mas me virei bem com as que tinha.”
Alice explica que esse período mudou o lugar do conforto entre as prioridades dela, de modo que algumas preferências por tecidos e cortes foram reafirmados, assim como a importância das peças da “parte de cima” do corpo. “Nestes meses em que a sociedade só me viu via Zoom ou vídeo do WhatsApp essa afirmação fez ainda mais sentido. A blusa virou a única peça vista. Sempre fui mais de saias… estou mudando minha cabeça.”
Indústria da moda também vai se readaptar
A coordenadora do curso de Design do Centro Universitário Estácio Juiz de Fora, Paula Castro, afirma que a moda reflete sobre as mudanças de comportamento. “Estamos vendo que as pessoas vão ser diferentes após a pandemia. Há uma mudança de cultura, de prioridade de vida. A moda reflete o que a sociedade está passando. Na faculdade vemos como podemos ensinar a história de uma sociedade por meio da moda. Nada mais correto do que a moda refletir essa situação que passamos.”
Paula explica que algumas das alterações que a pandemia provoca acabam sendo sentidas pela indústria. Na moda, por exemplo, há uma escolha de peças em função do conforto, o que estimulou algumas marcas a criarem linhas com peças que tenham essa característica como principal. “Vemos uma grande procura por malha, por exemplo, que é uma matéria-prima para roupas mais confortáveis. Essa mudança no material não é só em função do conforto, mas também da praticidade, porque quem precisa ir à rua com frequência pode lavar a roupa tranquilamente, sem precisar passar depois.”
Paula acrescenta que a moda é muito dinâmica e muito antenada no que acontece no cotidiano. “Tentamos suprir as demandas. As empresas perceberam que essas preocupações seriam tendências. Então, pelo menos nesse período, passaram a desenvolver peças mais bonitas e atraentes e ainda confortáveis. Durante a quarentena foram lançadas coleções lindíssimas de pijamas. A indústria se adaptou para oferecer um produto prático, bonito e cheio de referência de moda.” Ela acredita que a procura por peças mais leves deve permanecer no pós-pandemia.
A jornalista Alice concorda. Embora não acredite em um “novo normal” completo, ela diz que é impossível voltarmos dessa experiência sem absorver nada. Como muitas empresas adotaram o teletrabalho, de forma parcial ou totalmente, ao voltar à rotina ela acredita ser difícil não levar algo do conforto de casa para os escritórios. Para ela, a adaptação é um caminho possível, como as opções por tecidos mais fluidos e modelos de sapatos no lugar do saltos, por exemplo.
Além disso, há também a relação com a máscara, que precisou entrar nas composições. Com isso, além de pensar nas combinações de roupas e acessórios, a máscara pode virar um ponto de cor, ou estampa, e se relacionar com a roupa. “Ultimamente também sinto vontade de mudar a maquiagem. Sempre fui do batonzão. Colocava corretivo, rímel, batom vermelho e pronto. Agora a boca fica tampada. Fiquei com vontade de comprar lápis para olhos e delineador colorido. Ainda não comprei, mas está na lista. É o momento de transmitir as mensagens apenas com os olhos.”