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Intolerância ao glúten: maior parte das pessoas com a doença desconhece o diagnóstico

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Apenas uma a cada oito pessoas com doença celíaca possui o diagnóstico, conforme mostra o levantamento da Federação Nacional das Associações de Celíacos do Brasil (Fenacelbra). O dado revela, portanto, a subnotificação de casos no país, fator que também implica na falta de conhecimento sobre a disfunção que, segundo o órgão, atinge cerca de dois milhões de brasileiros. Tal subnotificação dificulta, inclusive, o levantamento do número de celíacos em Juiz de Fora. Questionada pela Tribuna, a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) informou que não é possível fazer o levantamento na cidade e região, em razão de intolerância do glúten não se classificar como uma doença de notificação compulsória.

Caracterizada pela intolerância permanente ao glúten, a doença celíaca faz com que as pessoas com a condição tenham restrição a alimentos que contenham a substância. Para além disso, é sempre necessário que seja certificado que não ocorra contaminação cruzada, isto é, quando nas etapas de produção dos alimentos o produto tenha contato indireto com a proteína, o que também seria muito perigoso, conforme alerta Áureo Delgado, gastroenterologista da Santa Casa de Misericórdia de Juiz de Fora. Já a alergia a substância se caracteriza pela sensibilidade à proteína, menos grave e, na maioria das vezes, sem o risco de complicações quando ocorre contaminação cruzada.

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Conforme explica o médico, pessoas com a intolerância desenvolvem uma inflamação crônica da mucosa do intestino delgado. O contato com o glúten, portanto, pode estimular a produção de anticorpos contra a mucosa intestinal, comprometendo a absorção de nutrientes pelo órgão, o que pode causar outras doenças como anemia, déficit de crescimento em crianças, desnutrição, osteopenia, infertilidade, abortos e outras complicações tardias relativas ao câncer do sistema digestivo.

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Do diagnóstico à adaptação

Entre os sintomas e o diagnóstico da doença existe um grande obstáculo marcado pela falta de informação. Entretanto, a observação de algumas manifestações do corpo podem auxiliar no processo de descoberta da doença, como diarreia crônica, dor abdominal, excesso de gases e prisão de ventre.

O médico Áureo Delgado aponta que há ainda pacientes com sintomas gerais inespecíficos como cefaleia, anemia, ansiedade/depressão, dermatite, fadiga e queda de cabelo. Além da ocorrência da doença de maneira silenciosa. Nesse último caso, ela acomete aqueles que possuem parentesco de primeiro grau com pessoas celíacas e que já devem realizar exames para avaliar a possibilidade da doença. Por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) é garantido acesso gratuito aos exames para diagnóstico de doença celíaca. Como testes de sangue e endoscopia digestiva com biópsia do intestino delgado.

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Kethleen Formigon, 24, foi diagnosticada ainda criança, no Hospital Universitário de Juiz de Fora. Ela conta que durante a introdução alimentar, nos seus primeiros meses de vida, começou a apresentar alguns sintomas, que só foram diagnosticados mais tarde, quando tinha aproximadamente dois anos de idade. Com o passar do tempo e convivendo com a condição, ela decidiu promover conscientização sobre a doença para ajudar outras pessoas. Inclusive, fundou o movimento “Gluten free JF”, um grupo que possui cerca de quarenta pessoas que compartilham dicas, experiências, viagens, comidas e auxílio sobre a doença celíaca.

“Eu acho surreal poder ajudar e mudar, nem que seja um pouquinho, a vida das pessoas através da minha voz e das minhas ações”, afirma Kethleen sobre o trabalho que faz. Em 2020 a Tribuna conversou com ela e de lá pra cá ela desenvolveu novos projetos. “Eu diria que hoje eu sempre busco conscientizar os estabelecimentos de Juiz de Fora em relação a atenderem celíacos. Criei um podcast com duas temporadas e hoje o “Não Contém Glúten” é meu segundo trabalho, em que faço parceria com diversas marcas.

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Embora quadros como o de Kethleen possam afetar pessoas de todas as idades, a maior parte dos casos acomete pessoas ainda na infância, assim como o dela, alerta o Ministério da Saúde. De acordo com a pasta federal, estudos revelam também que a incidência da doença se dá majoritariamente em mulheres – a proporção é de duas mulheres para cada homem.

Para a jovem, o diagnóstico precoce facilitou a adaptação. “Se eu tivesse descoberto a doença celíaca já adulta, seria mais difícil assim como é para a maioria das pessoas. Você sabe o que é comer um fast food, comer em qualquer lugar, você tem sua comida favorita e aí precisa reinventar ou deixar de comer”, destaca sobre a importância do diagnóstico.

Kathleen Formigon (ao centro) durante encontro para debate sobre a intolerância ao glúten (Foto: Arquivo pessoal)

Mercado de produtos sem glúten ainda é restrito na cidade

A realidade não foi a mesma para Elenice Martins Simas, embora desde criança apresentasse os sintomas, somente em 2018, aos 34 anos, ela foi diagnosticada com doença celíaca. Até então alguns sinais como barriga inchada, queda de cabelo e anemia a acompanhavam pela maior parte da sua vida

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Após ir em uma nutróloga e realizar exames, a razão para os sintomas foi encontrada. Entretanto, junto com o diagnóstico veio também os receios quanto a intolerância ao glúten – proteína presente em grande parte das comidas e bebidas das quais gostava. O mercado de produtos sem glúten em Juiz de Fora ainda é limitado, avalia Elenice.

Até mesmo lugares que oferecem produtos com e sem glúten despertam insegurança sua ela. Isto porque, conforme lembra, os alimentos precisam ser higienizados, produzidos e armazenados em locais sem qualquer contato com glúten. Outra questão apresentada por ela é a necessidade de conferir os rótulos, por mais que os produtos indiquem, em primeiro momento, que não há a presença da proteína.

O país, inclusive, possui a Lei 10.674, de 2003, que dispõe sobre os rótulos. “Como medida preventiva e de controle da doença celíaca”, diz o texto. Nele fica esclarecido que é obrigatório que produtos alimentícios comercializados informem sobre a presença de glúten de forma nítida e com fácil leitura.

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“Eu já vi produtos que assinalaram não ter a presença de glúten, mas quando olhei os ingredientes encontrei que possuía trigo”, comenta Elenice, sobre a embalagem que poderia ser alvo de advertência e ainda apresenta risco a quem compra. A escassez de lojas e padarias adequadas também evidencia outro desafio na vida de quem é celíaco, os altos preços pelas comidas sem glúten no mercado. A preferência de Elenice é cozinhar em casa. O acolhimento da família, a criação de novas receitas, a descoberta da cerveja sem glúten e se alimentar antes de ir para algum evento foram as maneiras encontradas para a sua adaptação.

Autocuidado como uma oportunidade de negócio

Celíaca, a empreendedora Maria Costa resolveu comercializar os produtos que preparava para consumo próprio e oficializou seu novo negócio, a loja ‘Estar Vivo’ (Foto: Divulgação)

Foi identificando a própria necessidade de produtos sem glúten que a empreendedora Maria Costa viu uma oportunidade de empreender. Recém diagnosticada com intolerância a determinados alimentos – o que mais tarde viria a ser descoberto como doença celíaca – Maria uniu a paixão pela culinária com o interesse por desenvolver receitas funcionais.

Em 2016, ela começou a participar de feiras e a comercializar os produtos que fazia para consumo próprio. A boa aceitação por parte dos clientes oficializou seu novo negócio, a loja “Estar Vivo”. Para garantir a qualidade de uma produção livre da contaminação cruzada, Maria Costa preparou um ambiente totalmente protegido de qualquer possível contato com o glúten. O segundo passo, elencado por ela, foi garantir uma procedência qualificada do fornecimento dos alimentos.

A fim de dar continuidade ao trabalho meticuloso, toda a fabricação, dos molhos aos lanches, é feita por sua própria empresa. “Nosso cardápio hoje conta com pão francês sem glúten, pão de sorgo, hambúrgueres vegetais, falafel, quibe e também hambúrgueres prontos para consumo, no delivery. Tudo sem glúten e vegano”, explica Maria, ao destacar que as comidas são também saudáveis. O perfil do seu negócio é o que vem atraindo clientes, de acordo com a empreendedora, ela vem notando um crescimento relacionado a procura por alimentos “free”.

O alto valor de produtos sem glúten é um obstáculo para que pessoas celíacas com diferentes tipos de renda tenham acesso a esses alimentos. A nutricionista Júlia Carneiro associa os altos preços à lei da oferta e da procura, uma vez que ainda é uma parcela pequena da sociedade que tem o diagnóstico, os valores passados ao consumidor são mais altos. Apesar disso, ela destaca o crescimento em todo o mercado desses produtos. Para ela, isso se deve ao fato do aumento da variedade dos alimentos e, também, da proposta desses negócios. “São lugares que não são mais do mesmo, que possuem um formato diferente e que realmente se preocupam com um comer consciente. Uma variedade alimentar para pacientes que não costumam ter essa liberdade é muito importante”, diz ela, ao ressaltar que pessoas celíacas também têm que ter momentos de lazer atrelados a comida, assim como as demais pessoas.

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