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Livro critica criminalização seletiva de adolescentes no Brasil

ellen capa
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“Se pedirmos à boa parte da população brasileira para fechar os olhos e imaginar um adolescente que acreditam ser perigoso, certamente os relatos serão de jovens com esse estereótipo: negros e pobres.” Por meio desse exemplo simples, mas revelador, a professora Ellen Rodrigues, em entrevista à Tribuna, explica como os processos de criminalização se manifestam a partir de estereótipos, que representam indivíduos de forma negativa em vista dos interesses dominantes que regem a sociedade.

No livro “A Justiça Juvenil no Brasil e a responsabilidade penal do adolescente: rupturas, permanências e possibilidades” (Editora Revan), que será lançado nesta quarta-feira (14), às 19h, no auditório da Faculdade de Direito da UFJF, a autora propõe a crítica da criminalização seletiva dos adolescentes no Brasil. “Como parte do aparato do poder punitivo, a Justiça Juvenil foi incorporada ao projeto de criminalização característico do Estado brasileiro no final do século XIX, que selecionou determinados grupos de pessoas a serem submetidos à sua coação e ao seu controle. Tal seleção, que é percebida pela Criminologia como um “processo de criminalização”, não é levada a cabo de forma aleatória”, ressalta Ellen.

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Com 368 páginas, a obra denuncia ainda que, passados mais de 25 anos da edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é possível observar que a realidade infantojuvenil brasileira está bem distante do modelo proposto pela lei. “Ao contrário das propostas igualitárias fixadas pelo ECA, muitas crianças e adolescentes brasileiros ainda não têm acesso pleno à educação, não encontram oportunidades dignas de trabalho, não são contempladas por programas de cultura, entretenimento e lazer e têm suas trajetórias marcadas pela violência. Não obstante, é justamente em relação a esse grupo que são direcionados acalorados debates acerca do aumento da repressão e punição na atualidade.”

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Ellen Rodrigues é advogada e professora Adjunta de Direito Penal e Criminologia da Faculdade de Direito da UFJF; doutora em Direito pela UERJ, com estágio doutoral na Universidade de Greifswald (Alemanha). Como ela explica, o livro foi gestado ao longo de dez anos. Sendo resultado do seu mestrado em Ciências Sociais na UFJF, quando Ellen pesquisou sobre a realidade socioeducativa de Juiz de Fora e do Brasil e do doutorado na UERJ, sob orientação dos professores Vera Malaguti e Nilo Batista, quando sua pesquisa buscou analisar a questão da justiça juvenil e do processo de criminalização da juventude, das respostas penais do estado em face dos jovens, a partir de uma perspectiva do direito penal e da criminologia. Suas análises se completaram com estudos na Universidade de Greifswald, onde foi orientada pelo professor Frieder Dünkel, que é considerado uma referência na Europa sobre a Justiça Juvenil, principalmente das propostas inovadoras que tiveram bons resultados nos países europeus e em outros países do mundo.

Livro “A justiça juvenil no Brasil e a responsabilidade penal do adolescente: rupturas, permanências e possibilidades” será lançado na próxima quarta-feira em JF. Publicação critica a criminalização seletiva dos adolescentes brasileiros e mostra que, ao contrário das propostas igualitárias do ECA, muitos ainda não têm acesso pleno à educação, não encontram oportunidades dignas de trabalho e têm suas trajetórias marcadas pela violência (Foto: Marcelo Ribeiro)

– Tribuna – De outras vezes que conversamos, você apontou sobre a necessidade de superação das tendências repressivas no que diz respeito à questão de enfrentamento à violência. Como a obra aborda esse tema?

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– Ellen Rodrigues – Para superação das tendências repressivas, impõe-se ao Estado brasileiro a criação de programas que promovam positivamente a personalidade juvenil. As principais reações às tendências repressivas no âmbito infantojuvenil apoiam-se em sólidas pesquisas criminológicas realizadas em diferentes países, as quais vêm demonstrando que os programas que investem em escolarização, capacitação profissional, incentivos ao esporte, lazer, música, fortalecimento dos vínculos comunitários e Justiça Restaurativa, além de diminuírem os efeitos estigmatizantes, apresentam resultados amplamente mais eficientes quanto à prevenção da delinquência e a redução da reincidência. Ao longo do livro, procurei destacar os avanços alcançados com essas propostas em relação à redução da violência, embora reconheça que no Brasil prevalece a falsa crença de que “punir mais é punir melhor” e que “bandido bom é bandido morto”, crença essa que em nada contribui para a resolução do problema. Como sempre digo: “- Se quisermos outros resultados, temos que fazer outras escolhas”.

– O título do livro aponta para a questão de rupturas, permanências e possibilidades no campo da Justiça Juvenil no Brasil? O que você assinala como rupturas?

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– A obra mostra que, desde as primeiras regulamentações sobre Justiça Juvenil brasileira como um ramo especializado do Direito, ocorridas no século XIX, as reprimendas destinadas às crianças e aos adolescentes pertencentes às classes privilegiadas ficavam somente a cargo de suas famílias. Já em face das crianças e adolescentes pobres, foram desenvolvidos complexos mecanismos de controle, vigilância e apartação social, que caracterizam o chamado “modelo tutelar” ou de “situação irregular”, segundo o qual o contingente infantojuvenil pobre, tido como perigoso, deveria ser recolhido às instituições não apenas em situações de conflito com a lei penal, mas também em razão de sua irregularidade social e seu ambiente familiar desestruturado. O livro destaca que, apesar da permanência histórica desse modelo no Brasil, suas premissas foram superadas em muitos países, o que teve reflexos também entre nós, ainda que de forma tardia e incompleta. Daí tratar tais mudanças como rupturas, sendo que algumas delas foram extremamente positivas, como as mudanças ocorridas ao final dos anos 1970, quando os chamados “modelo de bem-estar” e “modelo educativo” promoveram a superação do “modelo tutelar” e incentivaram novas políticas de controle social que privilegiaram propostas alternativas à segregação institucional e aos procedimentos puramente repressivos. Tal modelo foi adotado por muitos países ao longo dos anos 1980 e 1990 e determinou a edição de importantes reformas legislativas sobre o tema. O Brasil, dada a forte permanência dos discursos e práticas característicos do “modelo tutelar”, a realidade social, marcada por elevados índices de desigualdade social, pela cultura punitiva e por sucessivas ditaduras, não refletia o quadro político-ideológico que marcou a emergência do “modelo de bem-estar”, de modo que, entre nós, tais propostas não contaram com maior expressão e, somente em 1990, as mudanças trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente começaram a representar rupturas positivas entre nós. A partir da mirada internacional, à luz do Direito comparado, a obra chama a atenção, portanto, para a grande permanência do “modelo tutelar” no Brasil e destaca as rupturas que este modelo sofreu ao longo da história brasileira.

– E o que é bom que permaneça?

– Diante das propostas regressivas que ocupam as pautas parlamentares e midiáticas sobre a Justiça Juvenil no Brasil, o livro destaca a importância de se defender as conquistas já alcançadas no âmbito infantojuvenil, tais como o desvelamento da seletividade dos processos de criminalização da infância e juventude; o reconhecimento do “modelo tutelar” e paradigma da “situação irregular” como reprodutores de violência; o reconhecimento da ineficácia dos métodos puramente repressivos para a prevenção da delinquência juvenil; o reconhecimento dos efeitos deletérios do cárcere para o desenvolvimento humano e social de crianças e adolescentes, entre outras. Essas conquistas, que se refletem no ECA e na Constituição de 1988, representam fortes instrumentos de resistência diante dos desafios da atualidade e, por isso, devem ser amplamente destacadas.

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– O que seriam essas novas possibilidades no campo da Justiça Juvenil ?

– Para garantir uma resposta estatal mais eficiente, é preciso lutar pela efetivação de mecanismos que privilegiem novos modelos de resolução de conflitos, como os programas de Justiça Restaurativa, fazendo com que se expandam para além dos círculos restaurativos realizados no ambiente forense e sejam incorporados ao âmago dos sistemas municipais de execução das medidas socioeducativas de liberdade assistida e prestação de serviço à comunidade e também às práticas escolares. Além disso, são necessárias políticas públicas de combate à desigualdade social e à violência praticada contra as crianças e adolescentes. Assim, ao contrário de empreendimentos punitivos, que, historicamente, vêm demonstrando seu insucesso quanto à reintegração social e à prevenção da delinquência juvenil, uma opção promissora seria a criação de programas de apoio familiar que atendessem às desproteções infantojuvenis, como exploração do trabalho infantil, evasões escolares, prostituição, drogadição, entre outras. Esses e outros encaminhamentos, bem como as pesquisas que respaldam novas possibilidades, o leitor poderá acessar ao longo da obra.

– A professora de criminologia da UERJ, Vera Malaguti, que assina o prefácio da obra diz que o livro “revigora o debate com um profundo lastro histórico, criminológico e jurídico na produção de argumentos para nossas lutas presentes e futuras no sentido de libertar nossos meninos das garras de um poder punitivo em radical expansão”. Quais lutas ainda estamos lutando e quais podemos vislumbrar para o futuro, caso não haja mudanças?

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– De acordo com estudos realizados pelo Instituto de Pesquisa e Estatística Aplicada (Ipea), no ano de 2013, mais de um milhão de jovens brasileiros não estudavam e nem trabalhavam; 584,2 mil só trabalhavam e não estudavam; e, aproximadamente, 1,8 milhão conciliavam as atividades de estudo e trabalho. Entre os jovens que estavam fora da escola e só trabalhavam, a maioria era composta por indivíduos negros (61,46%) e pobres (63,68%) e, predominantemente, do sexo masculino. Esse perfil também foi identificado em relação aos jovens que trabalhavam e estudavam, que majoritariamente eram do sexo masculino (60,75%), negros (59,8%) e pobres (63,03%). Dentre os jovens de 15 a 17 anos que trabalhavam, mais de 60% sequer chegavam a auferir um salário mínimo por mês. A imensa maioria exercia atividade laboral na informalidade, sem proteção social. Em relação ao envolvimento de adolescentes e jovens negros e pobres com a violência, verifica-se que essas pessoas, ao contrário do que é comumente veiculado pelos meios de comunicação de massa, não aparecem nas estatísticas oficiais como os principais autores de crimes violentos, mas sim como o grupo mais vitimado por mortes por arma de fogo no país. De acordo com os registros do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM/Datasus, do Ministério da Saúde), no ano de 2012, 42.426 pessoas foram mortas por arma de fogo em todo o território nacional, desse total 24.882 (aproximadamente 58%) eram jovens de 15 a 29 anos, dos quais 77% eram negros (pretos e pardos) e 93,30% do sexo masculino. A desproporção entre jovens e adultos também é verificada no sistema prisional. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, no ano de 2014, enquanto os jovens de 18 a 29 anos representam 21,5% do total da população brasileira, no sistema carcerário, a proporção era bem maior: 56% da população prisional. As principais lutas a serem travadas no Brasil em relação à juventude implicam em reverter esses números. Caso isso não ocorra, continuaremos a assistir a esse verdadeiro genocídio dos jovens negros e pobres e ao aumento da criminalização e exclusão social da juventude popular brasileira.

– Os adolescentes e jovens negros e pobres fazem parte do grupo mais vitimado por crimes violentos, mas não é isso o que é majoritariamente veiculado. O que mais aparece é a participação deles nesses crimes como autores. Isso pode ser explicado por essa criminalização seletiva?

– Em relação ao envolvimento desses adolescentes e jovens negros e pobres com a violência, verifica-se que essas pessoas, ao contrário do que é comumente veiculado pelos meios de comunicação, não aparecem nas estatísticas oficiais como os principais autores de crimes violentos, mas sim como o grupo mais vitimado por mortes por arma de fogo no país. Como demonstrado pela Comissão da Infância e Juventude da Associação Nacional dos Defensores Públicos, na comparação entre o total de atos infracionais cometidos por adolescentes e a soma de todos os crimes verificados no Brasil, verifica-se que os adolescentes são responsáveis por apenas 4% dos crimes cometidos no país. Se comparados apenas os índices relativos aos homicídios, esse número corresponde a 0,5%.

“Ao contrário de empreendimentos punitivos, que vêm demonstrando seu insucesso quanto à reintegração social e a prevenção da delinquência juvenil, uma opção promissora seriam programas de apoio familiar, entre outras”. Ellen Rodrigues,
pesquisadora e professora da UFJF

– Qual a importância de entregar aos adolescentes e jovens o protagonismo e a participação social?

– Ao longo do livro, abordo a questão do protagonismo juvenil como forma de potência, ou seja, destaco a capacidade inventiva da juventude de fazer com que as sociedades respirem e evoluam. No entanto, destaco que, no Brasil, tal potência também é seletivamente controlada. Destaco, por exemplo, o ano de 2013, que foi marcado por efervescências juvenis de diferentes matizes. A Campanha da Fraternidade da CNBB, sob a égide da Jornada Mundial da Juventude, realizada no Brasil no mês de julho daquele ano, renovou os discursos de proteção insculpidos nas políticas governamentais, apontando o protagonismo juvenil como alternativa de superação e desempenho na vida e no mercado. O que tais plataformas não contemplaram foi o debate crítico sobre os dilemas que atravessam o cotidiano da juventude popular brasileira e que reafirmam a sua impossibilidade de protagonizar os papéis que se lhe são designados pelos discursos politicamente corretos. Assim, para que os adolescentes e jovens pobres, que representam a maior parte do contingente infantojuvenil brasileiro, possam exercer seu protagonismo é preciso que o Estado antes lhes garanta condições de acesso à saúde, escola, trabalho e outros fatores que são determinantes para que esses meninos e meninas possam pensar em estratégias que não as de sobrevivência. Os programas de participação e fortalecimento dos vínculos comunitários são promissoras oportunidades para engajamento e protagonismo dos jovens em suas cidades, mas para que funcionem é necessária a crianças de políticas públicas e parcerias institucionais voltadas a essa finalidade.

 

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