O Conselho Municipal Para Promoção da Igualdade Racial (Compir) apura se houve prática de crimes de racismo e injúria racial em caso que envolve a expulsão de dois alunos negros, menores, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais – Campus Juiz de Fora (IF Sudeste MG), em agosto deste ano. O motivo da expulsão teria sido a participação de ambos em brigas isoladas com outros alunos em episódios que envolvem estudantes do primeiro e segundo anos do curso técnico de eletromecânica integrado ao ensino médio.
A denúncia feita ao presidente do Compir, Paulo Azarias, foi apresentada pela mãe de um dos expulsos, J.M., inconformada não apenas com o tratamento diferenciado que, segundo ela, foi dispensado a seu filho durante condução do processo administrativo instaurado pelo IF Sudeste, em abril deste ano, como também na aplicação da punição aos envolvidos. Enquanto seu filho, negro, foi obrigado a deixar a instituição, o outro aluno, branco, com quem ele trocou socos nas dependências da escola, recebeu suspensão de cinco dias. O episódio foi gravado por uma câmera de segurança.
De acordo com J.M, as imagens, de março deste ano, mostram claramente seu filho sendo perseguido por três colegas que, em função de terem repetido o primeiro ano do curso em 2022, não deveriam estar no mesmo ambiente de estudo que o menor expulso. Ele foi o único do grupo envolvido nos conflitos que conseguiu aprovação.
“Na minha sala eram 30 alunos e 15 passaram. Quinze ficaram”, conta o estudante, ao revelar, ainda, que as agressões verbais entre ele e os colegas de turma começaram no ano passado, mas que ficaram mais violentas a partir deste ano. “A escola me pôs como culpado por uma agressão que foi de ambos os lados, mas ali no processo falaram que foi só minha”, desabafa o adolescente. Segundo ele, houve também a alegação de que teria levado para a escola um “soco inglês”, mas ninguém conseguiu provar o fato, embora essa informação tivesse contribuído para sua expulsão.
Reclamações teriam sido ignoradas
Desde que as ofensas começaram, em 2022, tanto J.M. quanto o filho afirmam que procuraram repetidas vezes pelo apoio do IF Sudeste, seja por meio do serviço de pedagogia, psicologia e até mesmo da direção. “Meu filho estava sofrendo bullying comprovado. Eu tenho vários e vários áudios, ligações, mensagens, nas quais ele estava sendo ameaçado. Ele já chegou em casa machucado, porque ‘tamparam’ ele em cima das cadeiras. Vivia sendo perseguido por esse grupo que não praticava só com ele, mas com outros alunos da escola”, conta a mãe.
“Gostavam de lugares cheios, igual ao refeitório, à quadra de esportes. Era ali que começavam ‘a brincadeira’, dizem eles, ‘brincadeira inocente’, sem nenhuma maldade. Eram ‘brincadeiras’ que ameaçavam, humilhavam e colocavam ele numa posição menor do que eles. Debochando do cabelo, da cor, da sexualidade e meu menino não gostava. E começou a fugir. Estava ali, tentando levar na esportiva, mas não estava funcionando. As brincadeiras foram ficando mais agressivas, mais pejorativas. Quando ele começou a se afastar, eles começaram a vir atrás do meu filho.”
No relatório final do processo administrativo, a Comissão de Apuração de Infração Disciplinar Discente, criada para analisar os casos envolvendo o conflito entre os estudantes, considerou que o filho de J.M. incorreu em dois atos de indisciplina gravíssimos: agressão física ao colega e práticas assediosas de bullying e cyberbullying, infringido o Regulamento de Conduta Discente do IF Sudeste MG.
Sem Pism
“Se expulsaram meu menino por ter reagido a uma situação que eles já sabiam que estava acontecendo de bulliyng e agressão, porque não expulsaram o outro rapaz? Por que essa medida foi aplicada só para meu filho, sendo que, contra o outro rapaz, tinha várias reclamações na escola?” – indaga, J.M., entre lágrimas. “Em vez de me sentir acolhida, me senti como se estivessem jogando a gente no lixo. Junto com isso foram os sonhos dele”, acrescenta a mãe, se referindo à continuidade no Programa de Ingresso Seletivo Misto (Pism) da Universidade Federal de Juiz de Fora, neste ano, e à chance de um estágio remunerado. Além disso, como o processo de avaliação no Instituto Federal é trimestral, ela alega que seu filho está enfrentando dificuldades com a mudança para uma escola estadual, desde outubro, cujo desempenho anual é medido em bimestres.
Justiça nega recursos
Durante o processo administrativo, em julho, J.M. conta que recebeu comunicado para que ela e o filho fossem até o Instituto Federal, a fim de apresentarem sua defesa. Quando chegaram, ficaram surpresos, porque os outros alunos e seus pais estavam acompanhados de advogados. “Eu estava apenas com Deus.” Segundo ela, foi indagada porque não havia recorrido à Defensoria Pública da União, para ter acesso ao serviço gratuito. Foi o que ela diz ter feito na sequência, mas como o IF Sudeste não teria aceitado o pedido de prorrogação de prazo feito pelo órgão para a apresentação da defesa, nada pôde ser feito. O mesmo se deu com a Procuradoria da União.
“Ambas se certificaram do processo administrativo, mas nenhuma das duas instituições apresentou uma peça”, observa a advogada Suelen Cassab, que foi contratada por J.M. para buscar uma saída legal que garantisse o retorno do filho ao Instituto, após a decisão da expulsão. Em ação de tutela de urgência, protocolada em 4 de setembro, na 4ª Vara da Justiça Federal, a advogada atentou para o risco grave de dano de difícil reparação, já que o aluno corria o risco de perder, além do ano escolar, o curso profissionalizante para o qual foi aprovado em processo seletivo.
Na decisão do juiz federal que julgou o pedido de tutela de urgência, “o autor pretendia retornar às suas atividades escolares, utilizando de argumentos que não encontram amparo normativo, mormente porque busca do Poder Judiciário uma ingerência na administração do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais, o que encontra óbice legal e principiológico”, escreveu Renato Grizotti Júnior.
Ele também considerou que “ademais, em um juízo preliminar e de cognição sumária, não verifico qualquer ilegalidade ou mesmo irregularidade que mereça a intervenção do Estado-Juiz para rever as penalidades impostas pelo IF SUDESTE MG, campus Juiz de Fora, não tendo o autor logrado êxito em comprovar a ocorrência de qualquer irregularidade”.
Diante da negativa, Suelen ingressou com um agravo de instrumento, alegando que a tutela não tinha a intenção de questionar a autonomia do IF Sudeste, pautando-se em diversos princípios constitucionais, como o princípio da permanência escolar, o princípio ao contraditório e a ampla defesa. “Faltam apenas três meses para o final do ano letivo, se trata de uma escola técnica e o um ano e meio de curso técnico que o Agravante cursou estará perdido, comprometendo não só sua vida escolar como a sua vida profissional”, alegou no documento. O recurso, porém, também foi julgado improcedente pelo desembargador Miguel Ângelo.
“Vou dar andamento no processo para tentar uma indenização por dano moral”, explica Suelen, em referência a um processo estipulado em R$ 100 mil. “Eu gostaria muito que alguém contasse a história de um menino que sofreu bulliyng, sofreu violência, sofreu injúria racial. Ele me contou, e até arrepiei, que um dos motivos porque parou de andar com esses meninos foi porque ficavam assim com ele: ‘ah, seu material é ruim, porque você é pobre’. Ele era o único desse grupinho que vinha de escola pública. Debochavam dele.”
Conselho aciona parlamentares no Congresso Nacional
Para o presidente do Compir, Paulo Azarias, baseado nos relatos do aluno e de sua família, há evidências efetivas de prática de crime de racismo, na medida em que apenas os jovens negros foram expulsos do Instituto Federal, enquanto o aluno branco recebeu suspensão de cinco dias. O Conselho enviou pedido formal à direção do IF Sudeste, solicitando reunião para tratar do assunto. Quinze das depois, recebeu resposta negativa.
A partir daí, foram iniciadas diversas ações, como o encaminhamento de denúncia para os ministérios da Educação, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos. Em Juiz de Fora, o mesmo foi feito para as comissões de Igualdade Racial, de Educação e de Direitos Humanos da Câmara Municipal. “Acionamos a deputada federal Ana Pimentel (PT) e a líder da bancada negra no Congresso Nacional, a Dandara (PT)”, conta Azarias.
Em novembro, a convite do Coletivo de Alunos Negros do IF Sudeste, o presidente do Compir esteve no instituto para uma palestra sobre racismo. “Fiquei assustado com o grau de autoritarismo e de ameaça que os alunos sofrem. Tivemos relatos assustadores de práticas discriminatórias por parte de alguns professores e com anuência da direção. É uma situação que estamos solicitando da bancada negra do Congresso a vinda de uma comissão até o IF Sudeste, para averiguar os possíveis crimes cometidos. É uma situação muito, mas muito difícil para os alunos”, diz.
Em entrevista à reportagem, integrantes do coletivo questionaram o fato de o processo administrativo contra os alunos ter sido concluído durante o período das férias, em julho. Eles acreditam que foi uma decisão premeditada, porque sabiam que haveria resistência com manifestação interna, caso ocorresse em período letivo. O coletivo, inclusive, foi criado, no ano passado, depois de um outro episódio envolvendo um dos alunos negros expulsos. Ele teria sido vítima de fala discriminatória por parte de um professor em sala de aula. O caso repercutiu e deixou evidente a necessidade de um espaço de acolhimento e de resistência, afirmam integrantes do grupo que não se sentem apoiados em suas iniciativas, temendo, inclusive, represálias.
Instituto prefere se manifestar apenas no processo
Procurada pela reportagem, a direção do IF Sudeste encaminhou resposta por e-mail, afirmando que os Institutos Federais são instituições detentoras de autonomia didático-pedagógica e disciplinar, e que os trabalhos da comissão disciplinar discente, instaurada para apuração de possível ato infracional cometido pelos alunos à época do Campus de Juiz de Fora, estão respaldados no Regulamento de Conduta Discente do IF Sudeste MG. “Em virtude das disposições legais, os processos nos quais os estudantes foram arrolados tramitaram de forma restrita nas esferas administrativas do IF Sudeste MG, evidentemente, sempre com a garantia de ampla defesa e contraditório”, diz a nota.
Assim, considerando fatores, como a natureza dos processos, o fato de envolverem outros estudantes, a necessidade de tratamento isonômico em relação aos demais estudantes arrolados e que o parecer de órgãos competentes assegura que os processos foram devidamente conduzidos pela instituição, “a Direção-geral do Campus Juiz de Fora, de forma prudente, pronunciar-se-á apenas no âmbito dos processos e procedimentos dos órgãos de controle (internos ou externos) e do judiciário, entendendo encontra-se impedida de manifestar-se, por quaisquer meios, à margem dos processos em curso”.