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Famílias atípicas lutam para ter acesso a direitos para pessoas com autismo

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(Foto: Arquivo pessoal)

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“Enfrentamos uma luta diária pela inclusão. As pessoas sempre nos olham como se tivéssemos crianças pirracentas e sem educação. Não sabem sequer o que é uma crise de uma criança autista em um ambiente público. Já fui xingada por deixar meu filho com autismo fazer ‘pirraça’ na rua. Já me mandaram ‘dar uns tapas’ nele. Disseram que eu não sabia educar”, conta a enfermeira Caroline Sixel Rodrigues, mãe de Vinícius, 9 anos, diagnosticado com Transtorno do Espectro Autista (TEA) nível de suporte 2. 

A neurologista pediátrica Ivy Rosa Coelho Loures explica que o TEA é um transtorno do neurodesenvolvimento, que ocasiona, normalmente, prejuízo na comunicação social, além de interesses restritos e comportamentos repetitivos. Com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), o TEA foi classificado em três níveis de suporte: no nível 3, de grande necessidade de suporte,há geralmente uma deficiência mais severa nas habilidades de comunicação, tanto verbal quanto não verbal; já o nível 2 requer suporte parcial; e o nível 1, menor demanda por suporte. 

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Aos 2 anos, Vinícius foi diagnosticado, após a percepção de uma familiar que era pedagoga, por causa do atraso na fala, organização dos objetos na casa, e gostar de rodar materiais. Caroline começou a saga de buscar ajuda médica em instituições e escolas ao mesmo tempo em que aceitava o laudo médico. Para ela, foi algo devastador e que a levou a ter depressão, principalmente por seu filho ter nascido de uma gestação gemelar de risco. “Sonhamos e idealizamos os filhos, e o fato de pensar que o meu tinha uma diversidade neurológica que não permitia previsão do quanto ele iria se desenvolver foi terrível”. 

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Caroline Sixel Rodrigues conta com o apoio do marido Lívio na criação dos filhos gêmeos Isadora e Vinícius (Foto: Arquivo pessoal)

Caroline, como muitas mães, precisou separar o luto do diagnóstico da luta diária pela inclusão. São mulheres que choram sozinhas, mas brigam pelos direitos dos filhos neurodivergentes em público. Pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA) têm direitos fundamentais garantidos por lei, que nem sempre são concedidos ou cobrados, principalmente na área da saúde, educação e assistência social. Além do preconceito na convivência social, há uma grande dificuldade de acessar os direitos já assegurados, tornando a inclusão ainda mais custosa. 

Um cabo de guerra na saúde

Leis como o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) e a Política Nacional de Proteção dos Direitos da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (Lei 12.764/2012) trazem direitos como o atendimento prioritário nos sistemas de saúde pública e privada. No entanto, em Juiz de Fora, as famílias atípicas relatam dificuldades primeiro para marcar consultas e para ter o diagnóstico. Segundo as mães, muitas vezes os médicos afirmam que as crianças não têm TEA, laudo que só é confirmado depois da peregrinação p0r vários profissionais.  

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Além disso, Caroline Sixel relatou que teve muitos obstáculos ao buscar as terapias pelo plano de saúde. Ela ainda destacou que eles só liberam atendimentos em clínicas não especializadas, com tempo ineficaz de terapia. Devido ao longo tempo de espera  no Sistema Único de Saúde (SUS) para uma consulta com neurologista, a mãe decidiu pagar um médico particular. “Aqui em Juiz de Fora, infelizmente só conseguimos um bom tratamento pagando. Famílias esperam meses por uma consulta com neurologista. Não conseguem manter as medicações, que são muito caras, e muito menos pagar as terapias necessárias”, desabafa. 

Renata Barbosa é mãe solo de Yan e luta diariamente com os planos de saúde para garantir o tratamento (Foto: Arquivo pessoal)

A família de Caroline teve uma rede de apoio para ajudar na criação de Vinicius e custear o tratamento, sem que a mãe precisasse reduzir a carga horária no trabalho, o que a faria perder um dinheiro extremamente necessário para as terapias.

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Contudo, a realidade de outras mães é diferente. Carla Verena, mãe solo de Antônio Teixeira Camargo, 5 anos, TEA nível de suporte 3, não verbal; e Renata Barbosa, que cuida sozinha do filho Yan, de 7 anos e nível 1 de suporte, dizem que a demora e a burocracia no setor da saúde deixa tudo mais difícil e exaustivo. “Parece um cabo de guerra para que a gente desista. Tem lugares que simplesmente não têm fila preferencial, eles falam que todo mundo está passando mal. Os planos pedem laudos e mais laudos para que os atendimentos sejam feitos. É uma luta desigual”, conta Renata. 

O tratamento do transtorno é multidisciplinar e envolve diversas áreas, como psicologia, fonoaudiologia, fisioterapia e terapia ocupacional. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), cerca de 80 milhões de pessoas no mundo têm o transtorno, enquanto no Brasil estima-se que esse número seja mais de 2,2 milhões. Essas pessoas podem ter dificuldades em diversas áreas, como linguagem, desenvolvimento motor e habilidades sociais, e também ter interesses restritos, o que torna a cobertura dos planos de saúde fundamental para garantir o acesso a um tratamento adequado e de qualidade. Muitas vezes, as famílias precisam entrar na Justiça para conseguir consultas e atendimento em clínicas, como foi o caso das mães entrevistadas pela Tribuna. 

Serviços em Juiz de Fora buscam a inclusão 

Carla Verena com o filho Antônio que corta os cabelos na Estação dos Barbeiros (Foto: Arquivo pessoal)

As pessoas com autismo têm direito ao lazer, diversão, conhecer lugares, estar com amigos e familiares. Com base na Lei 13.146/2015, toda pessoa com deficiência deve ter acesso à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades, mas as famílias atípicas ainda encontram preconceitos em espaços públicos, principalmente quando os filhos têm crises. 

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Além disso, a legislação garante que pessoas com TEA sejam beneficiadas com meia-entrada em estabelecimentos da área de lazer. Sessões de cinema, teatro, parques, museus, estádios, entre outros, devem ser acessíveis a todos. A lei também se estende para acompanhantes. Entretanto, são poucos os locais que oferecem abafadores de ruídos e sessões modificadas para atender esse público, com baixa luz e ruídos, além de respeitar a movimentação das pessoas com TEA. 

Desde abril, o Independência Shopping oferece abafadores, kit de descompressão e crachá de identificação para pessoas com TEA, . O objetivo é promover uma experiência melhor para as famílias atípicas, visto que muitas pessoas com autismo podem ter hipersensibilidade auditiva, um distúrbio no processamento sensorial que dificulta o cérebro a compreender, filtrar e reagir a certos estímulos. Em Juiz de Fora, o Projeto de Lei (PL) 78/2024, que prevê a acessibilidade para autistas em shoppings, a partir da obrigatoriedade de disponibilização de aparelhos abafadores de ruídos, ainda precisa ser sancionado.  

Muitas crianças com autismo também têm problemas em outras atividades do cotidiano, como um simples corte de cabelo. Carla Verena, mãe de Antônio Teixeira Camargo, 5 anos, TEA nível de suporte 3, não verbal, contou que uma vez precisou que várias pessoas o segurassem para concluir o corte, o que a fez pensar que aquilo não estava correto. Foi assim que ela conheceu o trabalho da Estação Barbeiros, um salão que apresenta uma dinâmica e metodologia mais inclusiva e especializada em pessoas neurodivergentes. Essa iniciativa começou em 2018 após a sócia-proprietária Thamires Toledo ter mais informações e treinamentos com médicos, além de experiências com o Grupo de Apoio a Pais e Profissionais de Pessoas com Autismo e Demais Deficiências (Gappa).

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Salão Estação dos Barbeiros tem espaço inclusivo para atender as necessidade particulares de cada cliente (Foto: Divulgação)

“Entendemos que cada pessoa com autismo é diferente da outra. Então podemos aprender todas as técnicas possíveis que vão auxiliar no atendimento, mas cada pessoa vai ser atendida de uma maneira diferente. Alguns vão ter hipersensibilidade na parte atrás da orelha, outras no braço, e no contato do cabelo com a pele. Outros vão apresentar o hiperfoco em determinada coisa, e usamos esses elementos para ajudar no nosso atendimento. O profissional que vai fazer o atendimento se adapta à necessidade a partir das particularidades”, explica Thamires. 

Direitos garantidos das pessoas com autismo 

Entre os direitos já garantidos para pessoas com TEA, está a Carteira de Identificação da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista (CIPTEA), um direito previsto pela Lei Romeo Mion (13.977/2020), para facilitar a identificação da pessoa com autismo e otimizar o atendimento em serviços públicos e privados. 

O transporte municipal gratuito é aberto a todas as pessoas com deficiência, que pode ser solicitado em qualquer prefeitura. Além disso, o transporte interestadual também é gratuito, o chamado Passe Livre. A Resolução nº 280, de 11 de julho de 2013 prevê que os acompanhantes de pessoas autistas têm direito a 80% de desconto em passagens aéreas e à utilização de vaga especial de estacionamento.

Desde 2022, consumidores com deficiência podem receber desconto de até 65% na conta de energia elétrica. A Tarifa Social de Energia Elétrica (TSEE) vale para famílias inscritas no Cadastro Único (CadÚnico) para programas sociais do Governo Federal, com renda até três salários mínimos, e que possuam um integrante com autismo. As pessoas com  TEA podem comprar carros com descontos e isenções fiscais. Os benefícios podem baixar em até 30% o valor pago em um veículo novo. É possível, ainda, pleitear a isenção do pagamento do IPVA para veículos de até R$ 100 mil. O percentual de desconto para o imposto varia conforme cada estado.

O Benefício de Prestação Continuada (BPC) garante que toda pessoa com autismo (de baixa renda) receba um salário mínimo mensal. Ele é destinado à subsistência das pessoas em situação de vulnerabilidade social e não configura uma aposentadoria. Pessoas com TEA também podem ter direito a uma redução da carga horária de trabalho de até 50%, sem prejuízo dos vencimentos. A previsão legal também vale para funcionários públicos federais que tenham dependentes com autismo, e abrange de qualquer esfera, inclusive militares.

Demandas

Procurada, a Secretaria de Saúde informou que, para o atendimento dessa população, a Prefeitura possui os Serviços Especializados de Avaliação Multiprofissional e em Reabilitação de Deficiência Intelectual. A porta de entrada são as Unidades Básicas de Saúde e o Departamento de Saúde da Mulher, Gestante, Criança e do Adolescente. Já o encaminhamento, após avaliação dos critérios, é feito pelo Sistema de Regulação para um desses serviços. Ainda conforme a PJF, a consulta de profissionais de nível superior na atenção especializada, assim como a investigação diagnóstica e o acompanhamento deste usuário, são realizados na Apae.

Também demandada, a Agência Nacional de Saúde Suplementar não se posicionou até o fechamento desta edição.

*Estagiária sob supervisão da editora Júlia Pessôa

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