Além dos cuidados relacionados aos órgãos afetados pela Covid-19 ou por outras doenças que levam à intubação, pacientes hospitalizados em Unidades de Tratamento Intensivo (UTIs) também necessitam de procedimentos de higiene bucal. Conforme estudo do International Dental Journal, de 2018, o cuidado odontológico em pacientes intubados em UTIs pode prevenir 56% das infecções respiratórias. Por isso, durante a pandemia, dentistas que atuam em hospitais de Juiz de Fora intensificaram os cuidados com os pacientes vítimas da Covid-19, com o objetivo de evitar agravamentos e o surgimento de infecções pulmonares e casos de pneumonia.
Em uma rotina diária de avaliação, dentistas e enfermeiros ficam encarregados de realizar os procedimentos na área chamada de odontologia hospitalar. Estes profissionais têm papel fundamental para prevenir infecções que podem prolongar a permanência do paciente no hospital, por meio da higiene bucal.
O cirurgião-dentista Bruno Franco, responsável pela área de odontologia intensivista no Hospital Albert Sabin, explica que, em pacientes intubados na UTI, a realização da higiene bucal é fundamental para evitar casos de pneumonia associada à ventilação mecânica, conhecida como PAV. “Na intubação há uma válvula que não deixa reter líquido, mas caso não tenha um cuidado muito cauteloso, esse líquido, que tem muitas bactérias, pode ir direto para o pulmão, fazendo com que o paciente contraia uma pneumonia dentro da UTI”.
Entretanto, de acordo com ele, a presença de um cirurgião-dentista dentro das UTIs reduz o risco de PAV em 70%. “As PAVs levam o paciente a uma infecção generalizada. Então, o principal objetivo do dentista dentro da UTI é reduzir esse risco e melhorar a qualidade de vida do paciente”.
Bruno afirma que os cuidados odontológicos da UTI procuram identificar e reduzir todos os possíveis focos infecciosos que possam surgir. “Existem pacientes que têm um dente com problema, e isso se torna um foco infeccioso, então nós temos que tratar isso ali mesmo dentro da UTI. Também reduzimos traumas, como em pacientes que estão com traqueostomia e costumam morder a língua, ou a gengiva, por exemplo”.
O procedimento
A cirurgiã-dentista e coordenadora do curso de Odontologia da Estácio de Belo Horizonte, Mariana Pereira, explica que o procedimento da higiene bucal é realizado através de ações mecânicas e farmacológicas, que podem ser associadas. As ações mecânicas consistem na escovação dentárias e na limpeza dos tecidos moles adjacentes. Já as farmacológicas são realizadas por meio da descontaminação das estruturas bucais com o uso de antissépticos.
“Em geral, a higiene é feita duas vezes por dia, com uma escova especial, que faz a sucção de secreções, e um gel à base de digluconato de clorexidina a 0,12%. Para a limpeza de outras áreas, como a mucosa, língua e lábios, se utiliza um palito de madeira envolvido em gaze, chamado swab. A gaze é umedecida em clorexidina 0,12%. Faz-se também uma aplicação de vitamina E nos lábios e na mucosa para uma melhor hidratação, tendo em vista a redução do fluxo salivar”, explica a cirurgiã-dentista.
Pacientes com Covid-19 são mais suscetíveis a infecções
A Covid-19 tem se mostrado uma doença potencialmente nociva aos pulmões dos pacientes em casos graves. Desta forma, conforme o cirurgião-dentista, o cuidado com a higiene bucal é ainda mais essencial. “O paciente entra na UTI contaminado com um vírus que tem o potencial de danificar o pulmão de 50% a 70%, ou até mais. Então, se ele não tiver uma higiene bucal perfeita, é um risco muito grande se ele contrair uma pneumonia com um pulmão já debilitado pela Covid”, explica Bruno.
No Hospital Universitário da Universidade Federal de Juiz de Fora (HU/UFJF), os cuidados de odontologia hospitalar também foram intensificados na pandemia. Na instituição, a área é coordenada por duas profissionais dentistas, habilitadas pelo Conselho Federal de Odontologia. Aline Brasil é uma delas. De acordo com ela, a prevenção, o diagnóstico e o tratamento de alterações bucais estão inseridos na rotina do setor, e são essenciais em tempos de pandemia.
“Os pacientes internados com Covid-19 normalmente apresentam muitas lesões na boca. Diversos estudos estão sendo publicados sobre como esses pacientes estão mais suscetíveis a infecções oportunistas, por fungos ou outros vírus, por exemplo. Isso acontece porque são pacientes que muitas vezes fazem uso de corticoides como terapêutica, e esses medicamentos deprimem o sistema imunológico”.
Além disso, no caso de pacientes que ficam pronados, ou seja, são colocados de barriga para baixo com intuito de melhorar a oxigenação, o cuidado deve ser ainda maior, por conta da possibilidade da ocorrência de lesões por pressão. “Devido à prona podem aparecer lesões tanto na cavidade bucal, quanto na face, de uma forma geral”, explica Aline.
Profissionais também intensificaram prevenção
A Covid-19 é transmitida, principalmente, por meio de gotículas de saliva que se disseminam em espirros, acessos de tosse e contato próximo com pessoas contaminadas. Por isso, deste o começo da pandemia, entendeu-se que os profissionais da saúde que atuam nos cuidados com os pacientes, principalmente nas UTIs, estavam altamente expostos à infecção pela doença. Por estarem, mais especificamente, em contato direto com a saliva dessas pessoas, que possui uma alta carga viral do coronavírus, os dentistas também precisam lidar com os perigos da infecção.
A coordenadora de odontologia do HU, Aline Brasil, afirma que as questões de biossegurança são essenciais para manter a saúde tanto dos pacientes da unidade, quanto dos profissionais que atuam com eles. “É primordial a lavagem das mãos, utilização dos Equipamentos de Proteção Individual (EPI) adequados, luvas, protetor facial, máscara. Usamos também um capote descartável entre um paciente e outro, e a cada paciente, nós trocamos todos os equipamentos”.
Importância da área
Apesar dos riscos aos quais os profissionais estão expostos, Aline considera que a pandemia elucidou a importância dos profissionais de odontologia dentro das UTIs, algo que ainda não é de conhecimento da população. Segundo ela, é mais do que justo que o paciente receba os cuidados de um profissional especializado no tratamento de alterações bucais.
“Isso só contribui para um melhor atendimento, para que esse paciente possa ter alta do hospital mais rápido e não desenvolva outro tipo de infecção além do motivo que o levou a ficar internado. Estamos lá para contribuir para que esse paciente tenha alta mais rápido, para que ele libere o leito mais rápido e diminua o risco dele vir a óbito. Outro ponto importante é a diminuição de gastos para o hospital ao evitar infecções. No caso do HU, que é um serviço público, é essa também nossa função, diminuir o gasto público”.
Ausência de legislação que garanta a odontologia hospitalar
Apesar de a pandemia já ter completado mais de um ano no Brasil, ainda são poucos os profissionais atuando na área de odontologia hospitalar. Segundo o Conselho Federal de Odontologia, há 2.120 dentistas hospitalares em todo o país. Além disso, não existe uma lei federal que obrigue hospitais públicos a contratarem dentistas, embora muitos tenham a figura do cirurgião buco maxilo, que, fora do contexto de pandemia, costuma ser acionado em casos de traumas. Desta forma, o trabalho de higiene bucal nas UTIs, em geral, é realizado por enfermeiros e técnicos de enfermagem.
Atualmente, a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) 7/2010, da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), regulamenta a presença do dentista nos hospitais e dispõe sobre os requisitos mínimos para funcionamento das UTIs em todo o território nacional. Conforme Aline Brasil, a resolução diz que os hospitais têm que garantir a assistência odontológica para os pacientes, mas ela não é suficiente. “Apesar de existirem muitas leis estaduais e municipais no Brasil que obrigam os hospitais a terem dentistas na equipe da UTI, nem no estado de Minas Gerais ou em Juiz de Fora há essa obrigatoriedade legal”.
No caso dos hospitais onde os procedimentos são feitos por enfermeiros e técnicos de enfermagem, são realizados apenas cuidados de higiene oral. “A enfermagem é responsável por toda essa higiene corporal do paciente, incluindo a bucal. Porém, o dentista é o único profissional habilitado para realizar o diagnóstico de alterações bucais. Por mais que a enfermagem seja treinada para fazer uma higiene bucal, essa parte de diagnóstico e tratamento é competência do dentista, exclusivamente”.