– Oi… Dora, é você mesma? Por onde você andou?
Demos um abraço forte um no outro. A sensação que tive era a de uma pessoa que ficara anos muda e, ao recuperar a fala, tentava a qualquer custo reaver o tempo perdido.
Estávamos afoitos, atropelando a língua e soltando fortuitas gotas de saliva, rindo sem ao menos sabermos o porquê daquele mostrar de dentes, pelo menos de maneira aparente, já que, no fundo, sabíamos que estávamos muito felizes em nos revermos. Trocarmos impressões do passado e do presente. O futuro, como dizem, a Deus pertence. No entanto, também tirávamos de nossas cartolas premonitórias certos projetos acerca de um porvir não tão longínquo. Ela demonstrava uma certeza hercúlea diante do que queria: prestaria vestibular para o curso de enfermagem. Eu ruminava dúvidas e incertezas. Conversamos de forma descontraída durante longos minutos, e, à medida que o tempo transitava com seu oblíquo e convexo pêndulo, íamos deixando as formalidades do discurso deslizarem para lugares distantes, dando lugar a uma enriquecedora profusão de intimidades. Resgatávamos aquele não tão remoto tempo de amizade. Quando pareceu que o assunto entre nós se esgotara, Dora me trouxe um convite inesperado.
– Estou doida para ver um filme que está em cartaz no Palace. Vamos comigo?
Naquele instante, um ardor queimou-me a face, percorreu-me e alimentou-se de mim. A intimidade chegaria a tanto para dizer que eu não tinha um trocado sequer para gastar? Quando mantinha esse pensamento em suspenso, ela arrematou, como que adivinhando:
– Não aceito recusa. Como convido, também pago. Da próxima vez, quando me convidar para algo, você paga. Combinado?
O modo como falou, diante da minha vergonha e timidez, me fez pensar o quanto havia sido especial naquela época e como havia deixado Dora viajar sem ao menos tentar fazer algo para evitar. Naquele instante, estava leve, esquecido de meus tormentos existenciais. Queria somente estar ali, assistir ao filme. Viver.
Viver e respirar os ares de um início de tarde cinzento. Fomos ao filme. Tratava-se de “As horas”, como logo fiquei sabendo. Difícil descrever as sensações após aquela exibição. Ao final, eu e Dora estávamos com os olhos marejados e a sala soluçava, havia uma atmosfera de inquietude muda no ar. Meu coração se comprimia sentindo uma mistura interior como se todos os presentes quiséssemos tocar algo e não conseguíssemos, talvez porque estivéssemos sonhando um sonho ruim. A atriz Nicole Kidman interpretou Virgínia Woolf, a autora inglesa que tinha algo de peculiar. Até aquele momento, não havia lido nada dela, porém a própria manifestação da atriz interpretando-a sincronizava um momento forte de identificação com a escritora: o olhar vago, visando o nada e parecendo querer dizer algo além das fronteiras da linguagem, assolando o mundo com sua perenidade. Ela refletia sobre as coisas do mundo, jogando em nossas caras lavadas de sabão e água de colônia frases aparentemente soltas: um quebra-cabeça que tínhamos que montar e remontar conforme algum vento anônimo o destruía. Virgínia refletia sobre os personagens criados; sobre uma certa Senhora Daloway dizia: “Tem que morrer para que o resto de nós tenhamos uma vida mais significativa”. Como se ela quisesse dizer que somente diante da morte pensamos sobre a vida e que não estamos preparados para vivê-la. A morte, então, torna-se necessária para não nos esquecermos da vida. E isso provoca uma dor, um açulamento, um desolamento que carregamos ao longo de nossas vivências, sabendo que sempre perderemos pessoas que estão a nossa volta. Sabendo que nós mesmos estamos perdidos.
E se não vivemos é justamente para não trazermos a lembrança da morte, nosso constante flagelo. Aí, talvez, possamos dizer, como a própria Virgínia disse: “Não se acha a paz evitando a vida”. Temos que vivê-la. Trazê-la sempre ao nosso encalço. Talvez isso tenha feito, após o filme, surgir uma manifestação na sala de exibição que nunca vi e não consegui decifrar. Era como se tentássemos agarrar o nada e esse nada nos melasse e nos vazasse pelas mãos, escorresse numa tentativa vã de segurar firme uma gelatina entre os dedos. Naquele momento, refleti sobre a vida e minha existência e minha insistência em não querer viver, achar minha paz interior, mesmo que para isso fosse gerada uma guerra exterior. Após aquele instante, decidi-me, sabendo que meus pais (e principalmente meu pai) não iriam concordar com minha opção.
Darlan Lula é professor, doutor em literatura, funcionário público e escritor, autor de “Pontos, fendas e arestas” (Funalfa Edições, 2002), “Viera tarde” (Nakin e Funalfa Edições, 2005), “Desvios” (7 Letras e Funalfa Edições, 2008), “Casa de madeira” (Funalfa Edições, 2015) e “Todos os dias” (Funalfa Edições, 2016). Natural de Itacarambi (MG), vive e trabalha em Juiz de Fora.